Lei sancionada em 2013, e questionada agora, pode ter facilitado o garimpo ilegal no Brasil
Uma
lei sancionada em 2013 pode ter contribuído, nos últimos anos, para estimular e
facilitar os lucros do garimpo ilegal no Brasil. O texto permite que ouro seja
comercializado no Brasil apenas com base nas informações dos vendedores, sob
presunção de "boa-fé" (veja detalhes abaixo).
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A
regra é questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) e pode ser revista,
justamente no momento em que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
tenta conter a ação de garimpeiros nas terras Yanomami.
• 1. O que diz o texto
O
texto diz que "presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da
pessoa jurídica adquirente" quando as informações prestadas pelo vendedor
“estiverem devidamente arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada
a realizar a compra de ouro”.
As
informações sobre as quais a proposta faz referência são:
• nota fiscal emitida por cooperativa ou,
no caso de pessoa física, recibo de venda e declaração de origem do ouro
emitido pelo vendedor;
• nota fiscal de aquisição emitida pela
instituição autorizada pelo Banco Central do Brasil a realizar a compra do
ouro.
A
proposta aprovada diz ainda que “é de responsabilidade do vendedor a veracidade
das informações por ele prestadas no ato da compra e venda do ouro”.
Na
prática, a redação permite que o vendedor do ouro – muitas vezes, um posseiro
ou garimpeiro ilegal – apresente recibo de venda acompanhado de declaração de
origem para que se presuma a legalidade do metal adquirido e a boa-fé na
operação.
Como
a boa-fé e a legalidade são presumidas, não há uma rotina de fiscalização da
legitimidade desses documentos, que podem ser notas frias ou adulteradas.
• 2. Como a regra foi aprovada
Essa
norma consta em uma Medida Provisória (MP) editada pelo governo Dilma Rousseff
(PT) em abril de 2013 – que, inicialmente, tratava apenas da ampliação do
Programa Garantia-Safra para beneficiar agricultores familiares prejudicados
por estiagem ou excesso de chuvas.
Durante
a tramitação no Congresso, no entanto, parlamentares incluíram na MP o
dispositivo que, na prática, afrouxou as regras de fiscalização sobre a origem
do ouro comercializado no Brasil.
A
inclusão de trechos sem relação com a matéria original, como nesse caso, é
conhecida no jargão legislativo como "jabuti".
• 3. O que dizem os especialistas
A
redação reduz a responsabilidade dos bancos e agentes financeiros autorizados a
mediar compra e venda de ouro no país.
A
regra em vigor permite que as entidades comprem o ouro com base em informações
prestadas, exclusivamente, pelos vendedores.
“De
fato, é inequívoco que a extração ilegal de ouro é uma das causas do avanço do
desmatamento e da violação de Direitos Humanos na Amazônia. A continuidade
dessa atividade ilegal, por sua vez, está relacionada à falta de transparência
e controle sobre a cadeia de extração e comércio do ouro no Brasil”, dizem o
Greenpeace, o Instituto Escolhas, o Laboratório do Observatório do Clima e a
Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente.
Em
manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF), as entidades afirmam
que, ao permitir a compra de ouro com base apenas nas informações fornecidas
pelos vendedores – sem que seja necessário adotar nenhuma outra providência no
sentido de comprová-las –, a norma permite que ouro ilegal oriundo da Amazônia
seja escoado para o mercado “com aparência de licitude”.
As
organizações destacam ainda que a "evidência de vínculos familiares e
empresariais entre alguns titulares de garimpos na região amazônica e
representantes [de instituições financeiras]" podem tornar as irregularidades
na origem do ouro "invisíveis para a sociedade".
“Ao
apagar as possíveis irregularidades na primeira parte da cadeia de extração e
comércio de ouro no país, o dispositivo de lei questionado também desestimula
que o Poder Público adote providências para desenvolver mecanismos de controle
e monitoramento mais eficientes, modernos e avançados.”
O
PV, autor de uma ação apresentada ao STF, argumenta que o dispositivo impugnado
exime as instituições financeiras de aprimorar seus mecanismos de controle e monitoramento.
"O
contexto do dispositivo insere-se, nos termos do que temos exposto até aqui, no
ambiente de agressões desmedidas e sucessivos recordes de desmatamento
ambiental, denotando a ocorrência de um estado de coisas inconstitucional em
relação ao dever estatal irrenunciável de preservação adequada e eficiente do
meio ambiente, em sua integridade", afirma o partido.
• 4. O que o STF pode fazer
Tramitam
na Corte duas ações que pedem a derrubada do trecho. Uma da Rede
Sustentabilidade em parceria com o PSB, e outra do Partido Verde.
Ambas
são relatadas pelo ministro Gilmar Mendes. O ministro adotou o rito abreviado
na apreciação das ações, o que permite com que os procedimentos sejam julgados
pelo plenário definitivamente no mérito, sem análise do pedido de liminar
(decisão provisória).
Ainda
não há data para o julgamento.
• 5. Governo Lula estuda tema
Segundo
apurou a TV Globo, ministros têm analisado as implicações do dispositivo.
O
assunto, inclusive, foi pautado em uma reunião entre Lula e ministérios para
tratar da crise na Terra Indígena Yanomami, realizada há duas semanas no
Palácio do Planalto.
No
encontro, ministros disseram entender que essa presunção de legalidade e boa-fé
atrapalha o combate e a fiscalização do garimpo ilegal em áreas de preservação
e terras indígenas.
"Cobiça pelo ouro está acabando com
a vida coletiva", diz presidente da Funai. Por Rubens Valente, Evilene
Paixão
A
presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joenia Wapichana,
que participou da comitiva que visitou a Terra Indígena Yanomami nesta semana,
disse que a prioridade agora “é salvar vidas” e que está sendo dada uma
oportunidade para os garimpeiros saírem livremente da área. O governo criou
corredores aéreos para permitir a saída “espontânea” dos garimpeiros antes que
as forças de segurança intensifiquem as incursões no terreno, com destruição de
equipamentos e prisões. Em entrevista exclusiva à Agência Pública na sede da
Funai em Boa Vista (RR) nesta quarta-feira (8), a agora ex-deputada federal Joênia,
a primeira indígena nomeada presidente do órgão de assuntos indígenas desde
1910, quando a Funai ainda se chamava SPI (Serviço de Proteção ao Índio), disse
que o garimpo ilegal não é resposta à crise econômica no país.
LEIA
A ENTREVISTA:
• A primeira dúvida é sobre a desintrusão
dos garimpeiros. Está sendo discutido o plano, o Ministério da Defesa fala em
plano. A Funai vai participar dessas incursões que ocorrerão? Afinal é uma
terra indígena.
Na
verdade, o plano ainda está em andamento, o plano está sendo construído,
interministerial. O que está acontecendo hoje [quarta-feira] é uma operação de
emergência à saúde. Foi anunciada pelo presidente [Lula], a prioridade agora é
salvar vidas. Das crianças, dos adultos que estão morrendo de fome. Então o único
plano que está em andamento, e que a Funai está participando também, é a
operação emergencial à saúde. Quem está chefiando é o Ministério da Saúde.
Lógico, por conta dos reflexos que teve, da movimentação na área, houve essa
questão da proibição de pouso, aliás, de sobrevoos, que foi anunciada pelo
presidente. Aí o reflexo disso foi justamente a corrida [dos garimpeiros] pra
sair da área, né? É o tempo que o presidente, os ministros, falaram que ‘vocês,
antes de começar realmente o plano de desintrusão, têm a oportunidade de sair
ali livremente’. Então foi dada essa oportunidade, foi pública. As pessoas
estão querendo sair. Agora, lógico, como nas outras vezes, o governo está se
preparando. Já houve planos discutidos na Justiça, em outras ações judiciais.
Cabe à força de segurança agir estrategicamente.
• E nesse processo, se houver uma
incursão, é justo que a Funai participe porque ela também faz esse papel de
intermediação [com os indígenas]?
A
Funai tem que participar, como qualquer outra vez que participou. Mas volto a
dizer, o plano ainda não está sendo concluído. Estão discutindo. Todo dia tem
reuniões. Mas as coisas vão acontecendo em parte.
• Se a sra. tivesse que mandar uma
mensagem aos garimpeiros que estão lá ilegalmente, criminosamente, o que diria?
Olha,
garimpo em terras indígenas é crime. Como qualquer crime, ele tem que ser
sanado. O dever do Estado brasileiro é propiciar a segurança dos povos
indígenas e combater o crime. Que eles [garimpeiros] possam sair
voluntariamente. O garimpo ilegal não vai responder a essa crise econômica que
todo o país está passando. A questão do garimpo em terras indígenas está
levando à morte de crianças inocentes. Essa cobiça pelo ouro pode salvar
economicamente algum momento de uma vida de um garimpeiro, mas está acabando
com a vida coletiva de um grupo. Tem quem acha que está salvando seu bolso, mas
está sendo cumplice de um genocídio também. Que possa atender esse apelo das
famílias Yanomami para deixar seu domicílio. Eu digo que terra indígena é
domicílio indígena. Como ninguém queria ser perturbado na sua casa e colocado
em vulnerabilidade sua família. Da mesma forma, os Yanomami, que são
brasileiros, têm direito, o direito está respaldado pela nossa Constituição, e
o que eles estão pedindo para desintrusar da sua casa é mais do que justo, é
mais do que um dever do Estado. Então não se trata aí de um conflito de
interesse, se trata de garantir um direito que já é garantido em lei. Garimpo
não está garantido em lei nem vai garantir porque a nossa Constituição não
permite regulamentação de garimpos em terras indígenas. Então alguém que vai
estar fomentando um garimpo na prática do garimpo porque acha que vai um dia
regulamentar, não tem isso na nossa Constituição. É crime, vai continuar sendo
crime, e essa prática aí está custando a vida de crianças.
• Sabemos que a base parlamentar de
Roraima é pro-garimpo, governador [Antonio Denarium], deputados, inclusive a
comissão parlamentar federal dos novos deputados pediu para acompanhar. Há toda
essa ação. E o governador agora também está sugerindo um auxílio [financeiro]
para esses garimpeiros. Como a Funai vê essas opiniões e sugestões da bancada
daqui de Roraima?
A
preocupação da Funai é a proteção da vida indígena. Agora, as questões sociais,
de assegurar que o garimpeiro tenha algum benefício social para sanar sua crise
econômica, que não consegue emprego, aí tem que ver com outros órgãos. Neste
momento, a obrigação de Funai é ter a proteção territorial, é garantir que os
povos indígenas tenham sua casa, seu domicílio, suas terras livres de qualquer
invasão, é lutar por uma fiscalização, até porque é dever da Funai fiscalizar
as terras indígenas, demarcar, proteger, propiciar a vida dos povos indígenas.
Essa é a preocupação da Funai. A questão dos benefícios sociais, a questão de o
que fazer com os garimpeiros já é parte de outros departamentos do Estado
brasileiro.
• De que forma a Funai vai se estruturar,
tanto em termos de pessoal e de estrutura das bases de fiscalização? Há
dinheiro suficiente para isso?
Infelizmente
o nosso orçamento anual é deficitário, digamos, ele é insuficiente. Todo mundo
sabe, vivo falando, que nesses últimos mais de quatro anos que Funai não tem
recebido nenhum recurso condizente com a obrigação de Funai. Foi aprovado
[orçamento de] quase R$600 milhões, mas desses, quase R$400 milhões são para
manter a Funai existindo. E o que resta? Mais de R$100 milhões para cumprir
contratos já firmados. O que restaria para cumprir a obrigação de demarcar,
proteger, fiscalizar, organizar, desenvolvimento sustentável, direitos sociais
são um pouco mais do que R$90 milhões, digamos assim, e que são insuficientes
pra atender 14% do Estado brasileiro. Ou seja, muitas terras indígenas, mais de
um milhão de vidas de populações indígenas. Então ela não é suficiente. Então
nós temos que buscar um complemento em outros ministérios, digamos assim. Por
isso que nós temos que contar com o governo Lula, já que ele falou em seu
discurso de campanha e de posse também, e vive repetindo, que vai colocar os
povos indígenas como prioridade. E ele fez isso muito bem, chamando para
entregar faixa [presidencial], criando Ministérios dos Povos Indígenas,
colocando indígena na Funai. Todas as sinalizações de apoio aos povos indígenas
estão sendo dadas. E eu espero que seja dada também na questão orçamentária.
Porque nós não temos como responder tamanha obrigação com recurso orçamentário
[atual]. Foi muito boa a PEC que foi aprovada que deixou de fora do teto as
doações socioambientais, o que vai propiciar à Funai buscar parcerias porque as
terras indígenas são estratégicas para conservação da biodiversidade, para
combater a crise climática. Então, acho que tem toda a justificativa de a gente
buscar parcerias também.
• E esse foco de preocupação sobre os
indígenas isolados? Qual é o plano, qual a estratégia sobre esse tema.
A
Funai tem que estruturar suas bases da Funai principalmente à frente dos
indígenas isolados e de recente contato, que hoje também está precária. Faltam
servidores, falta uma valorização do quadro, tem que fazer concurso público,
tem que dar uma estrutura de funcionamento às bases, recuperar algumas bases
que foram fechadas no governo anti-indígena de Bolsonaro. Então assim, tem
muita coisa básica que a Funai tem que fazer, já de imediato. E outra é buscar
orçamento para que possa fortalecer a Funai e as frentes que tratam de índios
isolados principalmente.
Desnutrição atinge cerca de 50% de
crianças Yanomami de até 5 anos monitoradas pelo SUS
Ao
menos desde 2015, cerca de metade das crianças Yanomami de até 5 anos
apresentam peso baixo ou muito baixo para a idade. O pico de crianças fora do
peso adequado foi em 2021, quando 56,5% de crianças yanomami estavam com algum
nível de déficit de peso.
Os
dados são do Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena do Ministério da
Saúde fornecidos via Lei de Acesso à Informação.
Os
números não representam o total das crianças Yanomami, mas aquelas que foram
atendidas pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Sistema Único de Saúde
(SasiSUS), acompanhadas pela Vigilância Alimentar e Nutricional (VAN).
Essas
crianças são cadastradas para que seja realizado monitoramento e avaliação das
ações de saúde a serem realizadas pelas equipes multidisciplinares de saúde
indígena.
Desde
janeiro, a Terra Indígena Yanomami, a maior reserva indígena do Brasil,
enfrenta grave crise sanitária, com dezenas de casos de malária e desnutrição
grave.
O
governo federal decretou em 20 de janeiro emergência de saúde pública para
viabilizar assistência aos indígenas, e também tem atuado junto às forças
policiais para retirar milhares de garimpeiros que exploram ilegalmente a terra
indígena.
• Situação ao longo dos anos
Em
2015, de 3516 crianças acompanhadas pelo Sistema de Informação da Atenção à
Saúde Indígena (Siasi), 1059 estavam com peso baixo e 666 com peso muito baixo
para a idade. Isso representou, naquele ano, 49,1% do total das crianças
acompanhadas fora do peso considerado ideal.
Em
2016, eram 50,9% crianças nessa condição. Em 2017, eram 47,4%. E 49,7% em 2018.
Os
períodos abarcam as gestões dos ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer.
• 2021 foi o pior ano
Em
2019, já no governo de Jair Bolsonaro, houve o maior aumento proporcional na
taxa de crianças fora do peso ideal, com aumento de 5 pontos percentuais, para
54,5% das crianças, mesmo índice de 2020.
O
pior cenário se verificou em 2021, quando 56,5% das crianças estavam com
déficit de peso: dos 4245 Yanomami de até 5 anos monitorados, 1269 estavam com
peso baixo e 1130 com peso muito baixo. O período coincide com a pandemia da Covid-19.
No
ano passado, a situação apresentou melhora, no entanto. mais da metade das
crianças monitoradas seguia fora do peso ideal: 52,2%.
Fonte:
g1/Agencia Pública
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