Para entender (e enfrentar) o novo fascismo
A vitória de Javier Milei na Argentina traz algumas
pistas sobre como a extrema direita consegue se organizar, política e
eleitoralmente, em países, contextos e situações distintas.
Primeiro, é necessário ver que a própria gramática
da política mudou com a ascensão dos extremistas, assim como os instrumentos de
análise. Se há poucos anos candidatos se esforçavam para dar entrevistas a
jornalistas renomados e publicar artigos em jornais impressos mais relevantes,
por exemplo, hoje eles dispensam intermediários e dão preferência às redes
sociais. Sai a linguagem escrita, e muitas vezes a falada, e ganham relevância
a imagem e o meme.
Também era comum que políticos tivessem sua
oratória elogiada. Ainda hoje, a memória política de pessoas mais velhas está
recheada de discursos antológicos feitos em comícios. Hoje, o palco dá voz a
candidatos que são performers, personagens de si. Também por conta disso, o
desastroso desempenho de Milei no debate realizado uma semana antes do segundo
turno não afetou sua campanha.
Em um artigo publicado em 2022, o filósofo e
professor da USP Vladimir Safatle apontava que “em um momento histórico, no
qual informação e entretenimento se tornam indistinguíveis, no qual os padrões
de comunicação da indústria cultural se tornam ‘naturais’, não há surpresa
alguma em encontrar políticos que falam como esse ‘povo’ construído pela
cultura de massa, com suas dicotomias, com sua concepção de história saída
diretamente de seriados de televisão, com seus heroísmos de filme de ação”.
Nesse aspecto, descrever aspectos caricaturais ou
mesmo a ignorância de figuras como Milei, Trump ou Bolsonaro apenas reforça a
imagem que querem passar às pessoas. “Ou seja, em uma época na qual a indústria
cultural forneceu em definitivo a gramática da política, fica mais fácil a
extrema direita passar por aquela que fala a linguagem do povo”, disse ainda
Safatle.
• O
conceito vazio de liberdade
As mensagens enviadas por estes candidatos são
múltiplas. O individualismo exacerbado tem o seu limite na noção restritiva de
“família” e, dentre os muitos inimigos de ocasião fabricados na retórica
extremista, o Estado é o principal, como radicalizou em sua proposta Javier
Milei. Ele é vendido como aquele que atrapalha a “liberdade” das pessoas. No
cenário onde o empreendedorismo é louvado, o caminho deve estar “livre” para a
pessoa ser bem sucedida.
Em um país no qual a política está desacreditada,
como a Argentina, com a economia em situação caótica, um discurso assim pode
soar como música. Mas mesmo em países onde o estado de bem-estar social é mais
avançado e consolidado, qualquer ameaça de disrupção pode ser um gatilho. Não é
à toa que a extrema direita cresce também em boa parte da Europa, inclusive em
locais com elevado IDH. O extremismo vive e se alimenta de crises e qualquer
uma delas abre uma janela de oportunidades em um mundo onde as transições se
dão velozmente.
Em uma entrevista concedida em 2020, a antropóloga
Letícia Cesarino apontava como este discurso conseguia ser exitoso no país no
período da pandemia. “O Brasil tem todo um histórico de abandono de parte da
população pelo Estado. É muito impressionante do meu ponto de vista e das
pesquisas que tenho feito como de fato muitos brasileiros não esperam nada do
Estado. Eles nem cogitam que o Estado deveria apoiar de forma mais decisiva e
constante para fazerem o isolamento social e ficar em casa. Então são dois lados,
o individualismo, esse desejo de liberdade individual, e junto uma desconfiança
em relação ao Estado enquanto entidade coletiva que organiza a nossa
sociedade.”
Essa noção distorcida de liberdade, tendo como
parâmetro único o indivíduo, acaba afetando as mais diversas percepções. A
questão da vacinação no Brasil foi um exemplo concreto. “O próprio fato de as
pessoas acharem que a vacina é uma opção individual demonstra um
desconhecimento completo de como a própria lógica científica da vacina
funciona. Não adianta algumas pessoas tomarem e outras não. A imunidade da
vacina só pode ser coletiva, isso para qualquer vacina, não só a da covid-19.
Mas é impressionante como esse nível social de causalidade não faz mais sentido
para as pessoas, infelizmente”, lamentava Letícia à época.
• Imediatismo
Além da linguagem e da gramática, é preciso atentar
também para algo que já foi dito aqui, o predomínio que existe hoje em boa
parte do mundo dos valores da doutrina neoliberal. Ainda que acumule fracassos
do ponto de vista econômico, o receituário que prega o individualismo e
demoniza o Estado tem se tornado dominante do ponto de vista cultural. Isso
implica também em imediatismo e impaciência, campo fértil para as soluções
aparentemente simples vendidas pelos extremistas.
“Assim como quando vencem os progressistas, hoje
que venceu a extrema direita na Argentina digo a mesma coisa: as pessoas não
votam segundo linhas ideológicas. Você está votando contra o que existe com
base no que você percebe em seu contexto imediato. E os ciclos políticos estão
ficando mais curtos”, resume, em seu perfil no Twitter, o cientista político
Elvin Calcaño Ortiz.
Talvez o problema de parte políticos tradicionais
seja este: o timing. Acostumados a um tempo das ações diferente, não conseguem
se adaptar a tais ciclos curtos, às vezes curtíssimos, em que a vontade do
eleitor pode mudar sem aparentemente qualquer evento externo que justifique a
mudança.
O professor de ciência política e relações
internacionais na Universidade do Sul da Califórnia Gerardo Munck chamou a
atenção para o fato de que, em 18 eleições realizadas na América Latina desde
2019, apenas no Paraguai o governo de turno saiu vitorioso, com a oposição
vencendo nos demais. Ainda que opositores de esquerda e direita tenham
triunfado, este estado de coisas é desfavorável aos esquerdistas, já que, uma
vez no poder, costumam enfrentar a insatisfação das elites econômicas e da
mídia tradicional.
• Retorno
a um passado glorioso
Se Donald Trump incorporou o retorno a um passado
idílico com seu principal slogan de campanha, Make America Great Again (Torne a
América Grande Novamente), Javier Milei também invocou o passado como farol
para o futuro da Argentina.
Recorrente em sua campanha, no comício de
encerramento do primeiro turno lá estava a sua promessa. “Temos que voltar a
abraçar as ideias da Constituição de (Juan Bautista) Alberdi. Temos que voltar
a 1860, quando de um país de bárbaros, em 35 anos, nos convertemos na primeira
potência mundial”, disse. Com base neste período tido como áureo, prometeu um
padrão de vida semelhante ao da Itália ou França, em um período até 15 anos, e
o da Alemanha, em 20. “Se me derem 35, Estados Unidos”, enfatizou.
A construção e resgate de um passado que não
considera nem índices de desigualdade e nem opressão e submissão de segmentos
inteiros da sociedade se coaduna com a defesa dos ditos valores da família
tradicional, uma cidadela contra as mudanças que incomodam parte dos segmentos
ressentidos da sociedade. Mas muitas vezes também comunicam aos jovens que “si,
si puede”, já que o país teria sido melhor em outros tempos e deixou de sê-lo
por conta dos inimigos tradicionais: a esquerda, os corruptos, a casta que teria
se apossado do Estado.
Isso permite ainda que o passado histórico recente
seja ressignificado, como fez e ainda faz Bolsonaro no Brasil, ao adotar uma
versão revisionista da ditadura militar, algo que Milei também reproduziu na
Argentina.
• A
naturalização da extrema direita
“La Nación e La Nación+ funcionam na prática como
assessoria de imprensa de Macri, agora a serviço da campanha de Milei”,
relatava o jornalista, escritor e ativista LGBTQIA+ argentino Bruno Bimbi na
semana que precedeu a eleição. De fato, não foram poucos os veículos da mídia
tradicional argentina que optaram por estar ao lado do hoje presidente eleito
no segundo turno.
E não só de adesão explícita se faz um candidato
extremista, mas também de uma omissão cúmplice. Assim como no Brasil e em
outros países, personagens com propostas esdrúxulas, que espalham preconceito e
desinformação, não são devidamente confrontados. Em geral, ficam sem ser
incomodados por um cômodo jornalismo declaratório (que, de fato, não é
jornalismo), mero repetidor de falas sem contestação.
Este é um dos efeitos de uma mídia concentrada
economicamente, com poucas pessoas dando as cartas em oligopólios e monopólios
da informação historicamente construídos no mundo e, em especial, na América
Latina, onde estão os quadros mais severos.
“Naturalizados”, tais personagens não são
apresentados na mídia tradicional como ameaças à democracia, nem mesmo quando
profissionais desta mesma imprensa são agredidos verbal e mesmo fisicamente,
como chegou a acontecer no Brasil e na Argentina. A postura beligerante de
Milei fez com que a Human Rights Watch e a Repórteres Sem Fronteira emitissem
nota expressando preocupação com sua eleição.
• E a
“direita democrática”?
O triunfo de Milei foi viabilizado graças à
transferência massiva de votos da terceira colocada, Patricia Bullrich, do
Junto por el Cambio, coligação liderada pelo macrismo. E, para governar, o
futuro presidente também terá que contar com o apoio deste segmento, incluído
por ele mesmo no que definia pejorativamente como “casta política”.
A atração pelo poder faz com que a direita ou
centro-direita logo amenize ou mesmo chegue a imitar os discursos e prática da
extrema direita. Figuras como Simone Tebet ou Geraldo Alckmin, que no Brasil
fizeram o movimento contrário, são exceções dentro da regra e da régua dos
políticos deste campo.
O problema é que a aliança oportunista oferece
poucas opções para o retorno. Ou se dá uma completa absorção deste segmento
pelo campo extremista, gerando transformações em que o aliado se torna mais
“autêntico” do que os originais (vide Roberto Jefferson) ou logo ele vai para
as margens da política, se tornando coadjuvante. O ocaso do PSDB mostra isso no
Brasil, mas não é o único exemplo.
Nos Estados Unidos, o Partido Republicano se tornou
a feição mais acabada de Donald Trump. Nas primárias para 2024, seus eventuais
adversários entoam a mesma canção do ex-presidente, fundada em preconceito,
xenofobia, defesa de supostos valores familiares e proposição de medidas
ultraliberais.
Se parte da mídia tradicional serve de escada para
a ascensão destas figuras ao ser cúmplice, omissa e às vezes parceira ativa, é
a direita/centro-direita que pavimenta o caminho para o exercício do poder. A
defesa da democracia não serve nem como retórica.
• A
extrema direita pós-Milei
Fora da Argentina, apoiadores da extrema direita se
animaram com o triunfo de Javier Milei. Bolsonaro foi convidado para a posse e
seu séquito de seguidores vibrou, projetando um retorno ao poder em 2026 (não
se sabe ainda com quem, já que o ex-presidente é inelegível).
Também houve celebração no México e até mesmo entre
conservadores dos Estados Unidos. “Se alguns aparentemente não se preocupam com
o que se passa na Argentina, devo alertar que a Argentina não é o Brasil de
ontem. A Argentina pode se tornar o Brasil de amanhã, pois poderia engajar uma
nova onda em tendências do bolsonarismo, inclusive nessas outras
radicalidades”, postou o historiador e coordenador do Observatório da Extrema
Direita Odilon Caldeira Neto.
Estes extremistas vão olhar para a Argentina
inclusive para saber se Milei concretizará suas propostas mais radicais ou se
será moderado pelos macristas, entregando o comando da economia e se baseando
em manobras diversionistas para mobilizar o apoio a seu governo.
Já à esquerda, tanto lá quanto no Brasil e em
outros países, cabe também observar e mesmo adaptar para si uma das
características principais deste segmento. Sua estratégia de fazer política vai
muito além da eleição. São mobilizações permanentes nas redes sociais onde
travam o que eles mesmos chama de “guerra cultural”, terreno no qual têm sido
bem sucedidos ao propagar valores discriminatórios fundamentados numa falsa
“liberdade de expressão”, contando ainda com influencers e veículos que os
repercutem.
Resultados como os da Polônia, no qual mulheres e
jovens, em especial, foram fundamentais para tirar um regime extremista do
poder, mostram que não é uma batalha perdida, ainda que desigual, já que parte
significativa do poder econômico encampa o extremismo, contanto que seus lucros
fiquem intactos ou aumentem.
Também nos Estados Unidos, mesmo com o avanço do
campo trumpista, o direito ao aborto foi reafirmado em todos os estados que
fizeram referendo após aSuprema Corte ter revertido o precedente Roe v. Wade,
que assegurava a interrupção da gravidez como um direito constitucional. Agora,
os republicanos temem que a questão surja na eleição presidencial de 2024 por
entenderem que ela beneficiaria os democratas, favoráveis ao direito. Lembrando
ainda que hoje a maioria do país vive em áreas em que o uso recreativo da
maconha, outro “espantalho” da extrema direita, é legalizado.
São alguns exemplos de que não há derrotas
irreversíveis nestes ciclos curtos da política. Mas é preciso lidar com essa
nova gramática e entender o jogo praticado pelos extremistas.
Fonte: Por Glauco Faria, em Outras Palavras
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