"Apologia ao
nazismo em escolas é crime", afirma educadora
A
segunda suspensão de um professor da rede pública do município de Imbituba, no
estado de Santa Catarina, por apologia ao nazismo não é um caso isolado de
extermismo em sala de aula no Brasil, observa a especialista em educação básica
pública Priscila Cruz. O docente, que já defendeu o nazismo anteriormente,
elogiou o líder nazista Adolf Hitler em sala de aula e foi gravado por um
aluno. O caso ocorreu este mês, e o professor é reincidente.
Cofundadora
e presidente-executiva do movimento Todos pela Educação, Cruz afirma, em
entrevista à DW, que a escola é um retrato da sociedade. "Não podemos nos
esquecer de que tivemos um presidente da República que fazia apologias, mais
indiretas, a esse tipo de violência", pontuou a especialista, que atua em
projetos de direito à educação. Ela lembra, ainda, que foi exatamente em Santa
Catarina que o movimento Escola Sem Partido mais floresceu, ainda que tenha
perdido fôlego nos últimos anos.
Cruz
lembra que o nazismo é crime, tão grave quanto assédio sexual. E precisa ser
assim encarado pelos gestores escolares, com posicionamentos firmes. No caso do
professor de Santa Catarina, ela afirma que ele deveria ser demitido e não
apenas afastado, obviamente respeitando-se os trâmites legais.
"É
diferente quando tem uma denúncia com flagrante muito claro e quando há um
crime muito claro também. Nestes casos tem que ser rápido, e esse professor tem
que ser demitido. Há meios. Não é porque é funcionário público que não pode ter
demissão."
Segundo
a presidente-executiva do Todos pela Educação, ainda que o governo de
transição, antes da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tenha se
debruçado sobre os casos de extremismo em escolas públicas e da rede privada no
Brasil, ainda não se viu, no Ministério da Educação, uma sinalização de
política pública para atuar nessa área.
A
única prevenção eficaz, segundo ela, reside na formação de professores.
"Em qualquer país sério do mundo, formação de professores é um assunto
seríssimo, e esse tipo de caso é debatido nessa formação. Quando o professor
fecha a porta da sala de aula, é só ele e o aluno. Ele é o grande implementador
das políticas públicas educacionais."
Leia
a entrevista:
• No caso de apologia ao nazismo em Santa
Catarina, o professor é reincidente. Que sinais de alerta esse episódio traz ao
sistema educacional brasileiro?
Priscila
Cruz: É muito preocupante, porque se a escola não for um lugar de confiança, de
tranquilidade para o debate, de tolerância, é muito difícil aprender e também é
muito difícil fazer com que a escola seja um lugar em que os quatro pilares da
educação moderna aconteçam: o aprender a aprender, aprender a conviver,
aprender a fazer e o aprender a ser. São os quatro pilares de Delors.
Para
aprender tudo isso, é necessário um lugar de confiança, onde as pessoas saibam
que o professor está ali com o melhor conhecimento disponível, cumprindo o que
está previsto na Base Nacional Curricular, o que está dentro da legalidade.
Apologia
ao nazismo é crime. Então, ter um lugar de troca saudável e desenvolvimento
mútuo é muito importante. Esse tipo de episódio revela algumas questões. Primeiro,
que é o retrato do que a sociedade vive.
A
escola não é apartada do resto da sociedade. E a sociedade vive um momento de
intolerância, vive um momento do ressurgimento de ideias extremistas, de
aniquilamento do outro, aniquilamento do inimigo, e de fabricação de inimigos,
inclusive, que foi exatamente o caso do nazismo: fabricação de inimigos para
ter o poder aumentado.
É
tarefa de todos repudiar esse tipo de manifestação, esse tipo de comportamento,
para que na escola também não haja esse tipo de episódio. Não é um caso
isolado. Circulo por escolas do Brasil inteiro, e há casos absurdos, alunos
reclamando de professores, professores reclamando de alunos.
E
aí vem o segundo ponto: isso cria um ambiente ruim, tóxico, que faz com que
aprendizagens não aconteçam. O aluno tem o desenvolvimento em várias dimensões:
cognitivo, emocional, psicológico e físico. Pegando o desenvolvimento físico,
por exemplo: qual a confiança de preservação física, do próprio corpo, que um
aluno vai ter em relação a um professor que faz apologia ao nazismo?
Será
que ele vai ser tolerante em relação ao pensamento diferente? Aprendizado é
confiança. Algo pouco falado, quando o assunto é educação, é que aprendizagem
acontece a partir de uma conexão entre professor-aluno. E essa é uma conexão de
confiança. O aluno que vê o professor fazendo apologia ao nazismo não confia
nem em sua integridade física.
Há
um terceiro aspecto: Santa Catarina, e em lugares em que isso [episódios
extremistas] é mais forte, não por acaso também foi onde o Escola Sem Partido
foi mais forte. É um movimento, na verdade, que tem partido. Sempre defendeu
que os professores tivessem posicionamentos radicais de direita. Manifestações
de esquerda não eram admitidas.
É
um movimento que acabou morrendo por seu próprio radicalismo. O que está
acontecendo coloca em xeque a ideia de que os professores de escolas públicas e
particulares tentam fazer doutrinação de esquerda. O que temos visto é
exatamente o oposto. O que vem crescendo é um movimento de intolerância e de manifestações
que se sentem livres por serem de direita.
• O professor desse caso foi afastado por
60 dias. Isso é correto? Ele é reincidente, pois já havia sido afastado em
novembro.
As
manifestações violentas na escola são reproduções de manifestações violentas
que temos visto nos mais altos cargos de poder. Não podemos nos esquecer de que
tivemos um presidente da República que fazia apologias, mais indiretas, a esse
tipo de violência.
Apologia
ao nazismo é crime tanto quanto importunação física ou assédio sexual dentro da
escola. Estamos falando de crime grave. É crime, não é comportamento
inadequado. Nesses casos a apuração tem que ser rápida.
Digo
apuração porque em qualquer caso é preciso dar direito à defesa, espaço amplo
para que todos os envolvidos possam tanto denunciar quanto se defender. Isso é
importante, porque vivemos numa democracia, precisamos preservar o processo
legal e o Estado democrático de Direito.
Mas
nesse caso, em que há flagrante, provas, tem que ter não só o afastamento, mas
a demissão desse funcionário público porque isso é absolutamente incoerente com
a prática para a qual ele foi contratado. É diferente quando há uma denúncia
com flagrante muito claro e quando há um crime muito claro também. Nesses casos
tem que ser rápido, e esse professor tem que ser demitido. Há meios. Não é
porque é funcionário público que não pode ter demissão. Existe essa crença de
que funcionário público é difícil de demitir. É difícil quando a Secretaria de
Educação não quer se indispor, quando faz parte de um governo que, na verdade,
acha que isso não é crime grave. Mas é. E ele tem que ser demitido.
• Estes episódios de extremismo, racismo,
apologia ao nazismo, xenofobia, violência nas escolas foram debatidos na equipe
de transição de governo antes de Lula tomar posse na Presidência. Está sendo
desenhada alguma política nacional de prevenção?
De
fato, na transição, esse tema foi discutido. Até mesmo foi produzido um texto.
Não tenho notícias de o Ministério da Educação (MEC) ter alguma política
formulada nesse sentido. O que temos feito, e estamos apoiando, é melhorar a
formação inicial e continuada de professores, que é a melhor forma de
prevenção.
A
formação prepara o professor para uma atividade extremamente complexa, apesar
de a sociedade achar que basta você gostar de criança, basta saber matemática,
e isso faz com que a pessoa possa ser professor. Isso não é verdade.
Em
qualquer país sério do mundo, inclusive na Alemanha, formação de professores é
um assunto seríssimo, e esse tipo de caso é debatido nessa formação. Casos como
esse de Santa Catarina precisam ser debatidos e precisam ser usados como
material de formação tanto na universidade quanto na formação continuada, que
acontece nas escolas.
Se
isso não entrar na formação de professores, pode-se fazer campanha, pode-se
escrever artigos, pode haver pronunciamento do ministro... pode ser o que for
[que não terá eficácia]. Quando o professor fecha a porta da sala de aula, é só
ele e o aluno. Ele é o grande implementador das políticas públicas educacionais.
É ele que está ali, em última instância, fazendo com que todas as políticas
públicas sejam implementadas.
A
formação de professores é a única saída de verdade para evitar esse tipo de
episódio. Se não quisermos que esta seja a nova realidade da educação
brasileira, temos que cuidar da formação do professor, de condições de trabalho
decente para esses professores, de trocas saudáveis com outros profissionais.
Porque veja: o professor que faz uma coisa dessas se sente absolutamente à
vontade para fazer isso dentro daquela escola.
E
aí vem outro ponto: a gestão escolar. O diretor ou diretora dessa escola, e de
todas as escolas brasileiras, precisa ficar atento, colocar esse tema nas
agendas e precisa ter um clima escolar que repudie comportamentos extremistas
de professores. Tanto quanto assédio sexual. Da mesma forma que repudiamos
comportamentos sexualmente indevido por parte de adultos em relação a crianças
e jovens, também temos que repudiar apologia ao nazismo e esse tipo de crime.
• Se esse professor não for demitido, há
algo que as famílias possam fazer?
Tem
que ter pressão em cima da Secretaria de Educação. Claro que a palavra final é
sempre do processo administrativo da escola, mas a Secretaria de Educação faz
parte de uma estrutura política. A pressão funciona. Tem que pressionar.
Brasil teve 23 ataques violentos a
escolas em 20 anos, diz estudo
Ocorreram
23 ataques com violência extrema em escolas no Brasil entre 2002 e 2023,
segundo levantamento feito pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Em
20 anos, morreram 24 estudantes, quatro professores e dois profissionais de
educação. Nesta segunda-feira (27), uma professora da escola estadual de São
Paulo de 71 anos entrou na estatística ao ser morta a facadas por um aluno.
Em
entrevista ao programa Estúdio i, do canal pago GloboNews, pesquisadora Telma Vinha, da Faculdade de
Educação e Coordenadora do Grupo “Ética, Diversidade e Democracia na Escola
Pública” do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp, afirmou que são
necessárias ações para que os ataques sejam evitados.
A
especialista apontou que o trabalho de acompanhamento do comportamento dos
alunos na escola e no seu dia a dia pode ser eficaz para identificar possíveis
planos violentos nas escolas.
“Muitos
claramente colocam na internet que vão atacar a escola. Sabemos que vai
acontecer de novo, só não sabemos quando. Quando você atinge uma escola, você
atinge uma comunidade. A escola faz parte da identidade das pessoas”, explicou.
Os
pesquisadores demonstram preocupação com o crescimento de ataques entre 2022 e
2023. No segundo semestre do ano passado, aconteceram sete episódios, enquanto
neste ano já foram registradas duas ocorrências. “Isso é muito sério. O
crescimento é exponencial”, pontuou a professora.
>>>>
Confira os dados da Unicamp sobre violência dentro de escolas de 2002 a 2023:
-
Escolas estaduais: 12
-
Escolas municipais: 7
-
Escolas particulares: 4
Mortes
(2002 - 2023):
-
Estudantes: 24
-
Professores: 4
Publicidade
-
Profissionais de educação: 2
Motivos:
-
Vingança
-
Raiva
-
Usuários de cultura extremista
Fonte:
Deutsche Welle/iG
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