Nossa República, entre atônitos e mandachuvas
Segundo o calendário cívico, comemoramos 134 anos
de uma República por ser, sucessora de uma velha monarquia, arcaica de nascença,
filha do latifúndio e do escravismo, espaço de insurreições, golpes militares,
intentonas e muitos anos de ditaduras e governos autoritários.
Contados a partir da Constituição de 1891, foram
seis estatutos políticos, duas cartas outorgadas e apenas quatro assembleias
constituintes.
Somente a derradeira, a de 1988, algo próxima da
soberania popular, leito onde as democracias recolhem legitimidade.
Se, antes, a Independência de 1822 resultara de
dispendiosas negociações com o Império inglês, metrópole de Portugal, desta
feita a mudança de regime operava segundo a marca indelével de nossa história,
da colônia aos dias presentes: a regência política de cima para baixo.
Assim, nasceria, pela via de um golpe de Estado
gerado pela oficialidade jovem do exército acantonada no Rio de Janeiro e
mobilizada ideologicamente por intelectuais positivistas, aos quais devemos o
reacionarismo do lema de nossa bandeira.
Frustrada a resistência dos chamados jacobinos,
como Rangel Pestana e Silva Jardim, cabe dizer, no entanto, que de uma forma ou
outra avançávamos na modernidade e deixávamos de ser – finalmente! – a única
monarquia das Américas.
Há a registrar, hoje, a proximidade da efeméride
com o Dia da Consciência Negra, pois a historiografia escolar nos diz que a
república, inevitável em face de uma monarquia agônica, foi apressada pela
Abolição, que, escandalosamente tardia, privara os barões da terra das
indenizações requeridas pela perda de seus escravos, “peças” como registravam
as papeladas dos cartórios.
Mas o novo regime era a continuidade do velho,
dominado pela lavoura de São Paulo e Minas Gerais, que assegurou à oligarquia
retrógrada e antiindustrialista o controle da economia e da política, até 1930,
quando é levada a compor com a nova ordem civil-militar, que logo se libertaria
das veleidades liberais da Constituição de 1934 para ingressar de corpo e alma
na ditadura do “Estado Novo”, nome de fantasia que tomaria de empréstimo ao
regime de Salazar, cuja violência honrou até 1945 e voltaria a honrar no
mandarinato que a caserna inaugurou em 1º de abril de 1964, deixando-nos como
legado um rol sempre incompleto de cadáveres insepultos e fardados impunes.
A continuidade do passado é a argamassa malcozida
do presente, adiando um futuro que nunca chega. O 15 de novembro de 1889 é o
cadinho de nossas poucas virtudes cívicas e nossas muitas tragédias políticas,
como o apego ao pretérito e o horror ao avanço. Rupturas, jamais.
Veja-se esta especiosidade: depois da longa
conciliação que confluiu no 13 de maio de 1888, trocamos o Império pela
República para finalmente conservar no cetro a classe dominante herdeira do
escravismo, obra facilitada pelo federalismo da Constituição de 1891 que
reforçaria o mandonismo e a prepotência dos “coronéis” e seus guetos formados à
margem da lei, mas à sombra do Estado.
O retorno ao autoritarismo é acalentado pelas
elites; o aprofundamento democrático-popular rejeitado, como em 1964, como em
2018 e ameaçado em 2022. Nem reforma nem revolução. Ante o movimento, a opção
pela “ordem”.
No século XIX e até a metade do XX a casa-grande da
colônia e da monarquia continuaria governando em uma República à moda
brasileira, isto é, sem cidadania e sem a essência democrática da representação
popular; uma República e uma democracia sem povo, sem eleitores e sem partidos,
sem forças sociais organizadas. Uma democracia representativa encarcerada em
sistema eleitoral fundado na fraude, nos “currais eleitorais”, no “coronelismo”
que dominava o país de ponta a ponta, assegurando o livre-agir das oligarquias,
violentas e reacionárias.
Sem povo nascera e assim caminharia aos trancos e
barrancos a República, segundo os termos do acordo não escrito entre a caserna
e a casa-grande, com o aval do clero, celebrante do poder: aos fardados,
senhores de baraço e cutelo do poder moderador que haviam tomado do trono,
cabia manter a “ordem” que assegura o mando dos poderosos.
Com as oligarquias ficava a coleta dos dividendos
da concentração de renda imoral, a superexploração do trabalho e a acumulação
capitalista, ainda que de um capitalismo periférico e dependente.
Como na colônia e no império, cumpríamos o destino
de economia agroexportadora, que nos persegue ainda hoje, e se oferece como
preço que a história cobra de um povo atanazado pelo complexo de vira-lata.
Somos pobres, dependentes, e ainda
responsabilizados pela nossa pobreza, quando simplesmente cumprimos o roteiro
desenhado pela classe dominante.
Nossa república nasce cem anos após a revolução
francesa do iluminismo, dos enciclopedistas, da guilhotina e do colonialismo
persistente. Sem povo nas ruas, porém.
O espetáculo do Campo de Santana e as caminhadas
pelo pequeno centro da capital pareceram, aos transeuntes, mais um desfile
cívico-militar. No bonde, de volta para casa, o tumulto da boataria. Só no dia
seguinte, pelos jornais, a população foi tomando conhecimento das novidades.
O velho e benquisto imperador, que havia anos se
despedia do trono e da vida, caminhava para o exílio; o regime havia mudado
para uma república que não se sabia rigorosamente o que era.
Mas, para tranquilidade de todos e felicidade geral
da nação, era certo que tudo continuaria como dantes no Castelo de Abrantes. E
assim foi.
Aristides Lobo, correspondente do Diário
Popular (de São Paulo) no Rio de Janeiro, futuro ministro do interior e da
justiça do governo provisório, oferece, em 18/11/1889, na crônica “Um fato
inédito”, a mais precisa síntese da Proclamação: “(…) Por ora, a cor do
governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só,
porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo
bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos
acreditavam seriamente estar vendo uma parada (…)”.
E muitas e muitas outras paradas se sucederiam nos
134 anos seguintes.
Max Leclerc, viajante e jornalista francês enviado
ao Brasil em dezembro de 1889 para cobrir para o Journal des Débats o
novo regime, registraria: “A revolução está feita. Ninguém parece ter qualquer
intenção de voltar a isso. Mas é verdade que aqueles que criaram uma República
não tinham qualquer intenção de criá-la.”
E o que menos intenção tinha fora seu principal
oficiante no Campo de Santana.
Embora o levante tivesse sido urdido nos quartéis
fluminenses por intelectuais positivistas, levantada a caserna pelos jovens
oficiais instigados por Benjamin Constant, coube a um velho cabo de guerra,
arrancado do leito de enfermo, dar corpo à cena histórica.
O marechal Deodoro da Fonseca se aproximara dos
descontentes enredado nas tricas dos palácios e da caserna que terminaram por
incompatibilizá-lo com o gabinete do Visconde de Ouro Preto, o 32º, escalado
para ser o último.
Marchando para derrubá-lo, toma do imperador a
coroa que tanto já lhe pesava. Objeto das circunstâncias, assume o governo
provisório, é escolhido presidente em eleição indireta na primeira
constituinte, desentende-se com o regime que não entende e não consegue
governar, tenta o primeiro golpe de Estado republicano, filho legítimo do 15 de
novembro, e, derrotado, termina transferindo o bastão a Floriano Peixoto que
inaugura a “república da espada”, eufemismo que designa a primeira ditadura dos
fardados, inaugurada pelo “golpe branco” do vice que se faz presidente, ao
arrepio da Constituição, mas com o apoio da oligarquia paulista, que já começa
governar. Era o estopim para a “Revolta da Armada” (1893-1894), esmagada. A
partir de então a imperial Marinha passa a conviver, submetida, com a hegemonia
do exército.
Só em 1894 conheceríamos a primeira eleição direta
para presidente da República, ainda sem povo e sem eleitores, proibidos de
votar as mulheres, os analfabetos e os praças.
Os votos dos que escapavam dessa peneira eram
manipulados de mil e uma maneiras, como as atas falsas e a maquiagem dos mapas
eleitorais, algo que de uma forma ou de outra sobreviveu até a urna e a
totalização eletrônica.
Conta-se como a primeira eleição presidencial
brasileira com alguma disputa a de 1910, opondo Rui Barbosa e o general Hermes
da Fonseca (vencedor). Reuniu meros 700 mil eleitores, cerca de 3% da
população.
A trajetória desses 134 anos conhece avanços e
desventuras, em uma série de insurgências e crises institucionais que chega aos
nossos dias quando é exposta com clareza solar a emergência do protofascismo –
de que o passado 8 de janeiro deve ser sempre uma advertência –, e quando mais
profunda é a crise social, e mais e mais a classe dominante e seus interesses
internacionalizados impõem o arrocho fiscal que congela o desenvolvimento,
desaquece a economia, alimenta o desemprego e a fome.
A história registra um sem-número de irrupções e
insurgências, desde a Colônia, e marcando o Império. Todas esmagadas pela
ferocidade repressiva do Estado.
A República se apresenta, logo em 1896-1987,
associada à violência militar: o massacre dos camponeses de Canudos, imolados
pelo exército do Estado brasileiro a mando dos latifundiários da Bahia, sob as
bênçãos dos bispos.
Euclides da Cunha (Os sertões) descreve de
modo inesquecível os momentos finais da resistência camponesa – milhares de
homens, mulheres, velhos e crianças, lavradores sem terra para plantar,
vaqueiros sem gado para pastorear, sem casa para morar, sem saúde, sem escola,
miseráveis que da República só conheciam a repressão brutal.
A iníqua guerra de Canudos, a rigor, não terminou;
permanece na violência da terra e na repressão aos pobres, às mulheres e aos
negros.
É aqui um símbolo da violência das forças armadas e
do aparato repressor quando se trata de lidar com a organização de nosso povo.
O aldeamento de Antônio Conselheiro foi destruído
porque era visto pelos senhores da terra como mau exemplo de alternativa para
os sertanejos extorquidos pelo latifúndio improdutivo e vítimas das secas
cíclicas.
O camponês – como o quilombola e o indígena
desnutrido e enfermo para melhor ser subjugado – não tem alternativa: se
resiste, é um homem morto, na mão do jagunço ou da polícia; se cede,
degrada-se, não é mais um homem.
Seu destino é a morte e morre “de velhice antes dos
trinta / de emboscada antes dos vinte / de fome um pouco por dia” (Morte e
vida Severina, João Cabral de Melo Neto).
A violência é a resposta do sistema, em si mesmo
violento, sempre que o povo dá mostras de sua capacidade de organização.
O Estado de classes não mudou, aí está desafiando a
História.
Nada obstante as seguidas derrotas sofridas pelas
forças progressistas, há frutos a colher, e eles precisam de ser lembrados numa
homenagem aos seus engenheiros, e num chamamento às gerações que chegam para a
necessária troca de bastão:
— a extensão do voto às mulheres e aos analfabetos;
— o melhor do legado de Vargas, como a defesa da
economia nacional e dos direitos dos trabalhadores;
— a redemocratização de 1985 e o pronunciamento
popular de 2022;
— os avanços trazidos pela Constituição de 1988
(que, por exemplo, criminaliza o racismo e a tortura);
— a criação do SUS;
— o surgimento de um partido de massas como o PT e
de uma liderança socialdemocrata como Lula, de apelo popular;
— a emergência de movimentos sociais como o MST;
— a consciência pública em face dos riscos
ambientais, a defesa das populações originárias e dos quilombolas;
— o enfrentamento ao racismo larvar e a defesa dos
direitos identitários.
Não é muita coisa. Não é pouca coisa. É o legado do
processo histórico.
Fonte: Por Roberto Amaral, para Viomundo
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