Imprensa promove vapes em “publis” pagas pela indústria do tabaco
A discussão sobre a regulação dos vapes está a todo vapor. Os
dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), que incluem os vaporizadores e
produtos de tabaco aquecido, são proibidos desde 2009 pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária, mas tanto a Anvisa quanto o Congresso Brasileiro podem
mudar esse entendimento nos próximos meses.
A agência reguladora abriu uma consulta pública na última sexta (1/12) e
o Senado começou a discutir projetos de lei que abordam o tema — um deles quer
liberar a comercialização.
Grande interessada na permissão dos DEFs, a indústria do tabaco tem
apostado no patrocínio de “conteúdo de marca”, os famosos “publis”, em grandes
sites jornalísticos para tentar influenciar políticos e a opinião pública. Ao
menos 10 veículos já publicaram textos pagos por duas das principais
fabricantes de cigarro do mundo, que também patrocinaram eventos e lives
favoráveis à regulação.
Os conteúdos pagos, não raramente difíceis de distinguir de publicações
jornalísticas usuais, uma vez que seguem o formato de reportagens comuns,
apareceram em O Globo, Valor Econômico, Folha de S. Paulo, Estadão, Veja, CNN,
Metrópoles, UOL, Poder360 e Bússola/Exame, segundo levantamento feito pela
Agência Pública. Parte das publicações não está mais no ar.
Os materiais analisados foram bancados pela British American Tobacco
(BAT) do Brasil (antiga Souza Cruz) e pela Philip Morris Brasil (PMB), entre
2018 e novembro de 2023. A primeira é fabricante de cigarros como Derby e
Dunhill e a segunda, do Marlboro. Agora, ambas apostam em dispositivos vapes
— nos quais uma bateria aquece um
líquido com nicotina ou outras substâncias para gerar aerossóis inaláveis
— e aquecedores de tabaco — em que a bateria aquece lâminas de tabaco
— como maneira de seguir vendendo
produtos com nicotina e de alto teor aditivo, mas sem a má fama dos cigarros.
Especialistas alertam que substituir cigarros convencionais por DEFs
pode ser como “trocar seis por meia dúzia”, como afirmou em entrevista à
Pública Tânia Cavalcante, médica doutora em oncologia e ex-secretária da
Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro sobre Controle do Uso
do Tabaco e de seus Protocolos (Conicq), órgão responsável por políticas
públicas sobre o tema.
“Hoje a gente não tem evidências suficientes de que o cigarro eletrônico
reduz dano, reduz risco de adoecer, porque isso você só vai saber daqui a 20
anos com estudos epidemiológicos”. Ela acrescenta que, se os dispositivos
eletrônicos reduzem a exposição a algumas substâncias tóxicas, aumentam para
outras: “Têm substâncias desconhecidas que estão sendo inaladas então você está
abrindo uma possibilidade de dano coletivo gigantesco em nome de uma redução de
dano econômico da indústria”.
• Mais publis nos últimos
meses
Os conteúdos se tornaram mais frequentes no segundo semestre de 2023,
quando o debate esquentou no parlamento. A CNN Brasil, por exemplo, levou ao ar
seis matérias pagas pela BAT Brasil nos últimos quatro meses, todas ainda
disponíveis. Entre as manchetes estão “Estudos mostram que cigarro eletrônico
pode ajudar a parar de fumar” e “Mitos e verdades: o que é real e fictício
sobre cigarros eletrônicos”. As fontes ouvidas são todas ligadas à empresa
tabagista.
Em nota, a CNN Brasil afirmou que “reforça que não existe interferência
da área comercial na sua cobertura editorial. A empresa atua desde sempre com
independência jornalística, segundo os pilares de agilidade, qualidade e
relevância da informação”.
A revista Veja publicou em 25 de setembro o texto “Cigarro eletrônico:
uma alternativa na redução de danos para fumantes”, assinado por “Abril Branded
Content” e “apresentado por “BAT Brasil”. Na matéria, são ouvidas fontes
recorrentes nesse tipo de conteúdo: Rodolfo Behrsin, Carolina Fidalgo, advogada
especialista em regulação sanitária e Alessandra Bastos, uma ex-diretora da
Anvisa que entrou na “porta giratória” – mecanismo pelo qual corporações
contratam agentes públicos para influenciar decisões sobre políticas – e
atualmente é consultora da empresa de tabaco. A ligação de Behrsin e Bastos com
grupos que querem a liberação do vape não é mencionada ao longo do texto.
Um mês depois, em 25 de outubro, a revista publicou outra matéria paga:
“Cigarro eletrônico: regulamentação é questão de saúde pública”. Nesta, embora
esteja explicitado que se trata de um conteúdo de marca, não há menção sobre
quem pagou pelo conteúdo, mas uma das fontes ouvidas é Lauro Anhezini Jr.,
diretor de assuntos científicos e regulatórios da BAT Brasil.
A Pública entrou em contato com a Veja, mas não recebeu resposta.
• Folha, Globo e Poder360
fizeram seminários patrocinados
Além da publicação das matérias pagas, as empresas de tabaco também têm
promovido eventos em parceria com veículos brasileiros.
No último dia 30, o EstúdioFolha, divisão de branded content da Folha de
S. Paulo, realizou uma transmissão ao vivo intitulada “Cigarros eletrônicos:
importância da regulamentação no Brasil”, com patrocínio da BAT Brasil. Entre
os convidados estavam Alessandra Bastos, consultora da patrocinadora, Mônica
Gorgulho, psicóloga e ex-conselheira do Direta, Carolina Fidalgo, advogada
especialista em regulação sanitária, e Miguel Okumura, consumidor e fundador do
projeto Vaporacast – podcast nacional “100% dedicado ao vapor” –, além de
outros especialistas favoráveis à regulação. Não havia vozes dissonantes.
A divulgação da live foi tema de um anúncio de meia página publicado no
jornal impresso em 27 de novembro, com patrocínio da empresa de tabaco. Depois
da transmissão, a BAT fez novo anúncio sobre o tema, dessa vez ocupando duas
páginas inteiras. Segundo tabela de valores disponível no site da Folha, o
custo por um anúncio de página inteira em dia de semana é de R$ 565 mil, e o de
meia página, de R$ 282 mil. Se pagos de acordo com a tabela, os anúncios
somariam mais de R$ 1,4 milhão.
A reportagem enviou a estimativa ao Estúdio Folha e a BAT, pedindo que
confirmassem os gastos, mas as empresas não responderam.
O jornal também publicou outros conteúdos patrocinados pela BAT Brasil
no final de novembro, parte deles repercutindo o seminário.
Em retorno, o Estúdio Folha afirmou que “o Grupo Folha segue todas as
normas e legislação vigente para a veiculação desse tipo de conteúdo”.
“Os materiais citados (textos e seminário) são conteúdos patrocinados
produzidos pelo Estúdio Folha para a BAT e identificados como tal. O Estúdio é
a unidade de negócios do Grupo Folha responsável pela produção desses conteúdos
patrocinados”, acrescentou.
Já o G.Lab, braço de conteúdo patrocinado do Grupo Globo, foi
responsável pela organização do seminário “Cigarros eletrônicos – redução de
riscos e a importância da regulamentação”, que ocorreu em julho deste ano e
também contou com patrocínio da BAT Brasil. O evento foi transmitido como
conteúdo de marca nas redes sociais dos jornais O Globo e Valor Econômico, além
de ser o tema de publicação feita no site do Valor em agosto.
A abertura foi feita por Lauro Anhezini Jr., diretor da patrocinadora do
evento. Além dele, o seminário também contou com Bastos, consultora da BAT, e
Okumura, do Vaporacast.
A BAT Brasil também patrocinou uma live feita pelo site Metrópoles em
setembro de 2023. A lista de “debatedores” incluiu unicamente pessoas
favoráveis à regulação: Okumura, Bastos e Alexandro Lucian, presidente do
Direta, do site VaporAqui e figura frequente em eventos pró-vapes.
Na transmissão, a apresentadora repetiu argumentos usados pelos
defensores pró-vape, afirmando que profissionais de saúde ao redor do mundo
estariam reconhecendo o dispositivo como “medida de redução de danos para
adultos que desejam diminuir ou parar de fumar” – o que não é consenso na
categoria. Já Alessandra Bastos, que foi diretora da Anvisa entre 2017 e 2020,
disse que a agência tem o papel de “entregar ao consumidor e à sociedade aquilo
que ela demanda”. Os convidados ainda elogiaram o evento: “É muito importante
pra gente ser recebido pela mídia tradicional, para que a nossa voz chegue mais
longe”, disse Okumura. Lucian completou afirmando que “a mídia configura o tom
da informação no Brasil”. O site também fez uma publicação repercutindo a live.
A lista de veículos que promoveram eventos bancados inclui ainda o
Poder360. O site promoveu o seminário “Cigarros eletrônicos: por que rever a
proibição é fundamental?” em dezembro do ano passado e também teve uma
escalação 100% pró-regulação – o evento contou com a participação de Lauro
Anhezini Jr, Alessandra Bastos, Alexandro Lucian, e Jaime Recena, diretor de
Relações Governamentais da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes
(Abrasel). O veículo também fez matérias não patrocinadas sobre o seminário
reproduzindo os argumentos dos palestrantes.
O Poder360, aliás, é um dos veículos “campeões” em volume de branded
content bancado por empresas do tabaco. O site levou ao ar pelo menos quatro
conteúdos pagos pela BAT Brasil e um patrocinado pela Philip Morris Brasil
desde 2022, todos em defesa de uma regulamentação que libere o comércio de
dispositivos eletrônicos para fumar.
Um deles, pago pela BAT, traz uma entrevista com o britânico Clive
Bates, identificado como consultor independente em saúde pública. Já no
primeiro parágrafo, o texto diz que Bates considera o banimento dos DEFs a pior
política possível. “É difícil imaginar uma política mais absurda do que proibir
os cigarros eletrônicos”, afirma.
O consultor também enviou um vídeo que foi exibido em audiência pública
promovida pela senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) na Comissão de Assuntos
Sociais (CAS) do Senado Federal em 28 de setembro, embora seu nome não
estivesse nos requerimentos de participação do evento. A maior parte dos
convidados da senadora era favorável à liberação da comercialização desses
dispositivos. Na gravação, Clive Bates disse que “vapes e outros produtos sem
fumaça são menos prejudiciais para a saúde” e que “maioria do uso por pessoas
jovens, adolescentes, é frívolo, experimental, provavelmente temporário, e não
deveria ser uma preocupação grande de saúde pública”.
Após o evento, Thronicke apresentou o Projeto de Lei (PL) 5.008/2023,
que pretende liberar a venda dos vapes e cigarros de tabaco aquecido. O texto
propõe que os dispositivos sejam aprovados pela Anvisa antes da
comercialização, proíbe a venda para menores e todo tipo de propaganda. Apoiado
pelas empresas de tabaco, o PL está na fase inicial de sua tramitação e será
relatado, na Comissão de Assuntos Econômicos, pelo senador Eduardo Gomes
(PL-TO).
Questionado sobre os eventos, Alexandro Lucian, presidente da
organização pró-vapes Direta, elogiou a iniciativa das empresas de tabaco já
que, de acordo com ele, os usuários não têm espaço na mídia. “Tenho a
possibilidade que eu jamais teria de estar em veículos como o Poder360,
Metrópoles… Quando que o Metrópoles iria me convidar? Nunca. Então a indústria
consegue fazer esses conteúdos patrocinados. Me convidam e eu falo tudo o que
eu quero. Inclusive já bati na indústria”, afirmou em entrevista à Pública. Ele
disse não receber “nem um centavo” pela participação, mas tem sua passagem,
alimentação e hospedagem bancadas pelos organizadores.
A reportagem entrou em contato com o G.Lab, braço de conteúdo
patrocinado do Grupo Globo, com o Valor Econômico, e com Poder360, mas não
obteve retorno.
Mônica Andreis, da ACT Brasil, aponta que os conteúdos patrocinados têm
sido frequentes desde que surgiu a discussão sobre a regulação dos
dispositivos, mas existem “períodos em que isso parece que realmente se
intensifica”, o que estaria relacionado a momentos chave na discussão
regulatória.
“O que mais nos chama atenção é este ano de 2023, em que houve um
aumento significativo nesses eventos e nessas matérias, a ponto da gente não
estar conseguindo nem acompanhar tudo”. Ela considera que a intensificação do
conteúdo de marca pode estar “relacionada ao fato da Anvisa estar com a
iminência de publicação do novo texto”, e com o fato de que o relatório
técnico, que apoiou a manutenção da proibição, ter sido aprovado pela Diretoria
Colegiada da agência no ano passado.
“Talvez tenham ficado mais incomodados e com essa gana de tentar mudar
ou virar o jogo através de uma maciça campanha por meio das matérias, por meio
dos eventos, e tudo mais”, disse à Pública.
• “Conteúdos estratégicos” e
parceria com FSB
Em abril do ano passado, a Bússola/Exame promoveu uma live com o título
“Cigarros eletrônicos: por que regulamentar?”, em que não há nenhuma indicação
de que o conteúdo tenha sido pago. Favoráveis à permissão dos dispositivos,
Lucian, Bastos e Delcio Sandi, diretor de relações externas da BAT Brasil,
estiveram entre os palestrantes.
Além da live, a Bússola/Exame também publicou em março deste ano
reportagem favorável à regulação, ouvindo Bastos como única fonte. Antes, em
2021, o site já havia publicado um conteúdo pago pela BAT Brasil, abordando
“mitos sobre o cigarro eletrônico”.
A Bússola é uma parceria de “conteúdos estratégicos” da Exame com a
agência FSB Comunicação, uma das maiores do país. É justamente a FSB quem faz a
assessoria de imprensa da BAT no Brasil.
Procurada, a Exame não retornou. Caso algum dos veículos citados se
posicione, o texto será atualizado.
Às vésperas da última reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa, que
ocorreu em 1º de dezembro, a FSB também enviou um release para jornalistas
defendendo uma “regulamentação” que permita o acesso aos DEFs no Brasil, sem
citar que representa a BAT. “A regulamentação significa não apenas o combate ao
mercado ilegal, mas, sobretudo, garantir ao adulto fumante do cigarro comum uma
alternativa menos prejudicial à saúde”, argumentou, repetindo o argumento das
grandes empresas.
Em retorno à Pública, a FSB disse que a BAT Brasil é cliente da FSB
Comunicação desde 2013. “A divulgação de um release sobre audiência da Anvisa
acerca da regulamentação do cigarro eletrônico no Brasil é uma ação legítima,
uma vez que se trata de um assunto de interesse público e com relação direta ao
mercado de atuação do cliente”, afirmou. Disse ainda que as lives organizadas
pelo canal Bússola são “conteúdos editoriais”.
Já a BAT disse que “se reserva ao direito de divulgar aos veículos de
comunicação, por meio de sua assessoria de imprensa, conteúdos e informações de
interesse público acerca da ciência, fatos e dados de cigarros eletrônicos no
Brasil”.
A empresa também afirmou que “todos os projetos de conteúdo
institucional da companhia e publicados em veículos da imprensa brasileira
cumprem todas as regras regulatórias aplicáveis”, e defendeu serem baseados “no
direito constitucional à liberdade de expressão”.
De acordo com a BAT, os conteúdos não fazem propaganda de seus produtos
e teriam como objetivo “o fomento ao debate sobre regulamentação dos cigarros
eletrônicos, que se encontra na agenda regulatória de diversos órgãos e
entidades de vigilância sanitária no Brasil e no exterior, incluindo a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”.
.
• As denúncias contra os
conteúdos
Algumas das publicações em veículos jornalísticos foram alvo de
reclamações apresentadas à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e ao
Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Na Senacon, a
organização Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) denunciou O Globo (que
também incluiu o Valor Econômico), o UOL e o Poder360. Para a organização, os
conteúdos de marca pró-cigarro eletrônico e demais dispositivos configuram
publicidade ilegal.
Um dos casos que motivou denúncias foi um hotsite publicado em O Globo
ainda em 2021, intitulado “Redução de Risco”, produzido pela G.Lab, braço do
Grupo Globo especializado em conteúdo de marca, e patrocinado pela BAT Brasil.
O conteúdo chegou a ser destacado na homepage do jornal, segundo a denúncia.
A capa do hotsite, que atualmente está fora do ar, trazia a manchete
“Indústria do Tabaco quer oferecer produtos de risco reduzido aos fumantes”,
com texto apontando os vaporizadores e produtos de tabaco aquecido como “novas
alternativas oferecidas aos consumidores adultos de cigarro”. O material também
incluía um texto intitulado “Na voz do médico: por que o cigarro eletrônico
deveria ser regulamentado no país?”, em que foi ouvido o médico Renato Veras,
identificado como consultor da BAT Brasil. Além disso, o hotsite também
apresentava um texto sobre “mitos e verdades” acerca dos dispositivos e um
vídeo apontando o cigarro eletrônico como “potencialmente menos danoso que um
cigarro comum”.
A defesa não é consensual entre os médicos. O Conselho Federal de
Medicina (CFM), por exemplo, é abertamente contrário à liberação dos
dispositivos. Florentino Cardoso, cirurgião oncológico e integrante do Grupo de
Trabalho de Atuações e Intervenções quanto ao Tabagismo e ao Cigarro Eletrônico
do CFM teme que os DEFs gerem “uma grande epidemia no Brasil, com consequências
deletérias para a saúde”, em especial entre adolescentes, “que são muito mais
influenciáveis”.
“Esse lobby pesado [existe] para tentar liberar algo que é extremamente
danoso para a população”, disse o médico em entrevista à Pública.
Na queixa contra O Globo, a ONG antitabagista afirma que o hotsite
“trata-se de sofisticada produção publicitária de grande alcance midiático,
para persuadir o público para o consumo de DEFs, produtos que sequer podem ser
comercializados e importados, em conhecido site de notícias de uma das maiores
empresas jornalísticas do país”.
A organização também levou o caso à Anvisa, que emitiu uma nota técnica
em dezembro do ano passado em resposta à ACT, obtida pela reportagem.
O documento destaca a proibição dos DEFs no Brasil pelo órgão e reforça
que a legislação que restringe a propaganda de produtos fumígenos também vale
para os cigarros eletrônicos e demais dispositivos. A nota faz menção
especialmente ao artigo 3º da Lei 9294/1996, que estabelece que “é vedada (…) a
propaganda comercial de cigarros (…) ou qualquer outro produto fumígeno,
derivado ou não do tabaco, com exceção apenas da exposição dos referidos
produtos nos locais de vendas, desde que acompanhada das cláusulas de
advertência”.
A Anvisa afirma ainda que notificou os veículos para que o conteúdo
fosse retirado do ar, além de ter demandado os contratos de patrocínio, para
posteriormente “tomar as medidas cabíveis contra as empresas tabagistas”. A
reportagem pediu o acesso aos contratos, mas a Anvisa afirmou que “não é
possível fornecer documentos referentes a dossiês abertos, pois trata-se de
documentos preparatórios”.
Já o Conar, em julho deste ano, decidiu em segunda instância que um
banner usado em um “conteúdo de marca” sobre “cigarros eletrônicos” publicado
pelo UOL com patrocínio da BAT configurava “publicidade de produto” e propôs
que fosse alterado. Mas não viu irregularidade no texto que acompanhava o
anúncio, pois ele teria como função gerar “a discussão sobre a regulamentação
do cigarro eletrônico” e não divulgar um produto.
Na primeira instância do Conar, todo o anúncio havia sido considerado
como de “publicidade antiética”, em decisão unânime. “A finalidade publicitária
de vender não é percebida apenas em sua forma e conteúdo, mas na relação entre
eles e deles com o contexto em que estão inseridos”, escreveu o relator. “A
fronteira entre a informação jornalística e a publicitária tem de ser
cristalina. Afinal, o texto jornalístico-informativo goza da prerrogativa de
tocar em certos assuntos, a publicidade não. E isso não é censura, como
afirmado pela defesa. Censura, em publicidade, é impedir que um produto lícito
seja divulgado de forma plena, não que um produto considerado ilícito tenha sua
divulgação impedida”, acrescentou.
Para a diretora presidente da ONG antitabagista ACT Brasil Mônica
Andreis, trata-se de “uma tática para influenciar a opinião pública para o
interesse comercial deles” e “praticamente uma publicidade disfarçada”.
“Por mais que a gente peça um direito de resposta, mande um artigo, a
gente não contrapõe na mesma proporção. São indústrias muito poderosas, tanto
economicamente, quanto politicamente, e elas acabam, às vezes, conseguindo
influenciar”, acrescenta.
Questionado a respeito dos “conteúdos de marca” sobre DEFs pagos pela
indústria do tabaco nos últimos meses, o Conar disse que abriu no final de
novembro uma representação contra anúncio da BAT Brasil para “para verificar se
está convenientemente identificado como publicidade e se não desatende
determinações da legislação sanitária e recomendações do Código Brasileiro de
Autorregulamentação Publicitária”. A representação deve ser julgada nas
primeiras reuniões de 2024 do Conselho de Ética do Conar.
O Ministério da Justiça, responsável pela Senacon, e a Anvisa não
responderam aos questionamentos enviados pela reportagem.
Em retorno à Pública, a Philip Morris Brasil afirmou que seus conteúdos
institucionais “refletem a transformação do nosso negócio, na busca por um
futuro sem fumaça” e que “cumpre com as determinações dos órgãos reguladores”.
“As ações são voltadas a adultos fumantes, com o objetivo de informar sobre a
importância da regulamentação de alternativas ao cigarro. Todo conteúdo que
Philip Morris Brasil divulga vem acompanhado da mensagem “Se você não fuma, não
comece. Se fuma, pare. Mas se não parar, se informe sobre alternativas
potencialmente menos tóxicas do que o cigarro”, acrescentou.
Além da live, na época o Estadão Blue Studio também levou ao ar um texto
jornalístico patrocinado com dados baseados em uma pesquisa do Datafolha
encomendada pela Philip Morris
• Jornais publicam conteúdo
pró-vape desde 2018
Ainda que tenha se intensificado nos últimos meses, os conteúdos
patrocinados favoráveis à liberação dos dispositivos eletrônicos para fumar não
são novidade.
Em 2018, o Estadão Blue Studio, braço de conteúdo patrocinado do jornal,
fez uma live patrocinada pela Philip Morris Brasil. A empresa é também
apoiadora frequente do Curso de Focas do Estadão, que patrocinou entre 2016 e
2022. No debate, foram ouvidos Lucian e Behrsin, os diretores da associação
pró-vape Direta que se tornaram frequentes nos eventos posterioresAlém da live,
o Estadão Blue Studio também levou ao ar na época um texto jornalístico
patrocinado pela multinacional de origem americana. Recheado de gráficos
baseados em uma pesquisa do Datafolha encomendada pela Philip Morris, o
conteúdo patrocinado afirma que “82% dos fumantes consideram trocar cigarro por
produto de risco reduzido” e repercute falas de Lucian e Behrsin. O conteúdo
segue disponível.
Em retorno à reportagem, o Estadão Blue Studio afirmou que “sempre busca
apresentar debates e temas que sejam de interesse público”.
“Ainda que se trate de conteúdo patrocinado, a live teve por objeto
discutir a regulamentação dos dispositivos eletrônicos para fumar, além de
outros aspectos sobre as potenciais alternativas representadas por essa
tecnologia, tópico absolutamente relevante, como demonstram uma série de
pesquisas sobre o tema, sem mencionar a crescente regulamentação em outros
países”, acrescentou.
O veículo afirmou ainda que “não houve propaganda de produtos ou marcas
específicas” e que a “produção de conteúdo patrocinado por empresas de
determinado ramo não afeta a nossa cobertura editorial sobre o tema, feita de
forma imparcial e baseada em fatos”.
Já a Folha de S. Paulo, além da live promovida no final de novembro
deste ano, já tinha sido responsável pela página especial “Futuro sem Fumaça”,
lançada em novembro de 2019 pelo EstúdioFolha, com patrocínio da Philip Morris
Brasil. O conteúdo da Folha remetia ao site precisamosfalar.com.br, gerido pela
empresa de tabaco, mas que está atualmente fora do ar.
Por meio da ferramenta WaybackMachine, é possível ver a página inicial e
alguns dos oito conteúdos publicados pela Folha com patrocínio da Philip Morris
na época. Entre as manchetes estão “Consumo de nicotina sem fumaça pode reduzir
danos a fumantes”, “Fumantes brasileiros buscam alternativa ao cigarro
tradicional, mas esbarram em proibição” e “Regulamentação é essencial para
controle sobre produtos destinados a adultos fumantes”.
A plataforma mantida pela companhia tabagista incluía um abaixo-assinado
pró-dispositivos e uma seção de perguntas e respostas que tinha entre os
tópicos uma explicação do porquê a Philip Morris não para de vender cigarros,
como relatado pelo The Intercept Brasil.
O UOL, integrante do Grupo Folha, também publicou conteúdo patrocinado
pela indústria do tabaco, que não está mais no ar. O texto “Cigarros
eletrônicos ainda serão tema de discussão na Anvisa: manutenção da proibição
desses produtos não é decisão final da Agência”, publicado em agosto de 2022,
foi bancado pela BAT Brasil e ouviu apenas pessoas ligadas à empresa. A matéria
foi alvo de denúncia da ACT Brasil à Secretaria Nacional do Consumidor.
Procurado, o UOL não se posicionou.
Fonte: Por Rafael Oliveira, Laura Scofield e Bianca Feifel, da Agencia
Pública
Nenhum comentário:
Postar um comentário