Conheça o Ftira,
pão feito da mesma forma há mais de 500 anos em Malta
O
Ftira é uma tradição maltesa que entrou para a lista de patrimônios culturais
da Unesco. O motivo? Este pão crocante é assado nos mesmos fornos a lenha de
alta temperatura da ilha desde o século 16.
"Foi
meu avô que me ensinou a fazer o Ftira, é uma parte da nossa cultura que não
existe em nenhum outro lugar do mundo", conta Nicholas Sammut.
Nicholas
Sammut (23) assumiu uma das padarias mais tradicionais de Malta, a Carmelo
Micallef, fundada por seu avô em 1967.
Apenas
uma faixa com fotos da família indicam que, naquela casa, igual a tantas outras
da cidade de Tas-Sliema, ao lado da capital Valetta, saem Ftiras quentinhos
desde as primeiras horas da manhã.
A
padaria não tem website, muito menos redes sociais. Assim mesmo, clientes fiéis
guiados pelo aroma das fornadas não param de chegar.
O
ambiente da padaria é quente e dominado por homens experientes com mais idade
que Nicholas. O calor vem do fogo que nunca se apaga dentro dos fornos a lenha
que já eram utilizados em Malta há 500 anos.
"Neste
trabalho temos muita dedicação, faz muito calor no verão e trabalhamos todos os
dias, de segunda a domingo", conta o jovem padeiro.
A
massa do Ftira não tem muito segredo: farinha, fermento, água e sal. Mas a
diferença principal está em seu tempo de cozimento, apenas 20 minutos no forno
de alta temperatura. O que resulta ser três vezes mais rápido que o cozimento
de um pão maltês comum.
Paul
Vella, dono da padaria Paul Ta Kalc, localizada em Al-Qormi, cidade no sul da
ilha de Malta, explica que o Ftira é feito a partir da mesma receita de massa
do pão maltês, mas a diferença principal está no formato em que o pão é
moldado.
Essa
foi uma tecnologia desenvolvida no começo do século 16, quando a ilha de Malta
era dominada pela ordem militar cristã dos Cavaleiros Hospitalários.
Nesse
período, os padeiros precisavam de uma solução para assar mais com menos lenha.
E assim nasceu este pão achatado, crocante e com um furo no meio.
"Sei
quando a massa está pronta para assar com um toque, e se o pão está macio pela
cor da casca", conta Paul, que faz esse trabalho há 25 anos.
A
posição estratégica de Malta, rodeada pelo mar Mediterrâneo, fez com que a ilha
fosse conquistada por diferentes povos. Árabes, romanos, franceses e ingleses
deixaram sua cultura gastronômica nestas terras.
O
país se tornou independente em 1964, mas ficou órfão de pratos com assinatura
própria. O Ftira é uma das únicas receitas que conseguem unir opiniões ao redor
do país: é autêntico de Malta.
·
O pão que é Patrimônio Cultural Intangível pela Unesco
A
receita original para rechear o pão maltês leva ingredientes mediterrâneos como
alcaparras, cebolas, conservas de tomate e azeite. Mas caminhando pelas ruas da
capital Valeta, é possível encontrar salmão defumado e até nutella entre as
fatias dos pães.
"Embora
as combinações de sabores do Ftira tenham se modernizado, a tradição se manteve
intacta por séculos", conta Noel Buttigieg, membro do Instituto de Turismo
e Cultura de Malta.
A
história do pão maltês é passada de pai para filho nos bairros de Malta, mas
também é estudada na maior universidade do país.
Buttigieg
é referência nacional no campo da antropologia da alimentação, mas concentrou
suas pesquisas em panificação mediterrânea, especialmente no Ftira.
O
pesquisador foi o responsável pela indicação da tradição do Ftira à Unesco, que
foi finalmente considerado como Patrimônio Cultural Intangível em 2020.
Mas,
para garantir uma vaga no hall da fama para o pão secular, o professor criou
relacionamentos com padeiros ao redor da ilha por anos e precisou recolher
centenas de assinaturas que apoiassem a ideia.
A
possibilidade de absorver novidades foi um dos motivos principais para a
ratificação do Ftira na Unesco, outro foi o acréscimo de mulheres padeiras.
Isso
porque os homens seguem sendo os principais padeiros artesanais, e muitos
afirmam que o ambiente quente é o que afasta a presença feminina dos fornos a
lenha. Porém, é possível encontrar mulheres com mãos experientes abrindo quilos
de massa no emblemático formato de rosca do Ftira.
·
O presente e o futuro
"De
116, hoje temos 60 padarias artesanais na ilha. Em quase uma geração perdemos
metade delas", conta Noel Buttigieg à BBC News Brasil.
Uma
das possíveis explicações para a diminuição da panificação artesanal é o
crescente número de padarias industriais que começaram a chegar à ilha.
Nos
últimos 20 anos, Malta viu o aparecimento de pelo menos cinco delas, conta
Buttigieg. Segundo ele, esses novos empreendimentos mecanizados levam o mercado
para longe das padarias tradicionais.
"É
difícil, porque, além da dificuldade do trabalho, quase não existem
trabalhadores que queiram exercer essa profissão", conta o padeiro
Nicholas Sammut.
A
falta de mão de obra também é um dos fatores que prejudicam a manutenção da
tradição do Ftira.
É
raro encontrar jovens como Nicholas comandando todo o ritual da reposição de
lenha, beneficiamento da farinha e entrega dos Ftiras.
Segundo
ele, muitos jovens vão estudar fora da ilha de Malta e voltam desesperados para
comer um sanduíche de Ftira, mas não se interessam em trabalhar nas padarias.
"Não
perderemos o Ftira, mas possivelmente o Ftira feito de maneira artesanal",
afirma o padeiro.
O
Ftira em Malta é como o pão francês, ou pão de sal, no Brasil. Faz parte da
rotina e acompanha os malteses em diferentes refeições ao longo do dia.
Na
ilha de Gozo, que faz parte de Malta, o Ftira é consumido como uma pizza. Já
nas regiões mais centrais, ele pode ser servido puro, com manteiga, azeite ou
em formato de sanduíche.
"Aqui
na rua principal de Valeta servimos muitos sanduíches de Ftira embalados para
viagem. Assim, os clientes conseguem levar para a praia ou piscinas naturais da
ilha", conta a empresária Luana Gaudeano.
Luana
é italiana e é sócia da lanchonete The Submarine. Junto com seu esposo, decidiu
empreender em Malta. Segundo ela, é bastante comum esse intercâmbio entre a
gastronomia italiana e a maltesa, pela proximidade geográfica.
Mas,
mesmo tentando servir outras receitas, o carro-chefe da lanchonete segue sendo
o sanduíche de Ftira.
"O
Ftira é interessante também desde um ponto de vista turístico, é o pão mais
popular entre os estrangeiros", conta Luana.
Em
meio ao pessimismo da perda desse saber tradicional, a recente nomeação do
Ftira como patrimônio da Unesco parece trazer alguma esperança.
Os
padeiros-artesãos acreditam que, mesmo com a industrialização da produção do
Ftira, ainda haverá espaço para aqueles que chegam até a ilha em busca do sabor
autêntico de um pão feito da mesma forma há mais de 500 anos.
Onde
encontrar o Ftira em Malta
CARMELO MICALLEF
BAKERY
2, Triq San
Trofimu, Tas-Sliema, Malta
+35621340628
TA KALC PAUL’S
BAKERY
56, Triq L-Isqof
Scicluna, Ħal Qormi, Malta
+356 7747 5502
THE SUBMARINE
SANDWICHS
42, Triq
il-merkanti, Il-Belt Valletta VLT 1173, Malta
+356
7706 4944
Fonte:
BBC News Mundo
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