Frederico Dalponte: Argentina – um passo mais longe
do abismo
Não é fácil compreender o
que ocorreu no primeiro turno das eleições presidenciais argentinas. A tentação
é acreditar que o fervor democrático prevaleceu em relação aos fatores
econômicos ou à corrupção, mas tudo é sempre mais complexo. Se quisermos
arriscar um palpite, o surpreendente resultado de Sergio Massa, que saltou do
terceiro lugar nas primárias para o primeiro nas eleições gerais, pode ser
explicado – em princípio – por três fatores.
O primeiro fator é de
natureza geográfico, pois houve um aumento significativo de votos em todos os
distritos, tendo o peronismo recuperado um poder a nível federal que parecia
ter perdido nas primárias. Destacam-se as contribuições de Santa Fé (de 21%
para 29%), da província de Buenos Aires (de 32% para 44%), da cidade de Buenos
Aires (de 23% para 32%) e de Tucumán (de 33% para 44%). E há espaço para
aumentar a porcentagem de votos em províncias como Córdoba e Mendoza, onde o
desempenho ainda está abaixo do que foi obtido em 2015 e 2019.
Em segundo lugar, o
aspecto discursivo-ideológico também oferece uma possível explicação. Em
particular porque o novo eleitorado conquistado pela coalizão Unión por la Patria
é, em grande medida, o eleitorado perdido pela coalizão Juntos por el Cambio na
sua faceta moderada, representada por Horacio Rodríguez Larreta até agosto. A
estratégia rígida e confrontacional de Patricia Bullrich permitiu-lhe ganhar as
primárias, mas não lhe deu margem para crescer nas eleições gerais, deixando um
eleitorado centrista abandonado e preocupado com a ascensão de Milei.
E, finalmente, é certo
que a economia também explica em parte o crescimento de Sergio Massa. Não por
causa de uma melhoria aparente da situação geral do país, mas porque, pela
primeira vez em muitos anos, o governo compreendeu a necessidade de aumentar as
rendas de forma urgente e eficaz. Ponto a favor do reembolso do IVA (imposto de
valor agregado) para os produtos essenciais.
Neste contexto, resta
saber se o peronismo e os seus adeptos conseguirão atrair novos eleitores entre
aqueles que votaram em Patricia Bullrich no domingo, especialmente depois do
seu discurso de derrota, no qual estava implícito o seu apoio a Javier Milei.
Esses 24% do eleitorado de Bullrich, como se sabe, não são monolíticos e
deverão pender para ambos os lados. Em todo caso, teria sido preferível que a
ex-ministra da Segurança mostrasse algum bom senso, pelo menos por respeito ao
sistema democrático.
O caminho desejável era o
da Alemanha e da França, onde as coisas têm funcionado até agora. Dessa forma,
impediram que a extrema-direita chegasse a cargos executivos. São os famosos
"cordões sanitários", uma espécie de cerco político à propagação das
– digamos – ideias fascistas, quer excluindo os partidos extremistas dos
acordos parlamentares, como no caso do partido de direita alemão AfD, quer
evitando apoiá-los nas eleições do segundo turno, como no caso da (antiga)
Frente Nacional francesa de Marine Le Pen.
A estratégia era bem
simples, mas Bullrich perdeu a oportunidade de se tornar uma estadista no
domingo e deixou em aberto a possibilidade de um participante no jogo
democrático romper o sistema a partir de dentro. Resta saber se o seu
posicionamento para o segundo turno é apenas o dela e o de Mauricio Macri, o
eventual embaixador de Milei, ou se os radicais e os chamados moderados do PRO
também se juntarão a ela. Apostaríamos que não, mas é melhor não colocar a mão
no fogo.
Além disso, mesmo que o
partido Juntos por el Cambio apelasse abertamente ao voto da extrema-direita,
não é garantido que o seu eleitorado respondesse de forma coesa. Entre eles, há
anti-peronistas raivosos, é evidente, mas também radicais nostálgicos,
opositores centristas, pessoas que exigem mais segurança e até pessoas mais
velhas com um perfil conservador, que não estão inclinadas a apoiar aventuras
imprevisíveis como a proposta de Milei.
Foi precisamente aqui que
o candidato de La Libertad Avanza falhou. Na segunda parte da campanha, longe
de se amansar para captar os votos de Juntos por el Cambio, manteve um discurso
extremista que o impediu de expandir a sua base eleitoral. Assim, desperdiçou o
seu momento de glória, durante as semanas em que esteve no centro da campanha,
distribuindo ministérios como se já tivesse ganho. "Estamos prontos para
governar hoje, se necessário", disse dois dias depois das primárias. Há
nisso um cheiro de amadorismo.
O alívio é evidente, mas
o resto da campanha não será menos estressante. Talvez neste contexto, Massa
consiga tirar proveito da chance que o seu adversário desperdiçou e oferecer
uma imagem presidencial atrativa e convincente. São quatro semanas para gerir e
dar corpo às esperanças que lhe foram depositadas desde a noite que o primeiro
turno se encerrou.
Por enquanto, a
estratégia delineada no discurso de vitória parece adequada, embora complexa: a
promoção da unidade nacional tem boa repercussão na imprensa, mas acrescentar
consistência política a ela será um desafio – para os outros e também para ele
próprio. Recordemos que a lista de possíveis futuros aliados inclui, por
exemplo, o governador de Jujuy, Gerardo Morales.
Neste contexto, o dado
final: se Massa conseguir captar todos os eleitores da Frente de Izquierda e
metade dos de Juan Schiaretti, terá ainda de fazer um esforço titânico para
seduzir pelo menos um terço do eleitorado do Juntos por el Cambio. Difícil, é
claro, mas até o domingo de eleição tudo isto era muito mais improvável, e aqui
estamos nós.
Ø Argentina: ‘Massa é Alckmin e Milei é Paulo
Guedes’, compara especialista
O segundo turno das
eleições presidencial da Argentina coloca frente a frente o peronista Sérgio Massa, vencedor do primeiro turno, e o ultraliberal Javier Milei, que venceu as primárias de
agosto, mas acabou superado e
ficando em segundo lugar dois meses depois.
O cenário apresentado ao
país vizinho é comparável ao que teve o Brasil em 2022, quando a Presidência da
República foi disputada entre a centro-esquerda e a extrema direita,
representadas pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), que perdeu sua
reeleição, e por Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), que voltou ao cargo após 13
anos, para assumir seu terceiro mandato.
Porém, segundo o
cientista político Bruno Lima Rocha, professor de Relações Internacionais da
Faculdade São Francisco de Assis, existem algumas diferenças nessa comparação.
“Se formos posicionar as
figuras ideologicamente de forma correta, o Sergio Massa se parece mais a um
Geraldo Alckmin que a um Lula, e o Javier Milei é mais um Paulo Guedes que um
Jair Bolsonaro”.
O acadêmico, que vem
acompanhando presencialmente a campanha eleitoral argentina desde a disputa das
primárias – realizadas em 13 de agosto –, também afirma que “a presença
brasileira na campanha é visível, tanto pelo lado do Milei, com o próprio
Eduardo Bolsonaro em Buenos Aires no dia da eleição, quanto pelo lado do Massa,
que trouxe vários assessores brasileiros”.
Leia a entrevista
completa, que analisa as razões pelas quais os resultados foram tão diferentes
entre as primárias de agosto e ou primeiro turno do último domingo (22/10), a
influência do Brasil e do Brics na campanha e tenta antecipar as estratégias
que as duas candidaturas podem utilizar a partir de agora, com vistas à votação
decisiva, marcada para do dia 19 de novembro.
LEIA A ENTREVISTA:
·
Quais elementos explicam,
não só o resultado deste primeiro turno, mas também a diferença significativa
entre este cenário e o das primárias, que ocorreram em apenas dois meses de
distância entre um e outro?
Bruno Lima Rocha: Aconteceu muita coisa de 13 de agosto – data das primárias – para
cá. Uma delas é o impacto negativo da desvalorização do peso argentino em 22%,
enquanto o FMI queria uma desvalorização de 100%.
A partir de então, o
Massa apostou em um conjunto de medidas econômicas que tiveram um bom
resultado: retirou a faixa mais alta do setor assalariado do imposto de renda,
decretou a devolução do IVA, que é um imposto sobre consumo, entre outras
políticas que reverteram rapidamente em melhorias na condição e vida da
população, contendo os efeitos da inflação.
Outra medida muito
relevante adotada por ele foi a de colocar em prática as punições por crimes
financeiros, algo que teve pouca repercussão fora da Argentina mas que foi
muito efetivo internamente. Em um cálculo aproximado a gente tem mais ou menos
uns 40 agentes econômicos presos nas últimas semanas por evasão de divisas, ou
por falsificação de pedido de importação. Há casos de pessoas que compram dólar
subsidiado na cotação oficial e revendem no mercado paralelo ilegal e chegam a
ganhar até 700 pesos por dólar nessas transações.
O que também mudou nestes
dois meses foi o fato de que o Milei escancarou em seu discurso ideias que o
prejudicaram muito: disse que seria necessário provocar uma hiperinflação no
país para colocar em prática seu projeto de dolarização da economia.
Atualmente, um dólar está custando cerca de 900 pesos no câmbio paralelo, mas
para o Milei fazer o que ele quer esse valor precisaria ir a 10 mil.
Esse contraste entre um
candidato que toma medidas econômicas efetivas e outro que propõe uma corrida
inflacionária irresponsável para colocar em prática seu fetiche da dolarização,
ainda mais em um país como a Argentina que já tem a experiência de uma
hiperinflação, acabou sendo muito favorável ao Massa.
·
Milei teve o mesmo
percentual em agosto e em outubro: 29,9%; e praticamente o mesmo número de
votos totais, passando de 7,3 milhões a 7,8 milhões. Ou seja, ele ganhou apenas
meio milhão de eleitores em dois meses, enquanto Massa cresceu mais de três
milhões. A candidatura da extrema direita chegou a um teto ou esse tropeço foi
fruto de erros cometidos durante a campanha do primeiro turno?
A figura do Milei, por si
mesmo, chegou a um teto, isso é fato. Se ele quiser conquistar mais votos terá
que se aproximar do macrismo e tentar voltar a ser o queridinho dos meios de
comunicação, como era antes de fazer política, quando aparecia em diferentes
programas como um comentarista supostamente especializado em economia, até
chegar a ser esse deputado exótico que é hoje.
Mas ele também conquistou
espaço. Nas eleições de meio de mandato, em 2021, seu partido elegeu apenas
três deputados, ele e mais dois. Na eleição deste domingo saltaram para 39
parlamentares, o que é uma bancada considerável. Está longe de ter maioria, ou
de garantir governabilidade, mas é claro que é um ótimo resultado.
No discurso após o
primeiro turno ele tentou se aproximar do Jorge Macri, que é primo do
ex-presidente Mauricio Macri e candidato a prefeito de Buenos Aires, que
disputará o segundo turno contra o Leandro Santoro, candidato do peronismo.
Milei acena para Macri,
tanto Jorge quanto Mauricio, e acena para o voto conservador das províncias,
mas seu discurso é muito extremado e às vezes dá a impressão que ele mesmo não
sabe o limite disso. Ele tem um voto transversal, socialmente falando, mas é um
voto muito juvenil, um voto marcado por idade, de uma geração que não viveu o
final dos Anos 80, nem o corralito, no ano 2000. Superar essa barreira
geracional será crucial para a sua candidatura.
·
O apoio de Lula a Massa no
primeiro turno foi um fator positivo para o peronista? Poderia se repetir no
segundo turno (acha que Massa deverá insistir nisso)?
A presença brasileira na
campanha é visível, tanto pelo lado do Milei, com o próprio Eduardo Bolsonaro
em Buenos Aires no dia da eleição, quanto pelo lado do Massa.
A campanha peronista
trouxe vários assessores brasileiros que foram importantes para buscar uma
reação depois do resultado das primárias, especialmente na questão de como
lidar com as mensagens disruptivas promovidas pela extrema direita. O
aprendizado da campanha de 2022 foi muito positivo, e o fato de o Brasil ter
uma extrema direita com forte presença cibernética pelo menos desde 2015.
Não se sabe quem são os
assessores mais próximos do Milei na campanha, mas é evidente que seu discurso
agressivo contra parceiros econômicos importantes para a Argentina, como o
Brasil e a China, mobilizou as possíveis alianças externas.
Por exemplo, o presidente
Alberto Fernández viajou para a China na semana anterior ao primeiro turno e
tinha planejado pedir um swap de US$ 5 bilhões, e voltou com uma ajuda ainda
maior, de US$ 6,5 bilhões. E o Brasil também tem feito vários acordos buscando
o quanto o comércio entre os países pode crescer em um possível governo Massa
mantendo boas relações com o governo Lula, o que pode não acontecer se o Milei
for presidente.
·
Essa influência brasileira
na campanha permite traçar um paralelo entre a disputa Massa-Milei e a disputa
Lula-Bolsonaro em 2022? Como essas duas figuras brasileiras afetam o imaginário
do eleitorado argentino?
Essa comparação entre as
duas disputas faz sentido, mas se formos posicionar as figuras ideologicamente
de forma correta, o Sergio Massa se parece mais a um Geraldo Alckmin que a um
Lula, e o Javier Milei é mais um Paulo Guedes que um Jair Bolsonaro.
Porém, é importante
ressaltar que, embora esse paralelo exista, partiu mais do Milei, que usou sua
aproximação com o Bolsonaro como elemento da campanha, e depois o Trump, quando
deu aquela entrevista para o Tucker Carlson (jornalista norte-americano de
extrema direita, ex Fox News), que foi transmitida pelo X (ex
Twitter) e que teve uma audiência enorme.
·
A entrada da Argentina no
Brics+ foi um tema de campanha no primeiro turno? Poderia ser abordado também
no segundo?
A dimensão do Brics é
fundamental em termos de projeto de país, mas também é preciso entender que uma
parte da elite argentina mantém um pensamento muito colonizado. Assim como no
Brasil o industrialismo foi deixado de lado, aqui na Argentina ocorre, em
parte, o mesmo fenômeno, com a defesa da indústria nacional sendo mantida como
bandeira exclusiva do peronismo.
Os projetos econômicos,
tanto do Milei quanto da Bullrich, se baseiam na visão de uma Argentina
resignada a ser um país exportador de grãos e minerais, e dominado pelo mercado
financeiro, por isso o discurso muito anti sindical, anti direitos
trabalhistas.
Ainda assim, a relação
entre a Argentina e o Brics é central porque nas economias das províncias do
interior do país você tem uma presença do Brasil, da China e da Índia muito
maior que a dos Estados Unidos, que tem uma projeção cultural, uma projeção
financeira, mas que não se reflete na economia real.
·
O que se pode esperar da
campanha no segundo turno? Quais estratégias devem ser adotadas por cada um dos
candidatos?
A campanha do medo é a
campanha contra o Milei, devido ao teor extremo de suas propostas, mas a
estratégia do Massa tem buscado explorar isso de uma forma sutil, apresentando
a chapa entre ele e Agustín Rossi (seu candidato a vice) como pessoas
responsáveis, previsíveis, bons pais de família, o que inevitavelmente leva à
comparação com o Milei, que não tem família. Na Argentina, a família heteronormativa
clássica é minoria na sociedade, mas ela é idealizada até pelas classes mais
pobres do país. A maioria das pessoas projeta essa figura da família com
marido, mulher e filhos, mesmo que isso não seja a realidade de muita gente.
Outra coisa que pode
acontecer é a entrada em campo dos operadores judiciais colocando todo o
aparelho de lawfare contra atores políticos para buscar efeitos eleitorais. O
Macri fazia muito isso, e esses setores poderiam atuar em favor do Milei neste
segundo turno.
O governo do Alberto
Fernández fez muito pouco para desmontar essa estrutura político-judicial, e
acabou sendo visto como “frouxo” por alguns aliados. Isso mantém uma situação
muito complicada para o campo popular argentino.
Também há um elemento da
campanha relacionado à projeção internacional do país diante dessa disputa. O
Milei defende um discurso similar ao do bolsonarismo, tentando associar o Massa
com o Hamas, Cuba, Venezuela, comunismo, terrorismo e o que mais puder incluir
na consigna de que “eles representam tudo de ruim que há no planeta”. Sua
campanha é muito despolitizada, mas toca em signos fortes na internet.
·
Como Milei está lidando com
a necessidade de moderação do discurso e de buscar o voto macrista?
Nestas primeiras 48
horas, o que se vê é um Milei que parece um pouco perdido. Ele deixou claro que
vai buscar os votos do macrismo, buscando se aproximar não necessariamente da
Patricia Bullrich, que era a candidata da coalizão macrista Juntos Pela
Mudança, mas sim do
próprio Mauricio Macri.
Porém, sua estratégia na
campanha do primeiro turno queimou as pontes com outro setor importante da coalizão
macrista que é a União Cívica Radical (UCR, legenda de centro ligada ao
falecido ex-presidente Raúl Alfonsín).
Nesta segunda (23/10),
ele apareceu dando diversas entrevistas a meios conservadores dizendo que, em
um governo seu, a esquerda poderia ocupar o que ele chamou de Ministério do
Capital Humano, que ele não faria distinção ideológica na composição do
governo, que chamaria “os melhores”, deu a entender que nomearia a Bullrich
como ministra do Interior e Segurança Interna, o que é estranho já que ele a
atacou duramente no primeiro turno.
Essa tentativa de
moderação do discurso, ao menos até agora, está custando muito ao Milei. Ele
soa pouco convincente e com ideias que dão a impressão de um candidato mal
orientado, mal assessorado. Mas acho que é muito cedo para dizer que ele não
poderá alcançar essa moderação, ou que não será capaz de atrair outros setores.
O maior problema para ele
é que essa coalizão macrista terminou rachada após a eleição de domingo. Eles
não saem dessa eleição “juntos”, como diz o nome da coalizão, muito pelo
contrário, e o Milei precisa de todos os votos da Bullrich para conseguir virar
esse jogo, o que neste momento parece difícil de conseguir.
Fonte: Primera Linea/Opera
Mundi
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