Carlos Bocuhy: Água
e vampirismo ambiental
Pesquisas
demonstram que cada vez mais pessoas estão sensibilizadas e preocupadas com a
água. Uma espécie de síndrome da água envolve a realidade humana,
proporcionando reações de receio diante de um futuro de escassez – e o temor de
sua fúria, contida na intempestividade climática.
O
desequilíbrio provocado pela humanidade decorre de intenso e contínuo processo
de vampirismo ambiental: a extração de recursos e meios de sobrevivência dos
mais vulneráveis, por parte dos que não querem abrir mão de seu excesso de
consumo, decorrente de práticas insustentáveis. A consequências vão além do
abuso aos diretos fundamentais dos seres vivos, provocando ainda intenso
desequilíbrio ecossistêmico planetário.
Se
os processos coloniais, com ciclos econômicos predatórios, eram exemplo de
espoliação natural desenfreada, a prática do colonialismo climático é uma
espécie de pirataria global que se abate sobre as condições vitais do
equilíbrio ecológico atmosférico.
Na
década de 1990, no Estado de São Paulo, estavam bem demarcados o rompimento dos
limites naturais: a excessiva vazão das águas do Planalto de Piratininga para a
vertente oceânica, visando abastecer as indústrias de Cubatão; e a drenagem da
preciosa água dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí para abastecer, via
Sistema Cantareira, a megalópole de São Paulo, que continuava a poluir suas
águas, sem conseguir manter o mais simples uso social dos rios Tietê e
Tamanduateí. Ocupou implacavelmente suas várzeas, de forma especulativa,
entregando-as à destruição ambiental da grande cidade e sua especulação
imobiliária.
À
época, o ambientalista Ricardo Ferraz, do Vale do Paraíba, referia-se
frequentemente ao vampirismo ambiental praticado pela metrópole de São Paulo,
que drenava recursos alheios e pouco fazia para proteger seus próprios
mananciais ao sul, as represas Billings e Guarapiranga.
Quando
as Nações Unidas instituíram o Dia Mundial da Água em 1992, durante a
Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável, havia especial preocupação com a concentração das atividades
humanas em áreas metropolitanas.
Era
início do Antropoceno. A fase civilizatória das metrópoles concentrava
atividades humanas em pequenos espaços geográficos, rompendo a capacidade de
suporte dos limites naturais.
Surge
então o lado mais escuro do Antropoceno: o fator das mudanças do clima. Na
primeira década do século XXI, as alterações se tornaram mais evidentes e
surgiu outra preocupação: a de impactos mais ecossistêmicos, decorrentes do
crescimento exponencial das vulnerabilidades hídricas globais. Nesse cenário, o
Brasil se destaca em função de suas vulnerabilidades ambientais e sociais.
As
mudanças climáticas avançaram mais que o esperado pela ciência. Houve forte
desestabilização do regime hídrico global, com alternância entre secas e
intensas chuvas, destrutivas e trágicas. Os eventos naturais extremos foram
fortemente potencializados, com maior intensidade e frequência.
A
humanidade passou a discutir, desde 1996, nas cúpulas globais do clima das
Nações Unidas (COPs), quais seriam as ações necessárias para reverter o quadro
de instabilidade planetária.
Mas
as tentativas de avanços corretivos, com a eliminação dos gases efeito estufa,
esbarrava nas economias insustentáveis e ambientalmente mal-estruturadas. O
apelo ao multilateralismo colaborativo tornou-se ineficiente, subjugado no jogo
hegemônico das grandes nações, com avanços pouco pragmáticos e dissociados dos
alertas científicos.
Felizmente
a humanidade conseguiu vencer o crescente negacionismo contratado pelas
indústrias do petróleo. Mas os foros de discussão, as COPs, continuam
submetidas às pressões do cartel dos combustíveis fósseis.
As
discussões climáticas globais vêm sendo empurradas para serem sediadas em
países autoritários, distantes dos valores de direitos humanos, sem expressiva
participação social. Prevalece a inércia diante da tempestade que se avizinha.
Há evidente retardamento nas medidas prioritárias para a sobrevivência global.
A manutenção das economias lastreadas na produção de combustíveis fósseis
continua a prosperar, sem ceder às justas reivindicações de aportes financeiros
que possam diminuir a penúria dos países mais fragilizados.
Nesse
cenário adverso, sentam-se à mesa de negociações nas COPs a hegemônica
econômica, enquanto as evidências continuam a se transformar em impactos
mensuráveis e maior instabilidade hidrológica.
Veículos
de comunicação fazem registros dramáticos do excesso de chuvas e efeito das
secas, que vêm atingindo ano após ano diferentes regiões do globo.
As
previsões de perda de potencial hídrico, em função da má gestão do solo pela
agricultura, estão se tornando irreversíveis. Por exemplo, estima-se que o
Cerrado brasileiro, com suas 81 bacias hidrográficas, poderá perder 34% de seu
potencial hídrico até 2050. A desertificação também avança sobre a Caatinga do
Nordeste. A maior parte da alteração decorre da mudança do clima, mas conta com
forte contribuição da atividade agropecuária.
O
blecaute hídrico provocado pela agricultura, decorrente da má gestão, sempre
provocou duras consequências para a sociedade humana. Douglas Kennett, do
Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara,
descreve fases críticas da civilização maia: “O papel da seca solapou a
economia agrícola maia, mas a desintegração das cidades-Estado desse período se
desenrolou ao longo de centenas de anos, impactando a integração entre elas de
maneiras muito mais complicadas”.
A
água como elemento de estabilidade econômica e de paz para populações é velha
conhecida da humanidade. Duros alertas estão sendo assinalados: cenários de
escassez se expandem na África Subsaariana, enquanto a Unicef afirma que 190
milhões de crianças estão expostas aos ricos de falta crônica de água em
quantidade e qualidade.
Na
região norte do Brasil, a Amazônia, debaixo de fortíssimo índice de
desmatamento, vem perdendo capacidade de absorver carbono e gerar as massas de
umidade que abastecem grande parte do continente sul-americano, dando vida ao
Pantanal, à própria bacia do Plata, essencial para a Argentina, Uruguai e
Paraguai, além das regiões central, Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil.
Antonio
Guterrez, secretário geral da ONU, não poupa palavras duras contra um sistema
de gestão irresponsável que considera de “consumo vampírico e uso
insustentável” e que a ação climática e a sustentabilidade da água no futuro
são “dois lados da mesma moeda”.
É
também o que demonstram os alertas recentes do Painel Intergovernamental das
Mudanças Climáticas (IPCC), contidos no Relatório de Síntese Mudança Climática
2023, descrito pela ONU como manual para desarmar a bomba-relógio climática. A
principal ação é o corte pela metade das emissões globais até 2030.
Enquanto
isso, nas encostas de Barra do Sahy, em São Sebastião, vítima tupinambá do
desequilíbrio global, os desassistidos, depois da tragédia climática,
retornaram para suas casas. Tudo continuará como antes. A diferença será sua
permanente condição de semivigília, de luta pela vida.
Os
avanços da ciência e seus alertas não estão sendo acompanhados por políticas
públicas estatais. A Conferência sobre Água que ocorre agora em Nova York
parece ter mirado fortemente no estímulo à participação e o controle social.
Foca a edição de milhares de ações convergentes e protetivas da sociedade
civil, como beija-flores bombeiros em uma floresta em chamas.
Guterrez
reconhece a prática do vampirismo ambiental climático: a prática de economias
fósseis que alteram drasticamente a face do planeta sem abrir mão do seu modo
de vida insustentável.
O
Brasil, por sua vez, continua a destruir sua maior fonte de abastecimento
hídrico, a Amazônia. Será preciso romper com os círculos viciosos e
vampirescos, que ameaçam a segurança hídrica do território nacional e a
sobrevivência planetária.
Ø
Crise climática já
prejudica ecossistemas no planeta todo. Por Aldem Bourscheit
Cientistas
internacionais divulgaram nesta segunda-feira (20) um novo relatório
destacando que ambientes naturais planetários estão na mira da crise climática.
Temperaturas em alta e eventos extremos afetam a biodiversidade, a produção de
alimentos e sobretudo populações menos protegidas. Há soluções.
A
síntese da sexta bateria de avaliações climáticas do Painel Intergovernamental
sobre Mudança Climática (IPCC) das Nações Unidas destaca que ecossistemas
naturais em terra, rios e mares estão ameaçados pela crise que ações humanas
impuseram ao clima global.
Conforme
Moacyr Araújo, coordenador da Rede Clima e vice-reitor da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), não será possível manter uma boa saúde do clima
planetário sem atentar para a conservação e recuperação de ambientes costeiro
marinhos.
“O
grande pulmão do planeta é o fitoplâncton, que captura
imensas quantidades de Dióxido de Carbono (CO2) e devolve Oxigênio (O2) para
todos respirarem. Não há equilíbrio climático sem os oceanos”, destaca o
cientista. Acordos tentam limitar em 1,5ºC o aumento médio da temperatura
mundial, até 2030.
Nos
territórios mundiais, a elevação mediana dos termômetros já é de 1,1ºC em
relação à era pré-industrial. Nos mares e oceanos, a média é de 0,9ºC. Quanto
mais quentes, menos capacidade esses ambientes têm de absorver calor, mais
tempestades, inundações e perdas de biodiversidade virão.
“A
ampliação de temperatura acidifica os oceanos e causa impactos como o
branqueamento dos corais. Prejuízos como esses afetam toda a cadeia alimentar
em águas salgadas”, completa Araújo. Cerca de 600 milhões de pessoas no mundo
tiram seu sustento da pesca, traz a ONG Oceana.
“Espera-se
que a insegurança alimentar relacionada ao clima e a insegurança hídrica aumentem
à medida que o aquecimento aumenta. Quando os riscos são combinados com outros
eventos adversos, como pandemias ou conflitos, eles se tornam ainda mais
difíceis de administrar”, descreve o IPCC.
Por
isso, a situação em terra também é alarmante. Formações naturais cuja
destruição libera gigantescos estoques de Carbono seguem na mira do desmate
que, junto ao agronegócio e à geração de energia, somam mais de 90% da
contribuição nacional à crise do clima.
“Cada
aumento no aquecimento se traduz em perigos que se agravam rapidamente. Ondas
de calor mais intensas, chuvas mais fortes e outros eventos climáticos extremos
exacerbam os riscos para a saúde humana e os ecossistemas”, destaca um comunicado do IPCC.
O
Observatório do Clima resumiu os principais pontos do relatório divulgado hoje
pelo IPCC. Confira aqui.
Na
contramão, neste mês a Amazônia e o Cerrado bateram novos recordes em alertas
para desmatamento, mostra o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A
vegetação natural eliminada joga menos umidade na atmosfera, reduzindo as
chuvas importantes para o agronegócio.
Para
Araújo, da Rede Clima, o país deve recuperar o tempo perdido nos últimos anos
[governo Jair Bolsonaro] e concentrar esforços para cortar emissões desses três
setores. “Já reduzimos o desmate no passado”, lembra. Ações
interministeriais encolheram as perdas na
Amazônia de 2004 a 2012.
A
nova estratégia federal para combater o problema em todos os biomas reúne 19
ministérios, conta o Ministério
do Meio Ambiente.
“Também
é necessário ampliar incentivos à agricultura de baixo carbono nos
financiamentos de safras e investir em fontes alternativas de energia. Mas, não
dá pra destruir Caatinga para colocar painéis solares ou ameaçar rotas de aves
migratórias [com geradores eólicos]”, destaca o especialista.
Só
nas regiões Nordeste e Norte, projetos eólicos no mar somam 133 Gigawatts –
quase 10 vezes a capacidade da hidrelétrica de Itaipu, no Paraná. Relatório
da ONG Global Energy Monitor aponta a
América Latina como liderança global em energias com menos impactos
socioambientais.
Mas
o espaço de tais fontes ainda é sombreado por investimentos em fontes fósseis
ou degradantes de energia, como as usinas hidrelétricas. Amazônia e Cerrado têm
juntos grande potencial inexplorado por esse modelo de geração e podem
ser alvos de projetos
nos próximos anos.
Conforme
Ilan Zugman, diretor da América Latina da ONG 350.org, países como Brasil e
Colômbia têm potencial para liderar um modelo de geração de energia renovável
centrado nas necessidades das pessoas.
“Os
governos parecem estar mais atentos às demandas das comunidades por uma
transição energética justa, mas precisam mostrar ações concretas, como proibir
o fracking [técnica para extrair gás de xisto de grandes
profundidades] e os subsídios ao petróleo e ao gás”, diz em nota da
350.org.
Ações
como essas serão fundamentais para populações mais vulneráveis aos efeitos da
crise climática. Tempestades, inundações e secas atingem especialmente
comunidades pobres ou vivendo em áreas de risco, como margens de rios, morros e
litoral.
“O
que foi feito até agora [pelos países] não fez as emissões decaírem como
deveriam”, ressalta Mercedes Bustamante, presidente da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e uma dos 93 revisores do relatório hoje
divulgado pelo IPCC.
Este
verão foi marcado pela morte de, pelo menos, 241 pessoas devido às fortes
chuvas e deslizamentos de terras no litoral norte do estado de São Paulo.
Populações de baixa renda forçadas a viver em áreas de risco costumam ser as
primeiras vítimas em episódios como esses.
Mares
e oceanos aquecidos transferem mais calor à atmosfera, ampliando a força e
quantidade desses eventos climáticos extremos.
Conforme
Bustamante, soluções para as crises associadas do clima e socioambiental passam
pela adoção de um desenvolvimento socioeconômico global “resiliente ao clima”,
que reconheça a crise global e adote meios para reduzir e enfrentar seus
impactos.
“Há
opções viáveis de adaptação e mitigação à crise do clima, como reforçar
políticas públicas setoriais e assegurar direitos, por exemplo das populações
indígenas [cujos territórios mantêm biodiversidade e estoques de carbono]”,
destaca a professora da Universidade de Brasília (UnB).
A
lista de recomendações inclui a geração de energias limpas e descentralizadas,
reduzir o uso de combustíveis fósseis em todos os setores e investir em
transportes públicos e não poluentes, proteger populações vulneráveis e ampliar
o financiamento para economias realmente limpas.
Todavia,
uma pedra no sapato são as fontes para financiar tais ações. “Os níveis de
financiamento são baixos e ofuscados pelos investimentos em fósseis. É urgente
uma ação internacional [para reverter isso]”, pontua Paulo Artaxo, coordenador
do Programa Fapesp
sobre Mudanças Climáticas Globais.
“Os
benefícios à saúde humana decorrentes apenas da melhoria da qualidade do ar
seriam aproximadamente iguais ou até maiores do que os custos de reduzir ou
evitar emissões. Mas um desenvolvimento resistente ao clima torna-se cada vez
mais difícil a cada aumento no aquecimento global”, destaca o IPCC.
Este
ano, os países devem revisar seu cumprimento das metas do Acordo de
Paris, fechado em 2015 para
conter a poluição que amplia o efeito estufa e aquece o planeta. Desde 1988, o
IPCC informa governos, academia, população, ongs e setor privado, para que
possam agir e conter a alta da temperatura média global.
Fonte: ((o))eco
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