Existiu escravidão em Palmares? Historiadora explica equívocos sobre
tema
Ao longo de mais de 100 anos, o Quilombo dos Palmares foi um território de acolhimento
e resistência de escravizados que fugiam de canaviais e engenhos de cana
localizados da capitania de Pernambuco, como era denominada a região na época
colonial.
Em 2007, o local se tornou Parque Memorial Quilombo
dos Palmares, na cidade União dos Palmares, em Alagoas.
No entanto, o que tornou o território nacionalmente
conhecido foi a figura de Zumbi dos Palmares, um dos líderes do quilombo que
foi assassinado em 20 de novembro de 1695. A data marca, atualmente, o Dia da Consciência Negra.
O reconhecimento da luta de Zumbi ainda encara
empecilhos, avalia a historiadora Silvia Hunold Lara, professora titular
aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp).
Dedicada a estudar o período de escravidão no
Brasil e a resistência da população, a especialista comenta que a figura do
líder quilombola vem ganhando cada vez mais espaço no ensino brasileiro,
mas, ao mesmo tempo, é alvo de discursos "ideologizados".
Lara faz referência às vertentes da história que
argumentam que Zumbi foi escravagista e perpetuou esse regime dentro de
Palmares.
"A palavra escravidão, ou escravo, existiu no continente africano, na África Central,
sobretudo, mas são, digamos assim, formas de forçar as pessoas ao
trabalho de natureza muito diferente em relação à executada pelos
europeus na América", comenta em entrevista ao Bem Viver desta terça-feira (21).
"Quais diferenças? Uma é comercial, envolve
tráfico comércio dessas pessoas e é perpétua. Ela pode terminar com alforrias,
mas sob condições muito específicas", diz Lara sobre o processo trazido
pelos europeus.
"Na África há uma gradação enorme de
formas de dependência, muito mais do que forçar ao trabalho. Soldados que são
escravizados, prisioneiros de guerra que são integrados a certas famílias e que
podem mudar".
Além destas diferenças, Lara também pondera que não
é possível cravar que, de fato, houve este tipo de escravidão africana dentro
de Palmares.
"Não há registros documentais, mas é possível
que essas formas da escravização africana e da escravização africana tenham
sido revividas nos mocambos dos Palmares."
Doutora em história desde 1986, Lara é autora
de Campos da Violência. Escravos e senhores na Capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808 (1988) e Fragmentos Setecentistas.
Escravidão, cultura e poder (2007).
Na entrevista, a historiadora conta a origem do
Quilombo dos Palmares e a importância de Zumbi para o território. Além de
explicar que existiram outras lideranças na região.
>>> Confira a entrevista na integra abaixo
·
Qual é a origem de Zumbi dos Palmares e também do
próprio quilombo?
Então, o que a gente costuma chamar de quilombo dos
Palmares, na verdade, são vários agrupamentos que na época, no século 17, eram
chamados de mocambos
Quilombo é uma palavra de origem do quimbundo, que
é uma das línguas faladas na África Central, essa região que corresponde hoje a
Angola e Congo.
Então, é dessa região do Congo e Angola
que provinham a maior parte das pessoas que foram escravizadas e levadas
para o Brasil para trabalhar como escravos nos canaviais, nos engenhos, nos
currais, nas labores de uma forma geral.
E essa é a população que compunha em 90% essas
pessoas que trabalhavam como escravizados em Pernambuco.
Os mocambos foram formados com gente que fugia
dessa região. Então, a gente pode inferir que a maior parte dessa população dos
mocambos era proveniente da África Central, mais especificamente, falantes do
quimbundo.
Zumbi foi uma das lideranças, uma das grandes
lideranças do que a gente chama de quilombo dos Palmares, no período quase
final. Mas existem líderes depois que Zumbi foi assassinado, em 20 de novembro
de 1695, como Camuanga, por exemplo, que liderava outros agrupamentos de gente
fugida na região de Pernambuco.
·
Zumbi ficou conhecido como um grande general de
guerra. Ele também foi considerado com uma liderança dentro do quilombo nas
relações com a população?
Acho que nem uma coisa nem outra. Quando a gente
trabalha como historiador, a gente tem que lidar com a documentação que
registra os eventos do passado.
Essa documentação mostra que os mocambos se
formaram no começo do século 17. Os registros iniciais são de 1603, 1610, e
eles se estendem por mais de um século. Os últimos registros são de 1714, no
começo do século 18.
Zumbi foi uma liderança política e militar
extremamente importante a partir de 1680, 1682, é quando ele começa a aparecer.
Então vejam que, no começo do século 17, até quase o quarto final do século,
muitas outras lideranças existiram.
Então, na época dos holandeses, é possível
identificar o que era chamado de Rei dos Palmares, que se chamava Dumbi, por
exemplo.
Nos anos 1660 e sobretudo nos anos 1670, houve
outro líder importante, político, militar e líder de uma linhagem que governava
os vários mocambos formando uma rede vinculada por parentesco, mãe, filho,
sobrinhos e assim por diante -- que podem ter sido de fato um parentesco de
sangue, mas pode ser uma forma centro africana de indicar lideranças e
hierarquia entre as lideranças políticas.
Nesse período, então, na década de 1670, a grande
liderança dos Palmares é Gana Zumba, que era chamado de Rei dos Palmares,
Depois disso, existe um acordo de paz em 1678 e é a
partir deste momento que a figura do Zumbi, também chamado Zambi, há várias
formas com o que o nome aparece registrado na documentação, vai se tornando uma
liderança de uma parte dos Palmares.
Os Palmares se dividem em um certo momento e vão se
unificar a partir dos anos,
mais ou menos, 1680, 1682. E é quando Zumbi vai se tornando a grande liderança
até o seu assassinato em 1695.
Camuanga é uma das grandes lideranças posteriores.
Mas é possível encontrar nomes, como Gana Zomba, Gana Muissa. Outras lideranças
importantes, inclusive mulheres, o que é designado como a mãe de Gana Zumba,
Aca Inene, também foi uma chefe de mocambo na década de 1670.
Então, a gente tem várias lideranças. Zumbi é uma
referência importante nesse período, digamos, digamos, do final dos anos 1680 e
dos anos 1690.
·
Afinal, existiu escravidão em Palmares?
Eu acho que a primeira coisa que a gente precisa é
entender o sentido da escravidão nesse período todo, no século 17 e no século
18.
Essa é uma escravidão promovida pelos europeus para
forçar pessoas a produzir riqueza nas Américas.
Essa escravidão é diferente, embora a palavra possa
ser empregada, para uma escravidão que existia na África Central no mesmo
período, e que existia antes e que vai existir sob outras formas de trabalho
forçado na África no período posterior.
A palavra escravidão, ou escravo, existe no continente africano, na África
Central, sobretudo, e também nas Américas, mas são, digamos assim, formas de
forçar as pessoas ao trabalho de natureza muito diferente.
Que diferenças? Uma é comercial, envolve tráfico
comércio dessas pessoas e é perpétua. Ela pode terminar com alforrias, mas sob
condições muito específicas.
Na África há uma gradação enorme de formas de
dependência, muito mais do que forçar ao trabalho. Soldados que são
escravizados, prisioneiros de guerra que são integrados a certas famílias e que
podem mudar.
Não há registros documentais, mas é possível que
essas formas da escravização africana e da escravização africana tenham sido
revividas nos mocambos dos Palmares.
A gente não tem registros. Como eles aplicam na
gestão da vida cotidiana, nos costumes, nos poucos registros que a gente tem na
forma, na organização política, vários elementos da cultura centro-africana,
pode ser que a escravização e a escravidão africana estivessem presentes nos
Palmares.
Alguns registros de segunda mão dizendo isso, mas
são pouco confiáveis.
Por outro lado, é gente que fugiu da escravidão
americana, e é gente que fugiu depois de ter passado o tráfico, então
dificilmente será o mesmo tipo de escravidão americana que existia em
Palmares.
Sobretudo não é uma escravidão, nem o trabalho no
Palmares visava a produção de riquezas, mas a sobrevivência depois de uma
escravização nas Américas, depois do tráfico e da escravização nas
Américas.
Então eu acho que essa discussão não é sim ou não e
ponto final. E ela não pode ser ideologizada para dizer, por exemplo, "ah,
tinha escravidão nos Palmares, então a escravidão não significou muita
coisa".
E tem autores até que vão tirando daí para negar a
necessidade de políticas públicas para defender a cidadania dos descendentes,
dos escravizados no Brasil de hoje.
Quer dizer, isso é ideologização, né? Essas
questões têm de ser discutidas com maior conhecimento, com base na
documentação, para que a gente possa começar a aprender com o passado para
aplicar em questões do presente.
·
Zumbi deveria ser considerado, também, um herói da
independência do Brasil, por exemplo?
Acho que uma coisa é a gente analisar o sentido das
lutas no século 17 para as pessoas que viveram no século 17. Independência, por
exemplo, não estava inscrita nesse rol de questões políticas do século 17. Se
tratava de lidar com as sobrevivências, sob domínio dos senhores de escravos,
de que traficavam gente escravizada. Então, são outros sentidos.
Ao longo do tempo, no século 18, no século 19,
sobretudo, a figura do Zumbi vai ganhando novos significados políticos. Ele foi
uma figura importante para vários abolicionistas. Tem poemas sobre Palmares e
sobre Zumbi no século 19, no contexto abolicionista.
Vão se projetando vários significados novos para a
figura do Zumbi, que é diferente para as pessoas que viveram no século 17.
Zumbi, por exemplo, foi inscrito no livro dos
heróis da Pátria, em Brasília. Você pode visitar, tem um lugar em
Brasília, de próximo da Praça dos Três Poderes, que você tem o livro dos heróis
da Pátria.
Mas é isso que você estava falando no começo. Muita
gente não sabe nem quem é. Falta saber mais sobre isso.
Acho que nos últimos anos, a partir de uma série de
políticas públicas e como resultado do movimento negro no Brasil as coisas vêm
mudando. Isso é uma coisa bastante importante. Cada vez mais a gente tem a
presença da história dessas pessoas que foram escravizadas, das pessoas que
lutaram contra a escravidão presente nos livros didáticos, na sala de aula, nos
programas de rádio e TV.
Então, acho que essas são coisas importantes para
referência, das lutas pela independência política e econômica, sobretudo pela
luta contra a desigualdade social no Brasil, pela cidadania.
Fonte: Brasil de Fato
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