'Nasci filho de costureira. Meu filho,
de professor universitário', diz ativista
Foi a vontade de ‘querer chegar lá’ que fez Vitor
Del Rey, de 38 anos, trilhar um caminho rumo à graduação, estudando em um
cursinho pré-vestibular social que ele mesmo criou. Nascido em Nova Iguaçu, no
Morro da Cocada, no Rio de Janeiro, Vitor foi o primeiro entre seus cinco
irmãos a se formar na faculdade. Mas sua trajetória nunca foi linear, com três
reprovações no ensino básico e um diagnóstico de TDAH (Transtorno do déficit de
atenção com hiperatividade) recebido há poucas semanas.
Vitor reconhece ter mudado de vida por meio da
educação: ‘Nasci filho de costureira. Meu filho, de professor universitário”,
afirma em conversa com o Terra.
Agora mestre em Administração Pública pela Fundação
Getúlio Vargas e presidente do Instituto Guetto, Del Rey segue se destacando
nacional e internacionalmente com seus trabalhos e pesquisas voltados à
superação do racismo por meio da educação, tecnologia e empreendedorismo.
Bem-humorado e sem mascarar suas opiniões, Del Rey
contou sobre seus projetos, motivações e enfrentamentos - que compõem sua
história - para a reportagem. As declarações foram dadas durante o 9º Fórum
Brasil Diverso, em São Paulo, neste mês. Confira:
·
“Vou ser ele”
Com 25 anos, eu trabalhava em um lugar como
atendente de telemarketing e percebi que sem o nível superior não dava para ser
mais do que aquilo.
Tinha uma coisa que me incomodava muito. As pessoas
sempre me falavam que eu era muito inteligente, que eles percebiam que eu ia
muito longe… E eu ficava sentado ali, pensando: ‘Pô, mano, muito longe é isso
aqui? Isso não é longe”.
Lembro que na minha infância eu sempre percebia que
nos filmes tinha um prédio muito alto, espelhado, onde sempre estava
acontecendo uma reunião, com uma mesa grande com várias pessoas - onde estava
sentado somente um homem preto de terno e ‘black power’. “Tá bom, vou ser ele.
Só vai ter um mesmo, então vamos lá”. Mas para ser aquele cara de black power,
eu tinha que estudar.
Comecei a procurar possibilidades e entrei em
contato com o pessoal do Educafro, do Frei David [David Raimundo dos Santos,
fundador da Educafro, projeto que já garantiu acesso ao ensino superior a mais
de 100 mil pessoas negras]. Fui lá para saber como eu conseguiria uma bolsa de
estudo e acabei criando um cursinho pré-vestibular com o apoio deles no Rio de
Janeiro.
Criando, eu estudaria e, passando na prova, a
Educafro garantiria minha bolsa por meio de uma parceria com a Fundação Getúlio
Vargas (FGV).
Me juntei com uma amiga, Priscila Oliveira, que
conheci no Educafro, e criamos o curso. Ele ainda existe e se chama
pré-vestibular Nelson Mandela. Ele funciona na Catedral Presbiteriana do Rio de
Janeiro, no Centro do Rio desde 2012.
·
Corre
Tivemos que ir atrás de professores voluntários
enviando mensagens no Facebook e entrando em contato com universidades para
saber se universitários no final da graduação gostariam de dar aulas lá. Quando
algum professor faltava, a gente dava aula no lugar - e tínhamos que estudar a
matéria.
Tinha, também, a questão do curso ser no centro do
Rio e muitos precisarem de transporte para chegar até lá. Então começamos a
fazer caixinhas [de arrecadação] para que as pessoas tivessem algum recurso
para conseguir chegar ao curso.
Para termos o material didático começamos a
negociar com cursinhos pagos, para ver se poderiam ceder apostilas ou, até
mesmo, disponibilizar materiais para baixarmos pela internet. E depois tínhamos
que ter dinheiro para fazer xerox… Foi com muita dificuldade que conseguimos
fazer dar certo.
Eu e Priscila fizemos o mesmo vestibular na FGV, em
2013, um ano depois da criação do cursinho. Ela passou em 19º lugar e eu em
18º. Nos formamos e eu fiz mestrado em administração pública. Já a Priscila,
mais interessada em questões ligadas a Direitos Humanos, foi fazer mestrado na
UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) nessa área.
Eu tive uma trajetória estudantil e, depois
acadêmica, muito difícil - o que é comum a pessoas pretas ou brancas pobres...
Mas, apesar de todas as dificuldades, a gente tinha essa ambição, motivada pela
ideia de que a educação iria mudar as nossas vidas.
·
Mudar de vida
Toda vez que a gente fala que a educação vai mudar
nossa vida antes de ter um pensamento crítico, a única coisa que a gente está
falando é da área econômica. A gente só está dizendo que não aguenta mais ser
pobre e que, se a gente estudar, vamos virar classe média. Que não é de todo
verdade, mas também não é mentira.
Aconteceu comigo. Mas muita gente que está
estudando não consegue. Mas no meu caso, a educação entregou aquilo que ela se
propunha.
Eu nasci filho de uma costureira no Rio de Janeiro.
Quando meu filho nasceu, ele nasceu filho de um professor universitário. E a
mãe dele já tinha graduação também. Então, de fato, a educação transformou e
mudou as nossas vidas.
Mas é um processo de médio e longo prazo que
precisa ser um projeto da família. Se a família não te dá suporte, você acaba
abandonando. A minha não me deu suporte, mas eu sou insistente, né? Sou teimoso
e teimei. Hoje minha família é muito feliz.
Eu fui o quinto filho de seis, o primeiro a fazer
universidade. Hoje eu só tenho dois irmãos que ainda não têm ensino superior. O
restante, todo mundo já fez. E por quê? Porque alguém fez e teve a vida mudada.
Aí os outros acreditam.
·
TDAH
Há três semanas que eu fui diagnosticado como um
adulto com TDAH. Tenho uma amiga diagnosticada há um ano e eu conversava com
ela e falava: ‘Tenho essas paradas aí todas’. Então fui a uma psiquiatra e isso
foi confirmado. Talvez o que ela me disse que mais tenha me tocado foi que não
consegue imaginar onde eu estaria se, aos seis anos, tivesse tido o diagnóstico
e começado o tratamento. Nem eu.
Tenho uma trajetória bagunçada. Acho que não tem
nenhuma pessoa preta com uma trajetória ‘normal’. Mas as pessoas pretas com
TDAH, menos ainda. Minha trajetória é feita de muito cansaço. Mas eu consegui.
·
Outras vidas sendo mudadas
Já passaram pelo cursinho, nesses quase 10 anos,
mais de 400 alunos. A taxa de aprovação em vestibulares é alta, de mais de 70%.
Então é um pré-vestibular que tem muita entrega, mas que também precisa de
suporte para continuar funcionando. Ele atua como resistência.
As inscrições abrem no final do ano, em dezembro,
com as turmas tendo início em janeiro. Tudo pode ser acompanhado pelo Instagram
@prenelsonmandela. Também abrem turmas no meio do ano, normalmente entre
julho e agosto.
Pela ligação com a Educafro, quem estuda no
pré-vestibular Nelson Mandela e passa no em faculdades parceiras do Educafro
consegue bolsa de 100%. São faculdades como PUC, Mackenzie, Fundação Getulio
Vargas…. A mensalidade do meu curso, no primeiro período, era de R$ 2.500 e eu
não pagava nada para estudar. Estudar em uma universidade de elite, de
prestígio, a 'zero reais', é uma oportunidade que você não pode perder.
Também sou presidente do Instituto Guetto - Gestão
Urbana de Empreendedorismo, Trabalho e Tecnologia Organizada. A gente
desenvolve pesquisas, consultorias na área de educação, empreendedorismo e
atuamos na pauta ESG - diversidade, equidade e inclusão.
O instituto tem uma escola, a Escola da Ponte Para
Pretxs, onde formamos pessoas para o mercado de trabalho. Lá elas aprendem
inglês, francês, espanhol, programação blockchain, python, R… O Instituto
Guetto não trabalha com nenhum curso de manutenção de status quo de pobreza.
Então, qualquer pessoa que entra no Instituto, através dessa escola, vai
acessar uma vaga de trabalho que produz mobilidade social.
Fonte: Redação Terra
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