Brasil é um dos países mais perigosos para defensores de direitos
“Eu sofri uma tentativa de homicídio dentro deste
território no começo deste ano”. O relato é do xondaro ruwixa Tiago Henrique
Karai Djekupe, da Terra Indígena Jaraguá. Xondaro ruwixa significa líder entre
os guerreiros, em guarani. Na semana em que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos completa 75 anos, a Agência Brasil, em parceria com a TV Brasil e com a
Rádio Nacional, publica uma série de reportagens sobre o tema.
No Brasil, o papel de ativistas e movimentos
sociais é imprescindível para que direitos e garantias fundamentais saiam do
papel. Mas ser um defensor de direitos humanos no Brasil significa correr
riscos.
Levantamento das organizações Terra de Direitos e
Justiça Global mostrou que, de 2019 a 2022, o Brasil registrou 1.171 casos de
violência contra defensores de direitos humanos, com 169 pessoas assassinadas.
Uma marca que coloca o Brasil entre os países mais perigosos do mundo para quem
defende os direitos humanos.
“[Situações de] Pessoas passarem na frente da
aldeia e ameaçar com arma. Apontar. Falar na região que minha cabeça estava a
prêmio. Isso é o que vem trazendo essa dificuldade de eu conseguir… viver
mesmo”, declara emocionado o jovem, de 29 anos, que é estudante de arquitetura
e urbanismo da Escola da Cidade.
Karai Djekupe é porta-voz de uma história
ancestral. “Eu sou nascido neste território, Terra Indígena Jaraguá. Nosso
território, que foi invadido em 1580 pelo bandeirante Afonso Sardinha,
traficante de escravo angolano e conhecido como matador de Carijós. Carijós que
eram como nos chamavam, o povo Mbya Guarani”, conta. A história é antiga e
complexa, mas ajuda a entender o contexto em Karai Djekupé passou a correr
risco de vida.
·
Histórico
A Terra Indígena Jaraguá fazia parte de um
aldeamento do século 17, o Barueri, informa relatório da Fundação Nacional do
Índio (Funai) de 2013, assinado pelo antropólogo Spensy Pimentel. Depois de
séculos de colonização, muitos indígenas morreram, e alguns adotaram a cultura
dos colonizadores. Outros resistiram. Nos anos de 1960, a família de Djekupé
foi expulsa de outro aldeamento guarani, no Sul do Brasil. Os avós seguiram, à
força, para São Paulo, onde encontraram guaranis remanescentes do Barueri no
Pico do Jaraguá.
O Jaraguá é um pedacinho preservado da Mata
Atlântica em plena cidade de São Paulo. O território foi demarcado em 1987 com
apenas 1,7 hectare, a menor reserva indígena do Brasil. Em 2015, último ano do
governo de Dilma Rousseff, a TI foi ampliada e passou a ter 532 hectares. Em
2016, uma portaria do então presidente Michel Temer voltou a reduzir o
território, dessa vez para 3 hectares. Os indígenas recorreram à Justiça e uma
liminar suspendeu a vigência da portaria.
O texto de 2016, no entanto, nunca foi, de fato
revogado, e o fantasma da redução do território segue assombrando os guaranis
do Jaraguá. A reserva indígena é cercada por grandes rodovias, lugar
estratégico para os serviços de logística e cobiçado pelo mercado imobiliário.
Karai Djekupe aprendeu cedo que os interesses econômicos de gente poderosa
alimentam a disputa.
“Quando eu tinha por volta de 9 anos de idade
chegou aqui a família Pereira Leite. A família de Joaquim Pereira Leite, que
foi ministro do Meio Ambiente do [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Ele veio
reivindicando uma das áreas que estavam se formando na aldeia, que chama de
Tekoa. A Tekoa Pyau fica encostada na Rodovia dos Bandeirantes e ele chegou
falando que queria fazer ali uma transportadora, acesso para a rodovia, que a
área ali era dele, era uma gleba. E ele queria que nosso xeramõi [meu avô]
aceitasse um punhado de dinheiro em troca de sair da terra. Nosso xeramõi falou
que não se trocava terra por papel e que a gente ia ficar ali, que aquela terra
era sagrada para nós”, lembra.
·
Luta por direitos
A família Pereira Leite é apenas uma das 15 que
reivindicam a propriedade de partes da Terra Indígena Jaraguá. Karai Djekupe
entrou para a lista de defensores de direitos humanos que são vítimas de
violência no Brasil. O levantamento da Terra de Direitos e da Justiça Global
mostra que corre ainda mais risco quem luta pelo direito à terra ou defende o
meio ambiente, como é o caso dos guarani em São Paulo. De cada dez casos de
agressões, oito foram de pessoas envolvidas em conflitos fundiários. Do total, 140
defensores e defensoras foram assassinados por defender seus territórios.
O indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom
Phillips, mortos no Vale do Javari em 2022, entram nessa estatística. Mas o
levantamento ainda não inclui o assassinato de Maria Bernadete Pacífico, a Mãe
Bernadete, liderança do Quilombo de Pitanga dos Palmares, na Bahia, assassinada
em 2023 na frente dos netos, no dia 17 de agosto. Não é por acaso que indígenas
e quilombolas estão entre as principais vítimas na luta por direitos.
“Ela [a luta por direitos] está atravessada por uma
dicotomia, vamos dizer assim, que persiste desde o nosso passado escravagista,
que é uma dicotomia entre os alguém e os ninguém”, diz o psicanalista Christian
Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(USP).
Foi com lágrimas nos olhos e a voz embargada que
Karai Djekupe disse o que significa ser uma pessoa alcançada pelos direitos
humanos. “Acho que é o direito de viver. Não ter medo que alguém mate seu
filho. Não ter medo de sair na rua e alguém te dar um tiro. Por você
simplesmente querer defender a sua forma de ser. Acho que é isso. Desculpa”,
disse à reportagem.
Dunker questiona esse cenário em que os direitos
são garantidos parcialmente, numa lógica excludente. “Aqueles que têm lugar
onde moram, têm habite-se, que constroem segundo as leis, pagam impostos, são
reconhecidos pelo Estado, têm acesso à saúde e educação. E aqueles que estão no
universo do, digamos assim, vida sem valor, que podem ser matadas impunemente,
que são ninguém, que são quase gente. A gente força a mão ao dizer isso porque
esse é um regime tácito de negação de direitos humanos.”
A reportagem tentou contato com o ex-ministro do
Meio Ambiente Joaquim Pereira Leite, mas não conseguiu até a liberação desta
matéria.
Fonte: Por Eliane Gonçalves e Thiago Padovan –
Repórteres da Rádio Nacional e da TV Brasil, na Agência Brasil
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