“Foi assim que cheguei à tese do comunismo de decrescimento”, diz
filósofo japonês
Kohei Saito, filósofo marxista japonês que se
voltou para a ecologia motivado pela catástrofe de Fukushima, ganhou grande notoriedade
internacional com o seu trabalho sobre o comunismo de decrescimento. Nesta
entrevista ao Green European Journal, Saito explica o que
o socialismo e o ambientalismo podem aprender um com o
outro e o motivo pelo qual o Japão, economicamente estagnado e devastado
por uma pandemia, acabou sendo um território fértil para as ideias decrescentistas.
O Capital no Antropoceno, publicado no Japão em
2020, alcançou um sucesso sem precedentes. A previsão é que Slow Down:
The Degrowth Manifesto seja publicado em inglês, em inícios de 2024.
<<<< Eis a entrevista.
·
Como passou a se interessar por Marx e depois pelo comunismo de
decrescimento?
Descobri as obras de Marx e Engels aos 18 anos, quando comecei meus estudos na Universidade de
Tóquio, em grupos de estudantes que lutavam para proteger os trabalhadores
jovens. Inicialmente, fiquei mais interessado na exploração da classe
trabalhadora e depois cada vez mais pela desigualdade em geral,
depois que a crise de 2008 agravou a situação
no Japão. Marx havia alertado justamente a respeito destes
problemas, que só ganhariam mais importância no futuro. Então, decidi me mudar
para a Alemanha para continuar estudando Marx.
Em 2011, depois do terremoto no Japão e
da catástrofe nuclear de Fukushima, percebi que o capitalismo não se limita apenas à exploração dos seres humanos, mas também
engloba essas tecnologias colossais que foram criadas em busca de lucros e que,
em última instância, trouxeram consigo um verdadeiro desastre para a vida de
muitas pessoas no Japão.
·
Então, você chegou ao mundo da ecologia através da questão nuclear, em
vez da climática?
Inicialmente, eu estava mais otimista em relação
ao desenvolvimento da tecnologia, mas depois de Fukushima, comecei a
refletir sobre a tecnologia e o capitalismo e perdi parte
desse otimismo. Também comecei a me interessar mais pela questão da mudança climática em 2014, após ter lido Tudo pode mudar,
de Naomi Klein.
Apesar de tudo, continuava otimista. Pensava que
algumas medidas políticas socialistas, com um planejamento maior e
trabalho garantido, poderiam alcançar a igualdade e, ao mesmo tempo,
maior sustentabilidade. Foi quando comecei a ler mais e me deparei com as
obras de Jason Hickel, Giorgos Kallis e a abordagem do decrescimento em geral.
Não restava dúvida de que havia certa tensão
entre Marx e o decrescimento e em torno de Marx e
a crise climática, sendo assim, comecei a ler suas obras mais tardias.
Passei a reinterpretar as suas ideias, em particular os seus estudos sobre
as sociedades pré-capitalistas.
Percebi que Marx havia se interessado por
essas sociedades pré-capitalistas porque são Estados essencialmente
estáveis não orientados para o crescimento. E, apesar disso, conseguiram
garantir a sustentabilidade e a qualidade de vida para toda a
população. Foi assim que cheguei à tese do comunismo de decrescimento.
·
Como você relaciona o decrescimento com o comunismo? O comunismo não
quer mais e o decrescentismo menos?
Essa é a tensão que existe na tradição
marxista e ambientalista. A corrente política
socialista aposta no desenvolvimento tecnológico para conseguir
mais para todos: é necessário que haja mais desenvolvimento, mais progresso,
mais eficiência. O ambientalismo ressalta que há um consumo excessivo
e uma superprodução, por isso defende uma desaceleração para proteger a natureza.
Não obstante, acabei percebendo
que Marx estava interessado em ambas as questões: proteger a vida de
todas as pessoas e proteger a natureza. Não há necessidade de ter mais em um
sentido capitalista. Quando Marx fala em abundância, não se refere a termos jatos particulares ou mansões. Pretende dizer
que podemos viver de forma abundante, viver uma boa vida, tendo cuidado médico
e transporte universais, com moradia, água, eletricidade e recursos básicos
garantidos, sem a mediação do dinheiro.
Esse tipo de abundância pode constituir a
nova base para o socialismo e o comunismo porque se baseia
na igualdade. Contudo, se quisermos ter mais no sentido atual da palavra,
o resultado será uma catástrofe ecológica. O caminho intermediário passa
pela redefinição de abundância e, na linha de Hickel, eu a
denomino abundância radical. É um tipo de abundância muito
diferente, na qual compartilhamos coisas, ajudamos uns aos outros e temos uma
sensação de segurança.
·
Levando em consideração a situação do planeta, o ecossocialismo
produtivista é plausível? Ou é necessário assumir que o velho sonho marxista
chegou ao seu fim?
Sem o ambientalismo, a política
socialista gira em torno de alcançar uma maior igualdade por
meio do aumento da produção e do consumo. Contudo, o mundo todo não pode viver
como Bill Gates, nem como a classe média alta alemã. Não é sustentável. Os socialistas
criticam o capitalismo, mas, ao mesmo tempo, permanecem presos
aos valores capitalistas.
Devemos também levar considerar que se continuarmos
consumindo mais energia e recursos, continuaremos explorando recursos, energia
e mão de obra dos países do sul global. Portanto, se verdadeiramente
queremos considerar a igualdade e a sustentabilidade em escala
planetária, não basta nos basearmos somente na tecnologia. Também
precisamos pensar na forma como vivemos, na maneira como produzimos as coisas.
A política socialista se torna novamente
muito importante neste sentido, porque são justamente as pessoas ricas as
responsáveis por esta produção e consumo excessivos. É preciso taxar a
riqueza e proibir bens como os jatos privados, os cruzeiros e as
grandes mansões.
Isto nos permitirá reduzir a produção e o
consumo, mas também ter mais tempo livre, aumentar o nosso bem-estar e garantir
certo espaço para o desenvolvimento do sul global. Feito isto, devemos
pensar em maneiras de reduzir o nosso consumo material, sobretudo nos países
do norte global. O excesso de confiança na tecnologia nos impede de
ver que o nosso modo de vida não é sustentável.
·
Há quem diga: “Eu quero um ambiente saudável e um clima estável, mas não
esta agenda ideológica”. De fato, é necessário que o ambientalismo seja
anticapitalista?
Sim, é. Os ambientalistas devem estar
conscientes de que é necessário questionar o capitalismo. Hoje, acreditar
que um imposto sobre o carbono pode resolver o problema é ser
otimista. Precisamos de medidas mais agressivas, como proibir as
indústrias poluentes e reduzir a publicidade. Estas medidas são contrárias
à lógica do capitalismo.
Não resta dúvida de que precisamos de grandes
investimentos em novas tecnologias, como as energias renováveis. Agora, no capitalismo, mesmo que
desenvolvamos tecnologias, continuaremos trabalhando jornadas muito longas e
consumindo cada vez mais.
No capitalismo, embora a tecnologia nos
permita aumentar a eficiência, é utilizada com um único fim: produzir cada vez
mais. E é precisamente por esta mesma razão que também temos que trabalhar cada
vez mais para ganhar dinheiro e recomeçar.
Quanto maior a eficiência, maior a produção e,
portanto, maior o consumo de recursos e energia. Deste modo, não poderemos
resolver a crise climática. A única forma de alcançar uma nova forma de
entender a sociedade é juntando estes dois conceitos: ambientalismo ou decrescimento e socialismo ou comunismo.
·
Por que o seu livro ‘O Capital no Antropoceno’ se tornou tão popular no
Japão?
Foi uma grande surpresa. Marx e
o decrescimento não costumam ser temas muito populares no Japão,
mas foram vendidos cerca de meio milhão de exemplares. A tradução alemã já
esteve entre os 10 livros mais vendidos na Der Spiegel. Então, algo está
acontecendo.
O livro foi colocado à venda no Japão em
plena pandemia. Naquele momento, tivemos que desacelerar o nosso estilo de vida. Os restaurantes
estavam fechados, as pessoas trabalhavam de casa e não saíam. Dedicavam mais
tempo à família e cozinhavam em casa.
Reduzimos o nosso ritmo de vida e, graças a isso,
tivemos tempo para refletir sobre o nosso estilo de vida anterior. Por que
passávamos mais de uma hora por dia indo para o trabalho? Por que compramos
tantas roupas? Percebemos que esse estilo de vida não nos trazia nenhum tipo de
felicidade, simplesmente estávamos acostumados a ele. Contudo, podíamos mudar.
Paralelamente, durante a pandemia, houve pessoas
que passaram a ser chamadas de “trabalhadores essenciais”, pessoas que estavam expostas aos
riscos da Covid 19, mas que tinham salários muito baixos e jornadas
exaustivas. Enquanto isso, as pessoas que ganham um bom salário trabalhavam de
casa, com muito mais segurança. E durante a pandemia ganhavam ainda mais
dinheiro.
Essa desigualdade econômica significou um escândalo
social no Japão. Eu fiz uma crítica à questão de uma posição de esquerda e
a população aceitou que o capitalismo é um problema.
·
Parece que a economia japonesa está voltando aos níveis anteriores à
pandemia, mas há décadas se sabe que o país enfrenta um crescimento lento e uma
estagnação do crescimento populacional. Isso também é um fator de atração pelo
seu trabalho?
A recessão e
o decrescimento são duas coisas muito diferentes. O que
o Japão viveu nas últimas décadas não é o decrescimento, e a
falta de crescimento sustentado em uma sociedade capitalista gera
enormes problemas. Precisamos de uma transição consciente para uma sociedade pós-crescimento.
Os millenials e a geração Z não
se lembram dos dias de glória dos anos 1980 e não são tão otimistas em relação
ao progresso futuro do Japão. Portanto, reivindicamos uma nova sociedade
que não assuma o crescimento. Isto é o que proponho com o comunismo
decrescentista.
·
Como podemos avançar em direção a esse objetivo? É necessário que haja
uma revolução para alcançar o comunismo de decrescimento, como ocorre com o
comunismo clássico?
Eu não faço um chamado a uma revolução como a
russa. Não acredito que possamos acabar com este sistema por meio da tomada do
poder. Mesmo que tomássemos o poder no parlamento nacional, isso não mudaria o
sistema econômico. O mais realista é a ideia de Rosa Luxemburgo de uma realpolitik revolucionária por
meio de reformas; taxando a riqueza para introduzir uma renda máxima, por
exemplo.
As reformas e as medidas políticas podem gerar
muitas mudanças em nossa forma de perceber as coisas e de agir em nosso dia a
dia, mesmo que não consigam acabar com o capitalismo de modo
imediato. Contudo, uma transformação de nossa consciência e de nossos
comportamentos cotidianos nos permite ampliar o espaço para exigir mudanças
mais radicais.
Em minha opinião, é assim que avançaremos
gradualmente para uma sociedade baseada no decrescimento. Há pessoas
(sobretudo jovens) na Alemanha, na França e até nos Estados
Unidos que estão exigindo esse tipo de transformação. É um processo
progressivo, mas penso que nos anos 2030 veremos esse tipo de mudança
transformadora que provocará uma mudança sistêmica em todo o mundo.
·
Os países capitalistas avançados, como Japão e Alemanha, estão mais
preparados para o comunismo de decrescimento?
Algumas cidades
como Amsterdã, Barcelona, Paris e Nova York têm
um potencial extraordinário. Em nível local, estão sendo introduzidas novas
ideias, como a economia da rosquinha. Não espero que ocorra uma mudança de
cima para baixo, como na Revolução Russa, mas de baixo para cima; e as
cidades oferecem mais oportunidades para intervir na esfera política e fomentar
a mudança. As cidades são alguns dos lugares onde devemos lutar mais e tomara
que isso se estenda à esfera nacional.
·
“Comunismo decrescentista” não é um termo desnecessariamente assustador?
Para algumas pessoas, o decrescimento já é algo alarmante e você acrescenta a
ele o comunismo e toda a bagagem que carrega.
Pela mesma razão, não esperava que O Capital
no Antropoceno fosse um best-seller. O Japão tem tradição
marxista, mas fora das universidades não é um termo muito positivo.
O Japão é bastante capitalista e a população não acredita
no marxismo, nem no socialismo. No entanto, as pessoas estão cansadas
do capitalismo e, há muitos anos, a economia japonesa está
em crise.
Há muito interesse em ideias mais radicais, mas o
livro recebeu muitas críticas e admito que o conceito de comunismo
decrescentista é muito incisivo. Não obstante, utilizo estes termos como
uma espécie de provocação.
O que pretendo dizer é que
o capitalismo não funciona e que não basta consertá-lo. Precisamos de
ideias como o decrescimento e o comunismo para, pelo menos,
explorar novas possibilidades. Se as pessoas começarem a falar sobre novas
ideias fora do capitalismo, então, acredito que o meu livro já teve
sucesso.
·
Os Estados comunistas eram conhecidos pelo seu planejamento central. É
necessário recuperar a ideia de planejamento econômico, ou seja, de que o
Estado tenha mais peso nas decisões econômicas, como a respeito do volume de
produção de bens, por exemplo?
Sim, é necessário. Por isso,
o decrescimento deve aprender do comunismo ou, ao menos,
do socialismo. A corrente socialista tem uma longa tradição
de planejamento econômico. Existem planejamentos muito ruins, como o planejamento
burocrático extremamente centralizado da União Soviética, mas não é o único.
Poderíamos explorar formas de planejamento diferentes e mais democráticas.
Os que defendem o decrescimento não
costumam gostar de falar sobre isso porque associam qualquer tipo de
planejamento ao stalinismo e propõem a introdução de pequenas mudanças e reformas pontuais.
Parece-me que isto não é o suficiente: também é preciso falar e planejar quais
tipos de indústrias precisamos e quais não.
O capitalismo não investirá
na proteção da natureza, nem na construção de grandes projetos de
infraestruturas. Simplesmente, não é rentável. Se quisermos proteger o planeta,
precisamos de um planejamento cuidadoso e da intervenção do Estado.
Talvez a inteligência
artificial desempenhe um papel neste processo, ou talvez recorramos
à democracia local. Ainda não temos a solução, mas temos de resolver a
questão sobre como planejaremos a transição para a sociedade que desejamos.
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Descreva um dia normal para um cidadão normal, em uma sociedade
comunista decrescentista.
Já agora, podemos reduzir a jornada de trabalho para quatro dias e
acredito que, com a ajuda da tecnologia, no futuro poderíamos reduzi-la
para três. Ou seja, trabalhar 25 horas por semana. O que faremos com todo esse
tempo livre? Passaremos mais tempo com a família. Vamos nos dedicar à
jardinagem, talvez praticar esportes.
Faremos algum voluntariado e participaremos, a
nível político, do planejamento de nossa produção e na atuação de nosso governo
local. Não iremos para o trabalho de carro, mas, sim, de ônibus e metrô, e a
organização de nosso local de trabalho será mais horizontal.
Deveríamos ter maior rotatividade no trabalho.
As novas tecnologias nos permitem compartilhar mais e um maior
rodízio nas tarefas. Eu, por exemplo, que sou professor universitário, também
poderia lecionar em comunidades locais ou na prisão. Além disso, podemos usar
as nossas habilidades, capacidades e tempo não só para ganhar dinheiro, mas
também para formar comunidades e educar as novas gerações.
No mais, as coisas básicas são muito parecidas com
as de agora. Quando você chega em casa, pode tomar uma cerveja ou talvez ir à
sauna. Não passaremos muito tempo em centros comerciais, nem visitaremos
a Coreia ou Taiwan, no fim de semana.
Passaremos mais tempo na natureza e em lugares onde
possamos relaxar, mas não voltaremos ao estilo de vida de 120 anos atrás.
Continuaremos utilizando a tecnologia e desfrutando boas refeições
com amigos e familiares.
Fonte: Entrevista com Kohei Saito, para IHU OnLine
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