A reconstrução nacional sob fogo-amigo
Ao que tudo parece indicar, os responsáveis pela área econômica do
governo Lula 3.0 continuam habitando espaços muito distantes do país chamado
Brasil. Mais do que isso, seu comportamento é típico de gente que passou
décadas em alguma ilha perdida no oceano, sem ter conseguido manter contato com
as novidades incorporadas pelo avanço civilizatório ocorrido durante o
isolamento. A se levar em conta as declarações que têm sido veiculadas por
ocupantes de cargos de segundo escalão dos Ministérios da Fazenda e do
Planejamento, as próximas decisões do governo para a política fiscal são
bastante preocupantes.
Os primeiros passos rumo ao abismo começaram a ser dados ainda antes da
posse do novo governo. Logo que ficou confirmada derrota de Bolsonaro no pleito
de outubro do ano passado, o futuro ministro da Fazenda começou a articular a
chamada PEC da Transição. Com o argumento razoável de que a nova equipe
precisaria de um orçamento compatível com os programas apresentados à sociedade
na campanha eleitoral, Haddad preparou a alteração que foi promulgada sob a
forma da Emenda Constitucional nº 126. No entanto, o documento não promoveu a
necessária e simples revogação do teto de gastos. Pelo texto aprovado, o teto
só deixaria de ter validade no momento em que o Congresso Nacional aprovasse
uma lei complementar estabelecendo um novo arcabouço fiscal.
Assim, esse foi o gatilho para a aprovação da LC nº200/23, que manteve
as características essenciais da austeridade fiscal, porém apresentando uma
roupagem um pouco mais flexível do que a rigidez absoluta dos 20 anos de
congelamento de despesas previsto nas regras do teto de gastos. Com o intuito
de recolher sugestões para a elaboração do projeto de substituição do
instrumento da austeridade máxima, o principal responsável pela política
econômica conversou apenas com o bolsonarista ocupando a presidência do Banco
Central (BC) e com alguns dirigentes de instituições financeiras privadas. O
resultado foi um dispositivo que manteve o espírito ortodoxo da austeridade
fiscal, com mecanismos que apontam para necessidade de redução do Estado e para
a transferência de políticas públicas para o setor privado.
• Haddad e a inexplicável
saga da austeridade
Para completar o quadro da tragédia anunciada, Haddad decidiu que o
governo deveria se comprometer com uma meta de equilíbrio fiscal primário para
o ano que vem. Considerando que o resultado das contas governamentais para 2023
deve encerrar o ano com um déficit primário superior a R$ 200 bilhões, há um
enorme risco em se promover esse verdadeiro cavalo de pau na política fiscal na
virada para 2024. O ministro da Fazenda convenceu o presidente da República a
respeito de tal estratégia. Assim, o Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) para 2024 encaminhado ao Congresso Nacional pelo Executivo conta com um
artigo que pode representar uma grave armadilha para o governo durante a
execução orçamentária ao longo do próximo ano.
O dispositivo revela o incompreensível desejo de manter a austeridade
absoluta em um exercício fiscal que aponta para necessidade de elevação de
despesas públicas e dos investimentos do Estado.
(…) “Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária
de 2024 e a execução da respectiva Lei deverão ser compatíveis com a meta de
resultado primário de R$ 0,00 (zero real) para os Orçamentos Fiscal e da
Seguridade Social, conforme demonstrado no Anexo de Metas Fiscais constante do
Anexo IV a esta Lei.” (…) [GN]
Ao apontar para o desejo de inviabilizar a realização de gastos
fundamentais para atender às demandas tão características de um ano em que
serão realizadas eleições em cada um dos 5.571 municípios do País, o ministro
da Fazenda apenas procrastina as dificuldades políticas para obter algum grau
de flexibilização na execução do orçamento federal em 2024. Na verdade, existe
uma espécie de consenso entre os principais agentes políticos e econômicos
quanto ao irrealismo da meta. A insistência de Haddad com a tese se aproxima de
uma obstinação pela condução austericida da política econômica. Afinal, não
existe nenhum argumento no campo da racionalidade para justificar a perseguição
de tal objetivo.
• Riscos elevados para saúde
e educação
O problema é que a manutenção de tal dispositivo na LDO não resolve
apenas os problemas da consciência e do bom mocismo do chefe da economia. A
contenção das despesas públicas implícita na meta de “zerar o déficit”
certamente vai criar outras dificuldades para Lula cumprir com suas promessas
de campanha. Ao invés de conseguir instrumentos para realizar o sonho de “fazer
40 anos em 4”, o presidente é bem capaz de se ver em meio a um pesadelo de
retirar as garantias constitucionais dos pisos para as despesas de saúde e de
educação. Afinal, esse era o desejo não realizado de figuras ultraconservadoras
como Henrique Meirelles e Paulo Guedes, que passaram pelo comando da economia
depois do golpe contra Dilma Rousseff.
Caso Lula mude de opinião ainda a tempo de apresentar uma emenda ao
Projeto da LDO antes da votação da matéria agora em dezembro, o cenário para
2024 pode ficar um pouco menos tenso. Para tanto, bastaria reconhecer a
necessidade de um déficit primário de 1% do PIB, por exemplo. O governo não
estaria cometendo nenhuma “irresponsabilidade” com esta simples declaração de
intenções, ao contrário do que afirmam os “especialistas” a mando do
financismo, que tentam enganar a opinião pública a esse respeito. Apresentar
déficit primário não é nenhuma heresia. Aliás, essa é a realidade das contas
públicas atualmente na grande maioria dos países ditos desenvolvidos.
No entanto, o que se vê na grande imprensa são declarações de
integrantes da área econômica apontando para a necessidade de o atual governo
encaminhar medidas visando a reduzir a obrigatoriedade de cumprimento dos
mínimos que a Constituição estabelece os gastos com educação e saúde. Uma
loucura! Tanto o ocupante da Secretaria do Tesouro Nacional (vinculada ao
Ministério da Fazenda) quanto o titular da Secretaria do Orçamento Federal (da
estrutura do Ministério do Planejamento) já se manifestaram diversas vezes a
esse respeito. A cartada mais recente foi uma consulta formal encaminhada pelo
governo ao Tribunal de Contas da União (TCU) solicitando autorização para que
as regras dos mínimos de 15% e 18% sejam aplicadas à saúde e à educação,
respectivamente, apenas a partir de 2024.
• A última palavra é de Lula
Tendo em vista a elevada sensibilidade suscitada pelo tema, nem Fernando
Haddad nem Simone Tebet ousaram se manifestar publicamente sobre a retirada de
tais pisos. No entanto, o silêncio dos ministros não significa que as áreas de
cada uma das pastas estejam aguardando alguma orientação superior para agir. Na
verdade, a tecnocracia parece estar trabalhando com o cenário em que os
mencionados pisos serão efetivamente quebrados e as despesas das áreas tão
essenciais para as políticas públicas serão ainda mais reduzidas em 2024.
Lula já foi advertido dos riscos políticos e econômicos envolvidos na
continuidade de tal estratégia austericida. No entanto, até o presente o
presidente da República tem oferecido sinais públicos contraditórios a esse
respeito. Em uma ocasião, durante um café da manhã com jornalistas, ele afirmou
que o governo “dificilmente” conseguiria atingir a meta de déficit fiscal
equilibrado no ano que vem. No entanto, dias depois, em reunião com ministros,
ele descartou apresentar uma emenda para definir o resultado fiscal primário
como deficitário em 2024.
O tabuleiro está montado e as posições das peças estão definidas. Cabe a
Lula estabelecer a vontade do governo e evitar que o seu governo inicie o ano
com uma perigosa aventura pela trilha da austeridade extremada e desnecessária.
Ø Congresso
pode impactar investimentos do governo em 2024
O Congresso votará, nesta semana, se mantém os vetos do presidente da
República, Lula, em duas principais pautas que podem afetar o Orçamento do
país: a desoneração da folha de pagamentos e o limite de investimentos do marco
fiscal.
Tratam-se de decisões dos parlamentares que, ao chegarem ao governo
federal para sanção, o presidente Lula negou tais medidas. Mas essa negativa do
presidente ainda pode ser desfeita pelos próprios parlamentares, que têm a
última palavra, com o poder de vetar o veto do governante.
Enquanto a desoneração da folha de pagamentos é um benefício dado a
alguns setores do comércio que, na prática, significa que o país deixa de
receber impostos destas categorias, as mudanças no marco fiscal foram
limitações para o presidente Lula não gastar com investimentos públicos.
Assim, nos projetos enviados para sanção, os parlamentares abdicaram de
recursos obtidos de impostos de alguns setores da economia, implicando em uma
falta de recursos para a União e, por outro lado, limitaram investimentos do
Executivo em áreas que poderiam trazer benefícios ao país.
·
O que tira dinheiro
A desoneração da folha de pagamentos era um projeto de lei vigente desde
2011, que dava o benefício para 17 setores da economia (calçados, vestuário,
comunicações, etc) de deixarem de pagar 20% da contribuição previdenciária.
Pelos cálculos do Ministério da Fazenda, essa renúncia fiscal impacta em
mais de R$ 9 bilhões que a União deixa de receber. Ao chegar nas mãos do
presidente, o texto foi vetado, ou seja, impedido por Lula, para que voltem a
pagar esse imposto.
Os parlamentares da oposição alegavam que a volta desse pagamento pelos
setores significará em demissões em massa, o que prejudicará a economia.
Estudos, contudo, indicam que os setores hoje beneficiados pela desoneração não
são os que mais empregam no país, e essa renúncia fiscal sai mais caro à União.
A oposição tentará derrubar o veto de Lula e manter o benefício de
imposto aos setores.
·
O que limita investimentos
Na contramão, os parlamentares aprovaram outras duas medidas que
limitam, restringem os investimentos públicos do presidente no marco fiscal,
como impedir a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de retirar investimentos
da meta de resultado primário, o que afetava, por exemplo, os investimentos do
PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
Esperando investir mais de R$ 60 bilhões em 2024 no PAC, o governo
federal vetou essa regra, para permitir que esses recursos sejam retirados da
meta de déficit primário. Caso caia o veto, ou seja, se mantenha a limitação de
gastos, o governo terá que suspender investimentos e o PAC perderia 8 bilhões
no ano.
Fonte: Por Paulo Kliass, em Outras Palavras/Jornal GGN
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