Piero Stefani: O
suicídio de Israel e a questão de Gaza
Em uma entrevista
já antiga concedida em 1986 ao Journal of Palestine Studies, o grande
intelectual israelense Yeshayahu Leibowitz (1903-1994) se posicionava
contra a visão repetida de que a vida na diáspora judaica estaria
sempre exposta aos perigos. A história europeia, argumentava o entrevistador,
ensinou aos judeus que a assimilação não garante a segurança pessoal, e é por
isso que os judeus decidiram se tornar donos de seu próprio destino exercendo a
autodeterminação.
Leibowitz respondeu
que, naquela janela do século XX, os judeus estavam seguros em todos os
lugares, especialmente nos Estados Unidos, exceto em Israel. Os israelenses
estão expostos ao perigo por causa de um conflito contínuo que os coloca contra
o mundo árabe e muçulmano. Esse é o preço que foi preciso pagar para a
conquista da independência política e nacional.
A retórica
de Israel como um “Estado refúgio” ainda persiste, mas agora é uma
perspectiva consignada a uma dimensão puramente verbal. Entre o final do século
XIX e o início do século XX, o grande número de judeus do Império
Russo que fugiram dos pogroms e se refugiaram nos Estados Unidos fizeram
uma escolha mais previdente em relação à segurança deles mesmos e de seus
descendentes do que a minoria que foi fundar as colônias agrícolas na “terra
dos pais”.
·
Estado
refúgio ou armadilha mortal?
A repetida alegação
de que, se o Estado de Israel já tivesse existido, os judeus
europeus em grande número teriam se salvado do Holocausto, pode ser objetada
com uma afirmação igualmente hipotética de que, se as tropas nazifascistas
tivessem vencido a batalha de El Alamein, o território que se estende do
mar até o rio Jordão teria se transformado em uma armadilha mortal para os
judeus.
Se o objetivo
principal do sionismo político tivesse sido criar uma pátria onde os
judeus, perseguidos em todos os lugares, pudessem finalmente viver em paz, seu
fracasso histórico seria evidente.
Além do perigo ao
qual os israelenses ainda estão expostos, soma-se o fato de que, desde sua
criação (1948), a questão da segurança tem sido um fator tão predominante
para Israel a ponto de moldar o ethos de toda a nação (um
dos fatores de identidade mais importantes para Israel sempre foi
o serviço militar obrigatório estendido a homens e mulheres).
Como Bruno
Segre escreveu há mais de 20 anos nas colunas desta revista,
prevaleceram por muito tempo em Israel opções políticas convencidas
de que seria a segurança que levaria à paz e não o contrário. O resultado
dessa opção resultou na falta de ambos os fatores. Além disso, certas escolhas
estratégicas e políticas qualificadoras das várias lideranças israelenses
acabaram se revelando fatores que contribuíram para alimentar a insegurança até
mesmo dos judeus que vivem na diáspora. Um indicador evidente disso é o
crescimento preocupante do antissemitismo. Se, por outro lado, o objetivo
primordial do sionismo é identificado no duplo objetivo de restituir
aos judeus, entendidos como povo, um papel ativo na história mundial e formar
uma sociedade na qual os judeus, uma minoria em todos os lugares, enfim
constituam a maioria, então seu sucesso histórico seria impressionante. Os dois
“ses” introduzidos na última série de considerações apontam, de fato, para a
questão, longe de ser acadêmica, de qual seria o núcleo profundo do sionismo
(entendendo-se que uma compreensão histórica adequada do fenômeno comportaria
falar no plural de sionismos).
É justamente com
essa chave que se abre a seção histórica do recente livro de Anna
Foa, Il suicidio di Israele. A alternativa proposta pela autora
concentra-se na questão de saber se o sionismo deve ser considerado
um movimento de autodeterminação nacional ou se deve ser entendido como um
evento colonial. Entre todas as ideologias abraçadas pelos judeus na época
moderna, o sionismo é a mais radical devido ao fato de propor uma ruptura muito
clara com o passado.
Essa cesura
revolucionária implicou uma ruptura dentro do mundo judaico; isso aconteceu, em
grande parte, por causa da proposta de construir um Estado nacional, uma
hipótese até então inédita em âmbito judaico (cf. FOA, Il suicidio di
Israele, 14). O projeto, antes de mais nada, despertou não poucas oposições
internas e hoje ainda é apenas prerrogativa de franjas marginais.
Foi um fenômeno não
comparável a outras questões nacionais. O movimento sionista exigia,
para a criação de um Estado governado por judeus, o deslocamento da população
da Europa para um território localizado em outro continente (a subsequente
emigração judaica para Israel de países árabes, do Irã e da Etiópia ficou
atrelada ao fato de que o Estado já existia). Torna-se inevitável, então,
evocar o espectro do colonialismo.
·
A
cesura da Nakba
O sionismo não é, no
entanto, uma realidade comparável à expansão colonial europeia dos séculos XIX
e XX; nesse caso, de fato, a conquista de territórios africanos e asiáticos
deve ser atribuída, em sua maior parte, a ações empreendidas por Estados já
existentes. Um grupo de imigrantes convencidos de serem portadores de uma forma
superior de civilização que se encontra e, acima de tudo, se confronta com uma
população já estabelecida em um determinado território expressa, ao contrário,
uma dinâmica comparável à que ocorreu com o nascimento e a expansão
territorial dos Estados Unidos.
Se adotássemos a
categoria colonial, teríamos de recorrer à categoria de colonialismo
de assentamento.
Essa forma de colonialismo sempre comporta a presença de uma forte
marginalização, apartheid ou exploração da população autóctone; entretanto,
geralmente não dá origem a expulsões forçadas de população.
Durante o período
do regime mandatário britânico, se registraram momentos de altíssima tensão,
confrontos abertos e violências brutais tanto do lado judeu quanto do árabe
(basta pensar, em primeiro lugar, na revolta árabe de 1936-1939), mas não
houve verdadeiras expulsões de habitantes nem formas de controle judeu sobre
uma população árabe. O quadro sofreu uma mudança primeiro em
1948, com o nascimento do Estado de Israel, e depois, em 1967, com a Guerra
dos Seis Dias.
O primeiro caso produziu o início da diáspora palestina, o segundo a
ocupação e o controle israelense sobre territórios habitados por
palestinos.
O afastamento
forçado dos palestinos entre 1947 e 1949 é um capítulo de um debate que vai
além da dimensão historiográfica. A questão tornou-se parte integrante da
identidade dos dois povos, muito forte no caso palestino, que a qualifica
como Nakba, mas longe de ser marginal, pelo menos
reflexivamente, em Israel. O número de refugiados, inicialmente em torno de
700.000, aumentou sete vezes. As pesquisas históricas mais credenciadas são
atribuídas a Benny Morris (cf. FOA, Il suicidio di Israele, 34 e
segs.).
As duas motivações
de afastamento mais expostas a usos ideológicos são, na realidade, secundárias:
o abandono da própria residência por ordem dos árabes chega a apenas 2%,
enquanto a expulsão direta pelas forças armadas judaicas é atestada em 14%. Por
outro lado, é muito mais consistente o fator constituído pelo ataque militar
aos assentamentos: 59%. Sejam quais forem as razões originais do fenômeno, o
fato é que os refugiados ainda hoje representam um fator que pesa, de modo
determinante, em qualquer processo de normalização.
O resultado
da guerra de 1967 levou ao controle israelense sobre a Cisjordânia
e Gaza.
Uma de suas consequências foi que Israel teve de lidar diretamente com uma
porcentagem não desprezível de pessoas pertencentes a núcleos familiares
afastados à força de suas casas e propriedades em 1947-1949. Disso a visão que
se questiona se o sionismo teria introjetado componentes coloniais desde o
nascimento do Estado e não apenas com as ocupações após a Guerra dos Seis
Dias.
Formalmente, foi
anexada ao Estado de Israel apenas uma quantidade reduzida de
territórios conquistados em 1967 (Jerusalém velha e Leste; as Colinas de Golã). Além disso,
após os Acordos
de Oslo (1993),
foi criada a Autoridade Nacional Palestina (ANP). Esses dois fatores
são suficientes para excluir a compreensão de que, atualmente, o Estado de
Israel controla, de modo direto, indireto e diversificado, toda a área sobre a
qual o futuro Estado palestino deveria surgir.
·
Os
colonos e o Hamas
Um dos fatores,
certamente não o único, que caracteriza o controle israelense sobre os
territórios está ligado à presença crescente de colonos. Um fenômeno que é
muito diferenciado internamente e, após a decisão tomada pelo governo
de Ariel Sharon (2005), não mais deslocado para Gaza. O fato é
que hoje o número de colonos presentes na Cisjordânia é essencialmente
equivalente ao de refugiados palestinos de 1947-1949: um dado real
não desprovido de aspectos simbólicos.
Por esse motivo,
apesar da catástrofe
histórica, humanitária e política em curso em Gaza, o maior peso
sobre o futuro assentamento da área ainda deve ser atribuído
à Cisjordânia; é sobretudo em relação àquela área que se decidirá
transformar em direito uma ocupação de fato ou de tornar aquele território o
núcleo central de um futuro Estado palestino independente, uma hipótese,
esta última, aliás, excluída por uma votação do Knesset em julho de
2024 (68 votos a favor em 120).
Em agosto de
2023, Saleh Al-Aruri (alto líder do Hamas assassinado no
subúrbio de Beirute por um ataque aéreo israelense em janeiro deste
ano) declarou que em breve seria deflagrada uma guerra entre o Hamas e
Israel com o objetivo de sabotar a aproximação entre o Estado
judeu e a Arábia Saudita. A
intenção era impedir qualquer possível extensão dos Acordos de Abraão (2020),
que os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein também já haviam assinado. A
normalização com Israel promovida pelos acordos era impulsionada por uma
oposição comum ao Irã. A antítese de décadas entre sunitas e xiitas é um fator
decisivo na atual situação do Oriente Médio.
Esse estado de
coisas repercute de forma ambivalente nas guerras lideradas por Israel
atualmente.
O Hamas, que
surgiu da vertente palestina da Irmandade Muçulmana (sunita), é
apoiado muito mais pelos Hezbollah (xiitas) e pelo Irã do
que pelos Estados árabes sunitas. As duas frentes atuais da guerra travada
por Israel, Gaza e Líbano e, por extensão, o Irã,
comprovam isso. A questão palestina é um setor, em muitos aspectos
trágico, mas não decisivo, de um cenário mais amplo que é prenúncio de um
futuro e ainda imprevisível rearranjo da ordem dentro de todo o Oriente
Médio.
O livro
de Anna Foa não aborda de forma consistente esse nó decisivo. O
motivo, obviamente, não deve ser buscado no fato de a historiadora não estar
ciente desse evidente tema. Em vez disso, o motivo deve ser buscado no
fato de que as relações com o Irã e seus desdobramentos
(Hezbollah, Houthis) não se repercutem de forma aguda na relação entre
o Estado de Israel e a diáspora judaica, um entrelaçamento que,
em vez disso, constitui o ponto crucial íntimo por trás da escrita de Foa.
Considerações em
grande medida semelhantes se aplicam a outro livro recente, de Gad Lerner. Gaza, Odio e
amore per Israele (Gaza, Ódio e amor por Israel, preste-se atenção a
precedência do termo adversativo ao afetivo),
Essa atitude é
assumida pelos dois autores não por serem pressionados por solicitações
externas, sempre questionáveis. A razão é outra: a realização do projeto
sionista fez com que, hoje em dia, todo judeu encontre no confronto
com Israel, seja qual for a maneira como ele ocorra, um fator que afeta
diretamente sua própria identidade.
A revolução
sionista modificou a maneira de ser judeu ainda mais do que a memória do
Holocausto. Como ainda acontece no âmbito de determinados grupos
ultraortodoxos, é possível adversar a própria existência do Estado de
Israel; para todos, entretanto, é impossível viver como se não existisse. Isso
é ainda mais verdadeiro na situação atual, quando se atenuou significativamente
a distinção entre judeu e israelense, que ainda estava presente na década de
1980, quando a diáspora europeia e, de diferentes maneiras, também aquela
estadunidense, ainda tinha sua própria fisionomia específica (cf. FOA, Il
suicidio di Israele, 57).
·
A
questão dos dois Estados
Os livros
de Foa e Lerner têm como ponto comum a convicção de que a
crítica à atual liderança israelense tem o duplo propósito de reafirmar os
valores mais nobres presentes no ethos da diáspora judaica e
contrastar a atual deriva (para não dizer suicídio) que
caracteriza Israel. Somente dessa forma será possível atribuir novamente
ao termo antissemitismo o significado semântico que lhe é próprio,
sem transformá-lo em uma espécie de passe-partout distorcido estendido a toda
crítica feita à condução política israelense.
Os massacres
de 7 de outubro são,
sem dúvida, hediondos “crimes contra a humanidade”. No entanto, as modalidades
das reações israelenses fizeram rapidamente arquivar a lembrança.
O Hamas previa que a resposta ao massacre do “Sábado Negro” seria
um ataque aéreo israelense em massa, cujas consequências, em poucos dias,
teriam direcionado “a maioria da opinião mundial a favor dos palestinos,
transformando-os novamente em vítimas da superioridade militar israelense, a
fim de passar para o segundo plano o massacre de 7 de outubro, como
efetivamente aconteceu”.
Contar
preventivamente com a morte de um grande número de membros da própria população
a favor da qual se afirma querer lutar, atesta, por si só, o nível de fanatismo
martirial presente na liderança do Hamas.
O que
o exército israelense está fazendo em Gaza pode não ser
um genocídio, mas é
inquestionavelmente um “crime contra a humanidade” (FOA, Il suicidio di
Israele, 86), realizado por um Estado que se proclama de forma altissonante “a
única democracia do Oriente Médio, mas que não hesita em atingir idosos e
crianças para matar um único chefe do Hamas. Um chefe que será substituído por
outro após alguns dias” (FOA, Il suicidio di Israele, 87).
Disso decorre a
pergunta: “E os judeus do mundo, daquela diáspora que enche a boca e
a mente com a ética judaica e o pensamento judaico, como podem
aceitar isso sem reagir? Como podem apenas falar sobre o antissemitismo sem
olhar para o que está causando sua explosão no momento, a guerra de Gaza?”
(ibid.).
Como sair dessa
situação? O Hamas não pode ser destruído politicamente sem iniciar um
processo que leve à criação de um Estado palestino que isole os
extremismos simétricos presentes nos dois campos. Como disse Yitzhak
Rabin, a paz é negociada com o inimigo. No entanto, não resta dúvida de que a
explosão de ódio em ato tornará longo “o caminho não para a paz, mas para a
simples convivência” (FOA, Il suicidio di Israele, 91).
A solução
de dois Estados é
agora considerada por muitos como inviável, assim como a de um Estado
binacional. O único caminho viável poderia talvez ser a hipótese proposta
por Guido Viale (citada
por Lerner e retomada, sem citá-la, em um apelo recente promovido
por Raniero
La Valle)
] aquela da superação da atual “forma de Estado”? Lerner não é dessa opinião;
apesar dos grandes obstáculos que caracterizam, a perspectiva de “dois povos,
dois estados” continua sendo um cenário que não deve ser descartado: “Mas é
evidente que praticar a paz em um território tão desigual comportará
complicadas e inovadoras soluções de natureza cantonal e confederal” que,
necessariamente, terão que envolver o desmantelamento parcial
dos assentamentos judaicos na Cisjordânia, enquanto quem entre
os colonos “quisesse permanecer a todo custo lá onde se assentou, terá que se
resignar a ter um passaporte palestino”.
A hipótese de “dois
povos, dois Estados” perde credibilidade se for apresentada como uma espécie de
mantra na boca de líderes internacionais que mal têm consciência da
profundidade dos abusos, dos dramas e do ódio que acometem populações inteiras.
No entanto, o que Michael Walzer escreveu há alguns anos também continua
sendo verdadeiro: “A solução de dois Estados talvez também seja uma ilusão -
existe de fato um alinhamento significativo de forças que se opõem a isso
em ambos os lados - mas a ideia é mais realista [do que a criação de um único
Estado]. Sabemos, de fato, como criar estados-nação, temos uma longa
experiência nisso. Não sabemos como criar a comunidade política ideal que os
partidários do Estado único dizem desejar”.
Fonte: IHU
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