quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Rodrigo Perez: Qual o significado político profundo da eleição presidencial na Argentina

Foi com grande surpresa que o mundo recebeu os resultados das eleições presidenciais na Argentina. Primeiro, em agosto, quando o controverso deputado Javier Milei foi o candidato mais votado nas primárias, com 30% dos votos, assumindo a liderança da chapa Libertad Avanza.

Em seguida, no 1° turno realizado em 22/10/2023.  Sérgio Massa, candidato situacionista e atual ministro da economia, assumiu a dianteira da disputa, com 35,56% dos votos. Milei ficou em segundo lugar, com 30,05%. Os dois candidatos disputarão o segundo turno, el ballotage, a ser realizado em 19 de novembro.

Até aqui, as pesquisas erraram para todos os lados. Não detectaram a força de Milei e tampouco identificaram a recuperação de Massa. Isso mostra os limites que as pesquisas inventadas para entender os sentimentos das sociedades de massa estão enfrentando. A dinâmica das mídias digitais parece exigir novas metodologias de investigação e os institutos especializados ainda não encontraram a calibragem adequada.

Quero discutir o significado político profundo das eleições presidenciais argentinas.

Em um mundo hiperconectado, algumas experiências políticas, inevitavelmente, se tornam transnacionais. É o caso da crise da democracia liberal representativa, que se manifesta no Brasil, nos EUA, na Inglaterra, na França, na Espanha, na Hungria, na Polônia, na Turquia e na Argentina, pra ficarmos em poucos exemplos.

A crise democrática global é uma das principais características dos nossos tempos e a disputa eleitoral na Argentina expressa essa realidade.

Como?

A resposta nos leva à figura de Javier Milei.

A quebra do decoro na comunicação social, a motosserra como símbolo de destruição, a autorrepresentação como outsider revolucionário capaz de destruir os privilégios das elites. Um tipo de retórica política que no passado pertencia às esquerdas e agora foi tomado pela extrema-direita. Hoje, são as esquerdas que defendem a ordem democrática liberal.

Quem te viu, quem te vê....

As semelhanças entre Milei e Bolsonaro são óbvias, assim como as afinidades entre Massa e o governo Lula também são. A prudência diplomática que recomenda aos governos que não se intrometam nos processos eleitorais de outros países caiu por terra.

O PT enviou marqueteiros à Argentina. O Brasil foi avalista da entrada da Argentina no BRICS e manifestou disposição em financiar o gasoduto de Vaca Muerta.

A comunicação institucional do governo brasileiro não poupou fotos em que o presidente Lula e o ministro Haddad aparecem confraternizando com Sergio Massa. O destinatário dessas imagens, obviamente, é o eleitorado argentino. É como se o Brasil estivesse prometendo que o possível governo Massa contaria com a ajuda econômica do país mais rico da região.

A eventual vitória de Milei seria, sim, fator de desestabilização para o esforço de reconstrução democrática que está sendo empreendido pelo governo Lula. Significaria, também, injeção de ânimo na militância bolsonarista.

O outro lado também não está poupando esforços.

 Eduardo Bolsonaro foi a Buenos Aires manifestar apoio a Milei e tentar fortalecer sua posição de líder da internacional pós-fascista. Eu poderia apostar que será ele o escolhido para suceder o pai nas urnas em 2026. Tarcísio de Freitas, Zema e cia ficarão chupando dedo. Mas isso é conversa para outro momento, para outros textos.

Retomando a pergunta inicial:

Ainda que a vitória parcial de Sérgio Massa no 1° turno mostre a grande resiliência do peronismo, algo continua muito errado no sistema democrático argentino.

Milei relativiza os crimes cometidos pela ditadura. O fato de um sujeito assim ter tanta força eleitoral no país que colocou em prática a mais eficiente justiça de transição da América Latina era algo impensável até pouco tempo atrás.

O fenômeno Milei traduz a tristeza e a revolta geradas pela incapacidade da democracia liberal em promover um mínimo de bem-estar social no atual estágio da acumulação capitalista.

Para as classes políticas democráticas fica o desafio de compreender o real sentido da crise: “democracia” não é apenas um conceito, não é tão somente uma abstração. Precisa ser experiencia concreta de dignidade social e bem-estar material.

A ação política democrática precisa, no mínimo, moderar apetite do capitalismo pós-industrial, no sentido de preservar os direitos sociais e laborais produzidos pelo social-democracia ao longo da segunda metade do século XX.

Para quem tem o prato vazio, pouco importam as diferenças formais entre ditadura e democracia.

 

Ø  Líderes do radicalismo rejeitam uma possível aliança de JxC e Javier Milei

 

O líder radical Federico Storani negou qualquer possível aliança que esta força política pudesse estabelecer com La Libertad Avanza (LLA). Descreveu o líder daquele espaço, Javier Milei, como “um fascista” e sustentou que, como tal, “não perdoa os radicais por terem sido os autores do Julgamento das Juntas ”.

A voz de Storani ecoa diferentes expoentes da UCR que saíram para se distanciar do possível apoio que a aliança Juntos pela Mudança poderia fornecer ao candidato negacionista que competirá no segundo turno com Sergio Massa.

Um deles foi o ex-deputado Facundo Suárez Lastra, que recomendou que a coligação liderada por Mauricio Macri clamasse pela liberdade de ação dos seus eleitores face ao segundo turno, mas apelou ao voto em branco.

Assegurou que não votará no líder do LLA porque faz parte de “uma direita fanática, agressiva e autoritária”, e considerou que a UCR não deveria fazer parte de um governo de unidade nacional proposto por Sergio Massa .

Federico Storani deu mais argumentos e interpretações. Uma delas foi que a razão pela qual Milei expressou em diversas ocasiões a sua raiva contra o radicalismo tem a ver com a sua origem “fascista” e com o círculo interno de negacionistas que o acompanham, como a sua candidata a vice-presidente Victoria Villaruel.

“Ele está cercado por alguns que têm agenda vingativa, por exemplo, a negação do que aconteceu durante a última ditadura militar e o terrorismo de Estado. E não nos perdoam, radicais, por termos sido os autores do Julgamento das Juntas Militares ”, comentou durante entrevista ao C5N.

Neste sentido, sustentou que a condição “anti-radical” de Milei “é um mérito” do radicalismo e considerou que, portanto, aquele partido político “não lhe deveria fazer a concessão de dizer que é um liberal ou um ‘libertário’. “Milei é fascista”, disse ele.

E não só isso declarou o segundo vice-presidente do Comitê Nacional UCR. Ele também descreveu a força liderada por Milei como “uma espécie de Menemismo renovado “, cujas ideias “não são novas, mas muito antigas”.

“A escola austríaca que invoca permanentemente só pode ser aplicada economicamente com o autoritarismo na política ”, alertou e lembrou as ligações diretas que o LLA mantém com o VOX de extrema-direita, defensor da ditadura de Francisco Franco.

E acrescentou: “Milei responde a uma internacional que se expressa como uma nova direita em todo o mundo, a sua relação com (Santiago) Abascal que expressa a reivindicação do Falangismo e com quem tem participado em eventos em Espanha sob o lema “Voltar ao ’36”, isto é, antes da Guerra Civil.”

Milei “também tem uma relação com Giorgia Meloni, que é a expressão do fascismo na Itália, e cultiva uma relação de amizade com Jair Bolsonaro, que expressa o pensamento mais reacionário, conservador e fascista da América Latina”, afirmou.

Quem também se manifestou contra o apoio ao líder do LLA foi María Luisa Storani, irmã de Federico, que anunciou que planejará em seu partido “apoiar Massa” no próximo segundo turno.

“É muito provável que (um setor da UCR) apoiem Sergio Massa ”, indicou ela e deixou claro que ela e vários outros líderes dessa força política “serão sempre contra Milei”.

 

Ø  Hermanos, pero no mucho: as idas e vindas da aliança estratégica entre Brasil e Argentina

 

O estabelecimento de uma relação estratégica com a Argentina fez parte do arcabouço político de diversos governos brasileiros ao longo do tempo, desde Fernando Henrique Cardoso até a atual gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. Contudo, por vezes, ambos os países preferiram seguir seus caminhos de forma isolada na arena internacional.

Por mais que próximos geográfica e culturalmente, importantes diferenças nas visões de mundo das lideranças de Brasil e Argentina foram capazes — em diversas ocasiões — de colocá-los em rotas distintas do ponto de vista de política externa.

Quanto aos dois primeiros mandatos do governo Lula (2003–2010), as relações entre Brasil e Argentina apresentaram bastante proximidade, sobretudo em temas como: a consolidação da América do Sul como um polo de poder global, a priorização das relações Sul-Sul e a luta pela autonomia política regional diante dos Estados Unidos.

Contudo, diferentemente da Argentina, o Brasil de Lula acabou caminhando de forma mais assertiva no sentido de defender uma ordem mundial multipolar, através de sua cooperação com potências importantes como China, Rússia e Índia no âmbito do BRICS, com o Brasil sendo o único país latino-americano a participar do agrupamento.

O governo de Dilma Rousseff, por sua vez, deu continuidade às principais linhas gerais da política externa de Lula, porém com menos entusiasmo que seu antecessor, ainda que o Brasil tenha mantido uma conduta de protagonismo em fóruns como o G20 e o próprio BRICS.

Diferentemente da Argentina, que no período vivenciava problemas econômicos sérios em âmbito doméstico, o Brasil de Dilma seguiu sozinho em sua campanha para conseguir um lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, por exemplo, sob a pretensão de representar toda a América Latina.

Tal empreitada, por sua vez, não foi unanimemente chancelada pelos formuladores de políticas em Buenos Aires, que à época enxergavam no Brasil uma liderança regional hesitante. Por outro lado, o governo Dilma também demonstrou um viés propriamente revisionista das instituições internacionais de governança global, como era o caso do FMI, que, em última análise, interessava à Argentina, dado que o país durante os anos 2000 havia se endividado perante a instituição.

Não obstante, conforme discurso inaugural do primeiro chanceler de relações internacionais da administração Dilma, Antonio Patriota, para o Brasil a Argentina encontrava-se no centro da construção de um lugar especial para a América do Sul no mundo. Nesse ínterim, enquanto Dilma compartilhou mandato com sua homóloga Cristina Kirchner (2007–2015), as duas presidentes tiveram vários encontros e visitas presidenciais que evidenciaram um clima de bastante cordialidade nas relações entre as duas lideranças.

Todavia, com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a chegada ao poder de Jair Bolsonaro em 2019, Brasil e Argentina viveriam um sucessivo período de estranhamento. Isso porque de início Bolsonaro voltou suas atenções para o estabelecimento de relações mais próximas com os Estados Unidos de Donald Trump, deixando de lado iniciativas regionais nas quais o país participava juntamente com a Argentina, como é o caso da CELAC, abandonada pelo Brasil em 2020.

Apesar de posições econômicas coincidentes com as do presidente argentino Mauricio Macri (2015–2019) — maior liberalização e menor participação do Estado na economia — Bolsonaro não somente deslocou o Mercosul de sua posição prioritária na agenda política do Itamaraty, como também reduziu o perfil estratégico das relações com Buenos Aires.

Seja como for, a vitória eleitoral de Joe Biden em 2020 mudou alguns aspectos da política exterior do governo brasileiro, implicando inclusive em mudanças no gabinete de Jair Bolsonaro, entre elas a retirada do antigo chanceler Ernesto Araújo, que foi substituído pelo mais moderado diplomata de carreira Carlos França.

Araújo, vale lembrar, havia contribuído justamente para esfriar a relação do Brasil com os países vizinhos, entre eles a Argentina, que passou a aumentar as exportações de seus produtos para o mercado chinês em detrimento do brasileiro. Já com Alberto Fernández (2019–presente) à frente da Casa Rosada, aprofunda-se o estranhamento entre as duas lideranças, pelo menos até o retorno de Lula à presidência do Brasil em 2023.

Lula e Fernández, por sua vez, mantêm um diálogo político próximo — e também mais alinhado, com enfoque em uma retórica em defesa do Sul Global e em prol de uma América Latina independente, por meio justamente do fortalecimento de instituições regionais como a Unasul, o Mercosul e a CELAC, para a qual o Brasil acabou retornando em 2023.

Hoje a aproximação ou o estranhamento entre Brasil e Argentina dependerá fundamentalmente do resultado das urnas no segundo turno das eleições presidenciais na Argentina.

Em caso de vitória de Sergio Massa, candidato do atual governo, espera-se uma continuidade das relações cordiais e da cooperação com o atual mandatário brasileiro, mantendo-se assim linhas similares de política externa e de atuação regional tanto no Mercosul quanto em demais iniciativas sul-americanas.

Diante de uma vitória de Massa, o mais provável é esperar por um fortalecimento da posição negociadora de blocos como o Mercosul perante a União Europeia, e também pela entrada da Argentina no BRICS em 2024.

Entretanto, em caso de vitória de Javier Milei, novamente presenciaremos um desencontro de agendas e de visões entre a política externa argentina e a brasileira.

Milei provavelmente bloqueará a entrada da Argentina no BRICS, grupo que vê com bastante ceticismo, além de não rejeitar a política universalista e multilateralista do Brasil, com Buenos Aires devendo adotar negociações bilaterais com parceiros selecionados, sobretudo com os norte-americanos, e afastando-se da China.

Do resultado das eleições no país vizinho, portanto, saberemos se Brasil e Argentina se manterão próximos em termos de política externa ou se seguirão separados na defesa de seus interesses nacionais, diante de um cada vez mais conturbado cenário internacional.

 

Fonte: Fórum/Página 12/Sputnik Brasil

 

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