quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Empresas colombianas ignoram Funai e leis brasileiras em projetos de carbono na Amazônia

A promessa de uma universidade exclusiva para os povos indígenas da região do Alto Solimões, no Amazonas, e que convenceu lideranças de pelo menos seis territórios a assinarem pré-contratos com empresas da Colômbia para geração de créditos de carbono, tem desafiado determinações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e orientações do Ministério Público Federal (MPF).

O projeto do colombiano José Antonio Pérez Manrique, que atravessou a fronteira até as Terras Indígenas brasileiras, prevê o financiamento de uma unidade de ensino superior com a venda de créditos de carbono. O projeto da universidade levou as comunidades a assinarem um pré-contrato com a empresa colombiana Concepto Carbono para desenvolver essa iniciativa, que posteriormente passou a ser planejada por outras três empresas colombianas aliadas: Carbo Sostenible, Terra Commodities e Yauto. No entanto, não existe até o momento qualquer autorização das autoridades brasileiras para a criação da universidade ou para o desenvolvimento de projetos de créditos de carbono na região. Este processo, no qual estiveram envolvidas as quatro empresas e o próprio Pérez Manrique, levou os dirigentes a assinarem documentos com cláusulas possivelmente abusivas e a avançarem com projetos que não cumprem a obrigação de consulta prévia prevista em convenções internacionais sobre direitos indígenas.

Em agosto do ano passado, a Funai negou o ingresso dos representantes das empresas colombianas Carbo Sostenible, Terra Commodities e Yauto nos territórios do Alto Solimões e orientou que não fossem assinados acordos por falta de regulamentação do tema do mercado de carbono no Brasil. Três meses depois, em 6 de novembro de 2022, foram assinadas pelo menos seis “cartas de exclusividade” com a também colombiana Concepto Carbono, dando à empresa autorização para implantar um projeto de sequestro de carbono nas florestas das Terras Indígenas (TIs) Riozinho, Rio Biá, Estrela da Paz, Macarrão, Espírito Santo e Acapuri de Cima. O acordo, que é uma espécie de pré-contrato onde as partes já têm obrigações, incluiu terras que sequer foram homologadas pelo Governo Federal.

A Funai diz que não tem conhecimento das tais “cartas de exclusividade” assinadas pelas lideranças indígenas, mas afirma que “todos os contratos firmados correm risco de serem anulados, tendo em vista questionamentos de natureza técnica e legal acerca da viabilidade, dos procedimentos necessários e do cumprimento das salvaguardas socioambientais, dentre as quais destaca-se o direito à consulta livre, prévia e informada [CLPI]”.

A CLPI é uma das obrigações impostas pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e trata do direito das comunidades tradicionais de serem consultadas em razão de ações que impactem seus territórios e modos de vida. Em julho deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu uma Nota Técnica para orientar as procuradorias federais sobre projetos de carbono em Terras Indígenas. O documento destaca a necessidade de acompanhamento técnico do Estado e alerta que “a consulta prévia deve ocorrer na fase do planejamento e antes de qualquer ato decisório”.

Os projetos firmados com a empresa Concepto Carbono abrangem 1,6 milhão de hectares em Terras Indígenas nos municípios de Jutaí, Fonte Boa, Carauari e Juruá, todas no estado do Amazonas, próximas à tríplice fronteira com Colômbia e Peru, em territórios ocupados pelos povos Kokama, Katukina, Miranha, Kambeba, Tikuna, Kanamari e Kulina. Os seis acordos assinados pelos caciques das aldeias deram origem a três projetos de crédito de carbono, chamados de Jutaí-1, Jutaí-2 e Rio Biá, que estão listados como em fase de desenvolvimento no portfólio da CommunityRedd+, uma aliança de empresas colombianas que conduzem projetos de compensação ambiental em comunidades tradicionais na Colômbia, e mais recentemente no Peru e no Brasil.

Além desses seis pré-contratos no Solimões, o grupo também tem projeto de carbono na TI Enawenê Nawê, em Mato Grosso, onde há inclusive a presença de povos isolados. Nesse projeto, existe a participação de uma empresa brasileira, a JGP Consultoria e Participacoes Ltda. Segundo informa a CommunityRedd+ em seu site, este projeto também está em fase de desenvolvimento.

No ofício encaminhado à sua Coordenação Regional do Alto Solimões (CR-AS) em agosto de 2022, a Funai em Brasília justificou que “a transação de créditos de carbono em Terras Indígenas possui peculiaridades que suscitam dúvidas e apontam para a necessidade de uma definição específica, visto tratarem-se de terras de propriedade da União destinadas à posse e usufruto permanente de indígenas”.

Para a Procuradoria da Funai, qualquer projeto de carbono em Terras Indígenas necessita de autorização da União, o que não ocorreu nos acordos firmados no Alto Solimões ou em Mato Grosso.

Ao longo dos últimos dez meses, a InfoAmazonia investigou projetos de carbono que deram origem à série “Dinheiro que dá em árvore: financeirização da floresta pressiona terras indígenas”. A série explora contratos de projeto de carbono em territórios tradicionais da Amazônia brasileira com suspeitas de ilegalidades.

Em setembro deste ano, nossa reportagem visitou as comunidades do Alto Solimões e descobriu que o projeto de crédito de carbono dos colombianos chegou na região a reboque da promessa de implantação da denominada Universidade Indígena Diferenciada dos Povos Amazônicos (UIDPA), ideia que cativou as comunidades e se tornou o principal motor para as lideranças aceitarem o acordo com a Concepto Carbono.

Em nenhum dos projetos foram realizadas consultas prévias nos moldes da OIT-169, e as decisões têm ficado restritas aos caciques e lideranças com quem os empresários mantêm contato. Os projetos, até o momento, são praticamente desconhecidos da grande maioria das comunidades.

Nos acordos assinados, os líderes indígenas se comprometem com total sigilo sobre “a carta de intenções”, sob pena de descumprimento do acordo: “todas as negociações comerciais e acordos entre as partes serão mantidas em sigilo”, diz trecho do documento assinado pelos líderes indígenas com Juan Eduardo Hernández, da Concepto Carbono.

Os indígenas também estão proibidos de iniciar, avançar ou assinar quaisquer outros projetos de “redução de emissões” sem autorização da Concepto Carbono, uma vez que cada território só pode vender resultados de desmatamento evitado uma vez e, portanto, não pode haver outros projetos ali.

Além disso, o acordo prevê como foro para resolução de conflitos um tribunal arbitral em Bogotá, na capital da Colômbia, a ser nomeado pelas partes.

Segundo especialistas consultados pela reportagem, tal cláusula poderia ser considerada abusiva por apresentar “desigualdade econômica entre as partes e dificuldade de acesso ao judiciário”, como explica a advogada Brenda Brito, mestre e doutora em Ciência do Direito pela Universidade Stanford (EUA) e pesquisadora associada da organização Imazon. “Acho que facilmente esse contrato seria declarado nulo se fosse levado ao judiciário brasileiro”, aponta Brito.

Os documentos informam que os indígenas ficariam com até 70% do valor da venda dos créditos negociados. Apesar disso, não deixa claro quais custos eles teriam para manter a área de floresta do projeto intacta — sem desmatamento —, nem como usariam esse dinheiro.

Apesar de os pré-contratos estarem assinados apenas com a Concepto Carbono, outros documentos obtidos pela InfoAmazoniacomo o modelo de negócios e proposta de trabalho para o desenvolvimento do programa, mostram que o projeto apresentado aos indígenas inclui outras três empresas que atuam no mercado de carbono colombiano, Carbo Sostenible, Terra Commodities e Yauto, e que, juntas com a Visso Consultores e a Plan Ambiente, formam a aliança CommunityRedd+. As empresas que formam o grupo dizem ter clientes de peso global em outros projetos, como Coca-Cola e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O folheto entregue aos líderes indígenas inclui os logotipos das quatro empresas.

Em março deste ano, o Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP) revelou que essas mesmas empresas envolvidas nos projetos de carbono no Solimões (Carbo Sostenible, Terra Commodities e Yauto), ligadas à CommunityRedd+, excluíram indígenas locais na participação dos resultados em um projeto de carbono desenvolvido na reserva indígena de Monochoa, na Amazônia colombiana. De acordo com a reportagem, duas das seis comunidades do território foram excluídas do projeto de carbono, embora as terras que habitam estivessem dentro da área negociada pelas empresas, de modo que as duas aldeias indígenas não se beneficiaram dos créditos de carbono que estavam vendendo no mercado voluntário e não puderam participar de outros projetos de compensação ambiental.

Por estarem em fase de desenvolvimento, os projetos nas Terras Indígenas do Solimões e em Mato Grosso ainda não geram créditos de carbono certificados para venda no mercado. Após ser estruturado com as comunidades locais, um auditor independente deve avaliar a qualidade do projeto e, em seguida, o padrão de certificação o aprova. Esse selo de qualidade é o que permite vender os créditos no mercado, que geralmente são comprados por empresas que buscam compensar o uso intensivo de combustíveis fósseis. Cada crédito equivale a uma tonelada de dióxido de carbono — um dos gases de efeito estufa que causam mudanças climáticas —, que deixaria de ser liberada na atmosfera como resultado do esforço de conservação.

As Terras Indígenas brasileiras estão entre as categorias fundiárias que mais preservam os ecossistemas da Amazônia. Nos últimos 30 anos, esses territórios tiveram 1% de suas florestas desmatadas, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%, segundo dados da rede MapBiomas. Isso explica a atratividade para aqueles que buscam promover projetos privados de carbono nestes territórios.

No site da CommunityRedd+, o projeto na TI Enawenê Nawê, em Mato Grosso, indica a organização Verra como responsável pela certificação dos créditos de carbono a serem gerados. Mas na Verra, que é a maior certificadora de créditos de carbono do mundo, não há nenhum registro do projeto desenvolvido na TI Enawenê Nawê. O site do CommunityRedd+ não informa quem certificará os três projetos do Solimões.

A Concepto Carbono foi criada em 2021 e é liderada pelo biólogo colombiano Juan Eduardo Hernández Orozco, que também aparece como coordenador técnico da aliança CommunityRedd+ , da qual fazem parte as empresas listadas no documento de apresentação dos projetos no Solimões e Mato Grosso. Entre as figuras mais visíveis dessa aliança, está o advogado Pedro Santiago Posada, líder e acionista da Yauto, que ocupou os dois cargos mais altos do Estado colombiano na proteção dos direitos indígenas: foi diretor de assuntos indígenas no Ministério do Interior por oito anos, entre 2008 e 2016, durante os governos de Álvaro Uribe e Juan Manuel Santos, e defensor para minorias indígenas e étnicas na Defensoria Pública da Colômbia (2016-18).

A InfoAmazonia procurou as quatro empresas colombianas envolvidas nos projetos de crédito de carbono no Alto Solimões.

Por mensagem, Juan Eduardo Hernández, gerente da Concepto Carbono e coordenador da CommunityRedd+, disse que não responderia aos questionamentos porque “o foco das perguntas não conhece o contexto de um projeto de Redd+”. Ele também contestou as informações da Funai apuradas pela reportagem e disse que “o escritório da Funai que consultaram não tem jurisdição na área de trabalho”.

Já Federico Ortiz, acionista e diretor da Terra Commodities e também diretor comercial da aliança CommunityRedd+, afirmou, também por mensagem, que “o projeto é dos indígenas e eles [os indígenas] que pedem e recebem as autorizações diretamente da autoridade competente”. Ele também disse que os projetos ainda não estão em desenvolvimento “Portanto, todos que vão participar do desenvolvimento, como a universidade, devem aguardar até que seja definido um caminho para o projeto”, disse, sem responder outros questionamentos da reportagem.

Yauto e Carbo Sostenible não responderam às perguntas da reportagem, nem atenderam os nossos pedidos de entrevistas.

·         Universidade não é citada em documentos

Apesar de ser o principal argumento apresentado nas comunidades para implantação do projeto de carbono, nos contratos assinados pelos líderes indígenas do Solimões com a Concepto Carbono não há qualquer menção à Universidade Indígena Diferenciada dos Povos Amazônicos (UIDPA).

A InfoAmazonia apurou com fontes locais que a Concepto chegou a financiar o projeto da universidade nos primeiros meses do ano passado, e os indígenas tiveram aulas na suposta faculdade, inclusive com o pagamento de professores indígenas da própria comunidade.

Mas, após assinatura do contrato com a Concepto, os indígenas afirmam que os repasses de dinheiro foram suspensos e as aulas interrompidas, com a promessa de retornarem após a implantação do projeto de carbono.

As comunidades guardaram a data: 5 de janeiro de 2024. Nesse dia, a promessa é de que serão retomadas as aulas na UIDPA.

E, apesar das incertezas, as lideranças depositam expectativas no projeto.

Na aldeia Boa Vista, na Terra Indígena Estrela da Paz, o simpático cacique Afonso Maricaua anunciou a chegada da nossa equipe por um megafone instalado na área central da comunidade. O cacique disse que assinou o pré-contrato para o projeto de carbono porque acredita que a universidade é uma “oportunidade para os jovens da comunidade” e “para ajudar a preservar a floresta”.

No dia a dia das roças, que eles cultivam, ou nos lagos, onde os homens fazem o manejo do pirarucu, os indígenas sonham com que tudo por ali pode mudar, principalmente por não se sentirem seguros e independentes em seus territórios, em uma região da Amazônia, na tríplice fronteira, onde o mercúrio do garimpo polui rios, madeireiros avançam nos territórios e o crime organizado se alastra.

Segundo cálculo dos próprios indígenas, mais de uma centena de balsas de garimpo atuam no Alto Jutaí desde a década de 1990, com uso de mercúrio e oferecendo ameaças às comunidades indígenas da região.

“Nós sempre temos esperanças que as coisas melhorem. O que esperamos é que tudo isso traga mais oportunidades para nossas aldeias”, contou a indígena Francieti Estevão Santiago, da TI Acapuri de Cima, que ainda não estava homologada em novembro de 2022, quando teve sua área cedida para o projeto de carbono.

Por outro lado, os relatos dos indígenas com quem conversamos demonstram que eles pouco sabem sobre o projeto de carbono que está em negociação, e muito menos sobre as orientações da Funai e dos demais órgãos.

Não há, nem na Funai nem no Ministério da Educação (MEC), até o momento, nenhum pedido de regularização da universidade indígena para os povos de Jutaí. E não há expectativas de que o projeto de fato possa ser implantado antes de janeiro de 2024 para o prometido início das aulas.

·         Funai não sabia da existência de pré-contratos

No mesmo mês de setembro em que estivemos nas Terras Indígenas em Jutaí, o coordenador da CommunityRedd+ e diretor da Concepto Carbono, Juan Eduardo Hernández, também esteve nos territórios do município, segundo os indígenas, para “definir as áreas dos projetos”, e mais uma vez sem acompanhamento ou autorização do órgão indigenista brasileiro.

Apesar de provocada ainda em agosto de 2022 pelos próprios empresários colombianos, a Funai não se manifestou mais sobre os projetos de carbono no Solimões, desde setembro do ano passado, quando pediu para que a Coordenação Regional orientasse as comunidades a não assinarem contratos antes de uma regulamentação do mercado de carbono em Terras Indígenas.

Em 23 de agosto de 2022, as empresas Yauto, Terra Commodities e Carbo Sostenible (Carbo-Terra-Yauto) enviaram ofício ao órgão  intitulado “Modelo de Negócios para o Desenvolvimento de Projetos REDD+ com Comunidades Indígenas do Brasil no Estado do Amazonas”.

O documento indica a possibilidade de pelo menos cinco projetos de carbono em Terras Indígenas na região do Solimões e solicita “apoio e participação da Funai”, mas não faz nenhuma menção aos nomes das Terras Indígenas.

“Queremos apresentar a nossa maneira de abordar os projetos Redd+ diretamente às autoridades das comunidades, com o apoio e participação da Funai, para permitir a aproximação entre os povos indígenas e as nossas empresas”, diz o ofício assinado por Juan Andrés López, da Carbo Sostenible, Alicia Micolta, da Yauto, e Federico Ortiz, da Terra Commodities.

Em março deste ano, desta vez em ofício assinado apenas pela Concepto Carbono, a empresa pediu autorização para levar um representante da Funai para Bogotá para “reconhecer a estrutura das empresas que estão apoiando a implementação do projeto Redd+ Jutaí, revisar os esquemas de trabalho”. O pedido foi encaminhado à presidência da Funai, mas não há registro de que a presidência tenha respondido à solicitação. No entanto, de fato, em 24 de março deste ano, uma representante da Funai viajou a Bogotá, a pedido dos indígenas. As despesas da viagem foram todas pagas pelas empresas.

Procurada pela reportagem, a Funai disse que havia uma “solicitação de ingresso em Terra Indígena” para apresentação de projeto de carbono, mas sem identificar quais as terras indígenas de interesse”.

O órgão indigenista reiterou que sua recomendação sempre foi “no sentido de que não sejam assinados contratos para comercialização de créditos de carbono em Terras Indígenas até que a questão seja regulamentada”. O órgão ainda disse que não tinha conhecimento da situação atual dos projetos nas Terras Indígenas do alto Solimões e não sabia da existência de pré-contratos assinados.

“A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não tem conhecimento acerca de contratos de carbono assinados nas TIs Riozinho, Rio Biá, Estrela da Paz, Macarrão, Espírito Santo e Acapuri de Cima. Há na Funai processo que trata de solicitação de ingresso em Terra Indígena por parte da ONG Carbo-Terra, para apresentar projetos de crédito de carbono, sem, contudo, identificar quais as Terras Indígenas de interesse”, informou o órgão. Apesar de nos informar que o pedido teria partido de uma ONG, as três empresas colombianas são companhias privadas, e não organizações não governamentais (ONG), como classificou a Funai.

·         Sonho da universidade

“A universidade indígena vai beneficiar várias comunidades. Hoje, nossos alunos terminam o ensino médio e não têm como continuar os estudos, por isso acreditamos que o projeto de carbono vai nos ajudar muito para realizar esse sonho”. A fala do professor Francisco Romão ecoava pela cabana onde nos reunimos com as lideranças indígenas na aldeia Bugaio, na TI Estrela da Paz, no início de setembro deste ano.

Um dos principais defensores do projeto da universidade, Romão sonha com a possibilidade de trabalhar com livros na língua kokama em sala de aula, e acredita que este é um momento de virada para os indígenas do Solimões.

A cabana ficou cheia de gente. Os indígenas serviram pajuaru, uma bebida alcoólica do povo Tikuna, fermentada de um tipo específico de mandioca, e contaram planos e sonhos que depositam com a vinda do projeto de carbono.

O cacique da aldeia, Vanildo Romão da Silva, seguiu com as preocupações sobre a educação, e disse que a comunidade já tem um planejamento para utilizar a verba do projeto de carbono.

“Nosso projeto prevê escolas de qualidade para nossa comunidade, posto de saúde, transporte, sustentabilidade, energia solar e proteção da floresta. Nós precisamos de um ensino superior para nossas crianças”, afirmou o cacique, que reclama da falta de apoio da Funai. “Nós levamos as reivindicações para Funai e quase nunca somos atendidos, ficamos aqui esquecidos”.

João Braz, do Conselho dos Povos Indígenas de Jutaí (Copiju), diz que acompanha com cautela, e com uma dose de esperança, o desenvolvimento do projeto de carbono. “Nós acreditamos porque o nosso povo precisa de uma qualidade de vida melhor. Nós queremos acreditar que vai dar certo”.

Quando perguntamos se ele sabia sobre as orientações da Funai, disse que sabia que os órgãos foram comunicados sobre o projeto, mas que a comunidade nunca recebeu orientações contrárias à realização do projeto.

·         Contrários a projetos têm medo de represálias

Nem todos concordam sobre como as coisas têm sido conduzidas na região. Durante nossa passagem pelas aldeias ouvimos críticas e até resistência ao projeto de carbono e de como a ideia da universidade indígena foi utilizada para atropelar os processos. Quem é contra prefere não aparecer com medo de represálias.

Em uma das comunidades, um indígena se aproximou da nossa equipe e questionou: “é certo eles deixarem os colombianos entrarem em nossas terras sem nos falar nada?”.

Outra fonte relatou preocupação sobre situação irregular da universidade: “Os caciques já estavam comentando que seus filhos seriam doutores, muitas mães e pais também acreditam no projeto, sonhando com uma vida melhor para seus filhos. Mas eles [a universidade] não tinham nada, começaram a dar aulas sem nenhum critério”, contou outra pessoa que não quis se identificar.

·         Colombiano excluído do projeto diz que existia “acordo”

Em 2021, o colombiano José Antonio Pérez Manrique surgiu na região de Jutaí com o projeto da universidade indígena. Ele se apresenta como voluntário, assessor dos indígenas e coordenador-geral de uma organização denominada Guarda Indígena Ambiental Internacional da Amazônia, que,  segundo ele, é quem faz a gestão de universidades indígenas no Brasil, Colômbia e Peru, e que congrega o povo Tikuna.

Em Benjamin Constant, também na tríplice fronteira, existe o movimento para criação da Universidade Indígena Diferenciada do Alto Amazonas, que Manrique cita como sendo um dos projetos da sua organização. Mas, segundo o cacique Eli Tikuna, que coordena o projeto, o colombiano não tem nenhuma relação atual com a universidade, mas confirma que ele passou pela região e que a “experiência não foi boa”.

“Ele já passou por aqui na nossa região, trabalhou com a gente, só que eu particularmente não recomendo. Ele tinha essa ideia do projeto de carbono para financiar a universidade, mas não continuamos com ele”, contou sem querer dar mais detalhes.

À InfoAmazonia, Manrique disse que o modelo de ensino com financiamento de créditos de carbono permitiria aos indígenas implantarem seus planos de vida. A proposta inclui construções do que ele chama de “ecoaldeias” e uma série de promessas de melhorias para a vida das comunidades. E obrigatoriamente inclui um projeto de carbono.

“Nós fazemos assessoria para as comunidades criarem seus planos de vida baseado em nossa filosofia de proteção, conservação, restauração e defesa da floresta. Dentro do plano de vida nós criamos a universidade, e todo o projeto é financiado com créditos de carbono”, afirmou. Em 2022, o próprio Manrique ministrou aulas na universidade indígena.

Pérez Manrique diz que viajou com os indígenas de Jutaí para Bogotá, capital da Colômbia, onde apresentou os empresários ligados à CommunityRedd+ aos indígenas. Quando questionado sobre autorização da Funai ou do governo brasileiro para desenvolver os projetos, ele desconversa e afirma que os caciques “são as autoridades” para aprovar esses projetos: “essa parte não tem problema não, porque os indígenas podem fazer”.

Segundo Manrique, o projeto de carbono no Solimões está avançado e deve gerar crédito de carbono em breve. No entanto, ele diz que foi excluído do processo pela Concepto Carbono e acusa os empresários de traição.

“Não permitiram que eu supervisionasse e fiscalizasse o projeto, esse era o pacto que fizemos. Se eles não querem fazer as coisas certas, eu vou conversar com os caciques e vamos trocar de empresa”, afirma, dizendo que vai denunciar os empresários.

“Eles suspenderam o dinheiro para o projeto da universidade. Os alunos precisam estudar, esse ano perdemos as aulas, mas no próximo ano as aulas serão retomadas. Se for preciso, vamos denunciar eles. Eles estão subornando os indígenas”, disse, mas sem apresentar provas à nossa reportagem.

Procurado para comentar o assunto, o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse que está reunindo informações de todos os projetos de carbono em Terras Indígenas para uma análise mais aprofundada da sua Procuradoria Jurídica. O órgão também afirma que a falta de uma regulamentação sobre o tema tem dificultado a ação dos órgãos indigenistas, que muitas vezes não são informados corretamente sobre a realização destes projetos.

 

Fonte: Mongabay

 

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