Inteligência
Artificial como infraestrutura financeira, afirma sociólogo
Edemilson
Paraná é professor de sociologia econômica e sociologia do trabalho da Universidade
Federal do Ceará e autor dos livros A finança digitalizada: capitalismo
financeiro e Revolução informacional e Bitcoin: a utopia tecnocrática do
dinheiro apolítico.
Nesta
entrevista com Rafael Grohmann, ele explica o argumento da pesquisa, como se relaciona
a agenda mais ampla de estudos críticos sobre IA, a noção de infraestrutura e
outros debates sobre tecnologia a partir de uma perspectiva marxista.
Eis
a entrevista.
• O que significa pensar inteligência
artificial como uma infraestrutura financeira?
A
ideia é entender que a penetração da inteligência artificial nos mercados
financeiros, que vem ocorrendo com mais velocidade nos últimos anos, não é algo
que acontece da noite para o dia, mas tem a ver com um conjunto de
transformações que envolvem distintas escalas e que possibilitam que a IA possa
ser implementada deste modo nos mercados contemporaneamente. De que modo a IA é
implementada? Ela é utilizada para avaliação de risco, avaliação de crédito,
negociação em tempo real de ativos e papéis financeiros os mais diversos,
administração e gestão dos mercados. A IA está se espalhando muito rapidamente
pelas finanças.
As
dimensões em que ela é utilizada de maneira mais intensiva tem a ver
basicamente com três aspectos: com credit score e ranqueamento de acesso ao
crédito no caso dos serviços bancários; com a contabilidade e gestão de risco
nas empresas financeiras; e, por fim, com a administração de portfólios de
investimento e negociação no mercado de capitais. Há grandes fundos que se
utilizam de negociações algorítmicas e inteligência artificial e que vendem o
acesso a esses produtos para seus clientes e investidores. Há fundos enormes
como BlackRock e Bridgewater, que estão utilizando inteligência artificial em
escala crescente.
Então,
é preciso, primeiro, entender em qual escala isso se dá. Há uma alteração de
grande monta do mercado financeiro nas últimas décadas que praticamente faz com
que o mercado se confunda com uma infraestrutura tecnológica, com um sistema
sociotécnico que serve de base a outras interações. Discuto nos meus trabalhos
há um bom tempo a ideia que a gente vive num contexto marcado por aquilo que
defini como “finança digitalizada”. Não é possível mais pensar as finanças fora
da dinâmica informacional tecnológica. No passo em que esses mercados são
eletronificados e que as negociações por meio das tecnologias da informação e
da comunicação se tornam ubíquas, contando com o avanço da capacidade de
processamento computacional, esses modelos se tornam mais refinados.
Na
medida em que todas essas camadas vão se sobrepondo umas às outras é que você
pode, na superfície, ter a “inteligência”, a camada “inteligente”, da
inteligência artificial. Para isso, é preciso, então, antes montar uma dimensão
enorme de infraestruturas sobrepostas para que essa inteligência artificial
possa ganhar o domínio nesses campos em que ganhou hoje. Isso tem uma uma
implicação importante, que é a de entender que esse jogo de escalas é
fundamental para acessarmos o que que é inteligência artificial no mercado financeiro
hoje.
Tem
uma aplicação “micro” da inteligência artificial em serviços específicos,
alguns produtos financeiros específicos, e tem um desdobramento sistêmico macro
da inteligência artificial – menos compreendido – no sistema financeiro. Ou
seja, a inteligência artificial pode possibilitar ganhos, retornos, lucros e
eficiência no sentido econômico mais estrito no nível micro para alguns
agentes, sobretudo, os agentes que estão mais bem posicionados na
infraestrutura econômica e tecnológica, sociotécnica do mercado financeiro. Mas
no nível macro, você tem um aumento do risco, da imprevisibilidade e quiçá de
ineficiência. Então, essa contradição precisa ser melhor explorada e não está
sendo devidamente endereçada no meu modo de ver. O aumento de “eficiência” no
nível micro, com aumento de risco e complexidade, em muitos casos significa
ineficiência no nível macro, com aumento de concentração do poder e do controle
informacional nos mercados. É isso que eu tento explorar ao tratar a
inteligência artificial como uma infraestrutura financeira.
Hoje
a IA vai se tornando cada vez mais incontornável. Para você entrar no mercado,
seja um pequeno investidor ou um grande investidor, você precisa acessar esses
recursos cada vez mais. Mas essa diferença de escala, tanto dos agentes que
estão no mercado, quanto do próprio funcionamento sociotécnico, é fundamental
para entender isso. É o que se chama de falácia da composição, algo muito
explorado pelo Keynes na economia. Muitas vezes as pessoas que estão olhando
para a tecnologia no mercado não enxergam muito bem o que de fundamental está
acontecendo porque as análises sempre ficam no nível micro e descritivo.
O
que é a falácia da composição? A ideia de que o todo não é a mera soma
quantitativa das partes. O todo tem propriedades emergentes que são
qualitativamente distintas da soma das partes. É analago, para nos valermos de
outro exemplo, ao postulado funcionalista básico da sociologia segundo
Durkheim. O social é algo diferente da mera soma das interações individuais,
pois guarda propriedades em si mesmo, próprias. E o que eu estou querendo
demonstrar com esse trabalho é que isso vale também para aplicação da IA no
mercado financeiro. Ela está produzindo efeitos que são preocupantes. E isso
precisa ser avaliado à luz da contradição entre essas duas dimensões.
• Qual é o seu argumento central?
Minha
linha argumentativa está centrada na ideia de que, neste caso, maior eficiência
no nível micro não necessariamente significa maior “eficiência” no nível macro,
antes o contrário. A competição acirrada no mercado força a adoção de
tecnologias no campo da informação e comunicação. As bases sociotécnicas e
infraestruturais do funcionamento do mercado – e os próprios mercados
financeiros – são historicamente muito sensíveis à informação. Talvez o mercado
financeiro seja um dos setores econômicos mais intensivos em informação.
Então
essas são tecnologias, dinâmicas e setores que tem esse aspecto como
estratégico. Por isso é que o mercado financeiro tende a antecipar os outros
setores da economia na adoção dessas tecnologias de ponta. Isso é uma coisa que
eu venho desenvolvendo já há um bom tempo. A gente fala contemporaneamente em
algoritmos, no Vale do Silício, nas empresas de comunicação e de interação
social, mas na verdade os algoritmos estão sendo aplicados no mercado
financeiro desde a década de 1980. A gente fala de redes neurais, machine
learning e deep learning para os produtos informacionais e educacionais
contemporâneos, mas eles já estão sendo aplicados no mercado financeiro antes
mesmo de terem se tornado algo presente no cotidiano das nossas interações
sociais.
Essas
tecnologias de informação e comunicação são, então, a base infraestrutural a
partir das quais funcionam os mercados já há algum tempo. Eu discuti isso no meu
primeiro livro, Finança Digitalizada. São tecnologias que antecipam e comprimem
os fluxos de espaço tempo, possibilitam ao mercado ampliar a base e a
velocidade das negociações financeiras e isso produz uma ampliação da
complexidade e da concentração, com aumento dos riscos e desigualdades. No meu
primeiro livro, eu chamei isso de espiral de complexidade. A IA entra agora
nessa história como uma nova infraestrutura financeira, compondo esse complexo
sociotecnico, que tem também, é claro, seus aspectos políticos, institucionais.
Os grandes agentes do mercado financeiro buscam adotá-la como uma tecnologia de
propósito geral, para ser cada vez mais utilizada como base de todos os demais
serviços financeiros.
• E quais são os imaginários envolvidos na
inteligência artificial?
Os
agentes antevêem maior controle, maior transparência, maior previsibilidade,
maior produtividade, maior lucratividade. Os relatórios de alguns reguladores e
de grandes empresas e consultorias estão basicamente louvando essa transformação
da IA em infraestrutura, com tudo de bom que ela pode trazer para o mercado. Eu
apresento a ideia de que a questão da escala complexifica um pouco esse
imaginário sociotécnico porque nele não estão presentes as ideias de poder,
controle, atravessamentos políticos na governança dessas infraestruturas
econômicas e técnicas. Neste ponto, entram os problemas do desconhecimento
quanto às lógicas de causalidade no interior dos modelos, da falácia da
composição, da complexidade, da volatilidade, da incerteza, em suma, que a
inteligência artificial não só não é capaz de conter, como, ao contrário, pode
fazer ampliar.
O
argumento, então, é de que a inteligência artificial muitas vezes faz o oposto
do que esses agentes estão dizendo. As tensões entre o micro e o macro, entre o
material e o ideacional, entre o técnico e o político, não são novas, mas são
fundamentais para entender a disseminação da inteligência artificial como
infraestrutura financeira. A inteligência artificial ampliada no seu uso
eventual como tecnologia de uso geral nos mercados financeiros tende a
intensificar ao invés de controlar o risco e a opacidade. Isso pode trazer mais
problemas do que esses agentes estão sendo capazes de ver.
• Como você define infraestrutura?
Eu
estou entendendo a infraestrutura num sentido sociológico mais ampliado. Não
são apenas coisas. Não são só amontoados de coisas que compõem a
operacionalidade técnica de funcionamento de certos processos informacionais,
mas sim uma composição complexa, escalar, que envolve recursos naturais,
trabalho e – evidentemente – a materialidade dos objetos que são mobilizados no
funcionamento sociotécnico e institucional dessas estruturas. Desde aparatos
regulatórios e arranjos institucionais a cabos submarinos compõem as
infraestruturas funcionais no mercado financeiro. E a inteligência artificial
cada vez mais passa a fazer parte desse complexo infraestrutural de
funcionamento do mercado.
Ou
seja, a base cotidiana na qual e a partir da qual a IA opera muitas vezes entra
na dinâmica de uma maneira invisível, basilar, sem que a gente consiga entender
como a inter-relação dessas camadas diversas se dá de maneira complexa para
produzir os mercados que a gente tem hoje, com todas essas tensões. É como se a
gente, ao olhar para as infraestruturas, tentasse acessar esse “grande sistema
global de maquinaria”, para lembrar um termo do Marx, resgatado pela minha
colega Esther Majerowicz. Um “sistema de maquinaria” que envolve,
evidentemente, relações de trabalho, exploração, coleta, utilização e armazenamento
de dados, conflitos, tensões e até mesmo ideias e narrativas.
Porque
a maneira como você cria formas de visualizar, explicar e apresentar o mercado
para a sociedade, também cria, na prática, esses mercados. Como os STS (estudos
de ciência e tecnologia), a sociologia dos mercados financeiros e da tecnologia
já vem tentando explicar há algumas décadas, o modo como esses mercados são
perpassados por performatividade, discursos e imaginários, isso tem uma
existência material. E essa existência material se conforma e condiciona a
maneira de como os mercados funcionam. Quando eu estou falando de
infraestrutura e pensando a IA como uma infraestrutura, estou tentando conectar
a inteligência artificial a uma forma mais integrada, mais sistêmica de pensar
os mercados.
• Nos últimos anos, houve uma proliferação
de estudos críticos sobre inteligência artificial, mas o mercado financeiro
ainda é um ponto cego nesta discussão. Por que será?
Eu
acho que esse gap ocorre porque as finanças ainda aparecem como algo muito do
domínio puramente econômico dos processos sociais. Por mais que a sociologia da
ciência e da tecnologia, os estudos sociais da tecnologia tenham se esforçado
nas últimas décadas, particularmente a partir dos anos 2000, para demonstrar o
caráter social, construído, performático e até narrativo dos mercados, nos
estudos críticos de inteligência artificial ainda é raro um aporte sobre essa
dinâmica tão importante para o mundo contemporâneo, para o funcionamento da
vida social contemporânea, que é a lógica das finanças e da financeirização. Os
estudos de financeirização, os estudos de plataformas e os estudos críticos da
tecnologia não estão conversando muito bem, me parece. Tentar juntar esses
mundos e preencher esse gap é um dos objetivos do meu trabalho.
Então,
de um lado, há uma ideia de que isso ainda é uma coisa do domínio puramente
econômico, dos economistas, e não algo do âmbito das ciências sociais. Ou seja,
a gente faz a crítica do poder, mas para fazer isso, pegamos sistemas
sociotécnicos específicos, destrinchamos e mostramos como as relações de
exploração e dominação ocorrem ali, naquele contexto. O problema das finanças é
que, por mais que sejam marcadas por importantes arranjos locais particulares,
elas são complexos articulados de maneira global e isso cria uma uma
dificuldade metodológica para acessar algumas das dinâmicas de poder, de
hierarquia, de desigualdade que ocorre no sistema financeiro. Então, de um
lado, há uma dificuldade disciplinar, e, de outro, uma dificuldade
metodológica.
No
meu modo de ver, para que a gente acesse criticamente o mercado financeiro, é
fundamental que a gente olhe a partir dessa dimensão interrelacionada das
escalas, ou seja, sistêmica e estrutural. É preciso pensar nas causalidades
sistêmicas que se dão nesse jogo complexo que ocorre nos mercados a partir da
tensão entre o micro e o macro. Isso é fundamental para compreender a
inteligência artificial como infraestrutura financeira. Quer ver onde esse
exemplo ocorre? Na lógica do risco sistêmico. Como é que a gente analisa o
risco que a IA e a ampliação do uso da IA pode trazer para os mercados
financeiros? Eu preciso pensar isso de maneira combinada e coordenada com o uso
da IA em vários mercados ao mesmo tempo, por diferentes qualidades de agentes
com diferentes estratégias de IA interagindo umas com as outras.
Esse
é o modus operandi do mercado financeiro contemporaneamente. Ele ocorre em
tempo real de maneira global e interconectada. Se eu pensar tão somente como
ele ocorre em uma praça financeira específica ou em um produto específico,
haverá dificuldade de entender essas contradições que eu estou tentando
endereçar. É claro que há problemas de vieses e caixas pretas que a literatura
também vem endereçando há um bom tempo. Mas é preciso, no meu modo de ver, entender
problemas como a capacidade da inteligência artificial ser pró-cíclica, ou
seja, o comportamento de uma IA tende a ser reforçado pelo comportamento de
outra IA. Isso produz movimentos de mercado que, no agregado, produzem
impactos, em termos de risco, que são sérios, uma possível ampliação do risco
sistêmico. Eu acho que isso é uma questão fundamental para a gente analisar,
ainda que tenha estado até aqui um pouco fora do escopo desse campo de estudos.
Outro
exemplo importante é o problema da explicabilidade e da causalidade dos modelos
de IA. Na IA nos mercados financeiros, isso é muito sério, porque você tem uma
gestão de portfólio, de compra e venda de ativos para ter uma certa performance
financeira e dar um certo retorno. Você joga lá o Deep Learning, que é o modelo
dominante também nas finanças, e ele te dá lá uma taxa de precisão, um accuracy
excelente do ponto de vista do retorno financeiro que você pode ter naquela
estratégia.
Só
que você simplesmente não sabe concretamente exatamente o que produziu aquele
resultado. Isso não é um detalhe. Isso faz toda a diferença, por exemplo, para
coordenação dos mercados, para regulação dos mercados, para o acompanhamento
das lógicas de risco e até mesmo para o próprio investidor. Pode ser que haja
uma causa oculta ali atrás funcionando para que ele tenha aquela rentabilidade
que pode ser extremamente obscura do ponto de vista do amadurecimento do
portfólio dele, que vai numa direção totalmente diferente se condições mínimas
mudarem.
Essa
falta de explicabilidade dos modelos, essas dinâmicas de caixas pretas, são
fundamentais para a gente entender como as coisas funcionam no nível
operacional, mas elas têm implicações sistêmicas extremamente relevantes que
muitas vezes não podem ser aprendidas se a gente não consegue entender a
autonomia relativa dessas dimensões. Claro que isso é uma codeterminação, mas
há uma autonomia relativa entre essas dimensões micro e macro, entre o
cruzamento, por exemplo, que ocorre entre economia e a política, nas lógicas de
poder, quando as escalas começam a se amontoar. E há problemas de desigualdade
e concentração no mercado que também são muito caros aos estudos de
plataformas. Então é preciso pensar sobre essas escalas. Escala é sempre sobre
poder. Não é possível pensar em escalabilidade em um sistema sociotécnico sem
pensar em dinâmicas de poder. Penso que este é um ponto de contato muito
interessante para começar a endereçar este gap.
• Para além da sua pesquisa sobre IA como
infraestrutura financeira, como você tem se posicionado no debate sobre
tecnofeudalismo?
Eu
estou para escrever sobre isso e fazer uma intervenção nesse debate
interessantíssimo. Vários colegas qualificados estão intervindo nessa
discussão, que eu acho realmente muito importante. Eu sou, como o [Evgeny] Morozov,
um crítico da tese do tecnofeudalismo. Eu acho que nós não estamos vivendo algo
diferente do capitalismo. O capitalismo é um sistema muito plástico, com uma
capacidade de se reconstruir e de se reinventar que é absolutamente
surpreendente. Então eu não acho que, diante dessas transformações que
ocorreram nas últimas décadas, a gente esteja diante de um novo modo de
produção.
Mobilizar
aspectos e processos típicos de outros modos de produção é um recurso que o
capitalismo historicamente se valeu para continuar se reproduzindo e se
refazendo à luz dos limites que lhe são impostos, de suas contradições. Isso
não supera o fato social da exploração do trabalho, da busca pelo lucro como um
fim em si mesmo, da valorização do valor como elemento central e estruturante
da dinâmica econômica e social. Mas, ao mesmo tempo, se é verdade que a gente
ainda continua no modo de produção capitalista, que se transforma e se refaz,
não me parece adequado pensar que as coisas são igual, que são exatamente o que
sempre foram. Acho que há mudanças extremamente significativas e importantes
ocorrendo. Elas precisam ser endereçadas com muito cuidado, porque elas podem,
de fato, significar uma mudança de fase, uma mudança geral de organização e de
disposição no interior do capitalismo. Essa é uma hipótese que me parece
sensata.
Eu
acho que nós estamos vivendo uma mudança de fase no capitalismo nas últimas
décadas. O capitalismo está se metamorfoseando em algo muito diferente do
capitalismo de antes. Assim como o capitalismo welfarista, keynesiano e
fordista foi diferente do capitalismo liberal, que, por sua vez, é diferente do
capitalismo neoliberal e financeirizado contemporâneo, eu acho que nós estamos,
sim, atravessando uma outra linha agora, contemporaneamente, para um outro tipo
de capitalismo. Eu acho que essa mudança tem no seu centro a transformação
digital, a digitalização dos processos, das dinâmicas e interações sociais.
Isso marca, no meu modo de ver, uma outra forma qualitativa de funcionamento
das relações econômicas no interior do capitalismo.
• O que significa ser um marxista que
pensa tecnologia hoje?
É
um momento muito perigoso, mas também muito interessante, para se ser um
marxista – se é que a gente vai conseguir chegar a um acordo sobre o que
significa de fato “marxista”. Por que nós estamos, sim, no meu modo de ver,
vivendo uma mudança qualitativa fundamental no interior do capitalismo. Uma
mudança talvez sem precedentes mesmo.
Por
que eu digo que é perigoso? Por que, diante dessas mudanças, há duas tentações,
que são fortes para todos os analistas, mas talvez especialmente para os
marxistas. Uma é a de dizer que essas mudanças não são isso tudo que as pessoas
estão dizendo. Que isso é apenas uma expressão fenomênica de algo que a gente
já sabe, que a gente já conhece de antemão. E que, por isso, só nos resta fazer
uma boa crítica dessas mudanças à luz das proposições básicas, dos fundamentos
que a gente já conhece. Portanto, nesta acepção, pormenorizar demais na
descrição, no entendimento e na investigação cuidados dessas mudanças seria
algo não apenas improdutivo, mas, no limite, fetichista e ideológico. Ou seja,
a posição de que nada mudou e que as coisas continuam sendo exatamente como
estão.
Uma
segunda posição, que também pede cautela, é a ideia de que tudo está mudando de
uma maneira irresistível, irreversível, incontornável, e que essas mudanças
representam uma reconfiguração completa das coisas, com possibilidades para o
fim do próprio capitalismo. A velha ideia da possibilidade iminente do fim do
capitalismo. Este é outro cuidado que é preciso ter. Lembremos que alguns
marxistas – claro que não só eles, mas também eles – já decretaram o fim do
capitalismo algumas vezes, mas este teima em continuar se refazendo, se
reinventando. A cada grande crise surge uma coluna de pensadores críticos para
dizer “olha aí, o fim do capitalismo está chegando”. Mas essas crises são
instrumentalizadas justamente para que o capitalismo, por meio de uma
destruição criativa – lembrando a definição do Schumpeter – se reinvente; evidentemente,
produzindo um conjunto de tragédias pelo caminho ao longo dessa “reinvenção”.
Então
eu acho que isso exige ao mesmo tempo uma abertura e um entusiasmo para
entender o que tem de novo, mas uma certa cautela e uma boa dose de humildade
científica para também não entrar na panaceia de que absolutamente tudo é novo.
Diante desse momento tão delicado que a gente está vivendo, ser um marxista é
se dedicar com rigor teórico, profundidade analítica e muito cuidado empírico a
essas novidades, mas sem ingenuidade para achar que elas são uma reversão
completa de tudo que existe. O novo se reproduz no velho, e o velho se reproduz
no novo. Entender as nuances dessa dialética é uma tarefa árdua, que exige o
melhor dos nossos esforços e das nossas inteligências, sobretudo nessa área.
A
minha aposta teórica difusa, de mais largo alcance, é a de que o dilema
fundamental da reconfiguração do capitalismo no nosso tempo pode ser melhor
endereçado a partir da interrelação entre financeirização e digitalização. A
reconfiguração das lógicas do capital por meio do rearranjo entre finanças e
produção, de um lado, e, do outro, a transformação dos processos produtivos,
das lógicas de sociabilidade, e da vida social com a ampla e extensiva
digitalização, são – junto da catástrofe ambiental e da necessidade de
reconfigurações sociais que isso vai demandar – o dois dos processos mais
relevantes da contemporaneidade na minha visão.
Na
medida em que a relação entre tecnologia e sociedade se torna, por razões
positivas ou negativas, cada vez mais central na vida social, penso que um
olhar crítico e interdisciplinar, sistêmico, e atento rigorosamente à
complexidade, como deve ser uma boa abordagem nessa tradição de pensamento, tem
claras vantagens sobre outras aproximações atualmente dominantes.
Fonte:
Entrevista com Edemilson Paraná para Rafael Grohmann, publicada por DigiLabour
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