Empresas colombianas ignoram Funai e leis
brasileiras em projetos de carbono na Amazônia
A promessa de uma
universidade exclusiva para os povos indígenas da região do Alto Solimões, no
Amazonas, e que convenceu lideranças de pelo menos seis territórios a assinarem
pré-contratos com empresas da Colômbia para geração de créditos de carbono, tem
desafiado determinações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e
orientações do Ministério Público Federal (MPF).
O projeto do colombiano
José Antonio Pérez Manrique, que atravessou a fronteira até as Terras Indígenas
brasileiras, prevê o financiamento de uma unidade de ensino superior com a
venda de créditos de carbono. O projeto da universidade levou as comunidades a
assinarem um pré-contrato com a empresa colombiana Concepto Carbono para
desenvolver essa iniciativa, que posteriormente passou a ser planejada por
outras três empresas colombianas aliadas: Carbo Sostenible, Terra Commodities e
Yauto. No entanto, não existe até o momento qualquer autorização das
autoridades brasileiras para a criação da universidade ou para o
desenvolvimento de projetos de créditos de carbono na região. Este processo, no
qual estiveram envolvidas as quatro empresas e o próprio Pérez Manrique, levou
os dirigentes a assinarem documentos com cláusulas possivelmente abusivas e a
avançarem com projetos que não cumprem a obrigação de consulta prévia prevista
em convenções internacionais sobre direitos indígenas.
Em agosto do ano passado,
a Funai negou o ingresso dos representantes das empresas colombianas Carbo Sostenible,
Terra Commodities e Yauto nos territórios do Alto Solimões e orientou que não
fossem assinados acordos por falta de regulamentação do tema do mercado de
carbono no Brasil. Três meses depois, em 6 de novembro de 2022, foram assinadas
pelo menos seis “cartas de exclusividade” com a também colombiana Concepto
Carbono, dando à empresa autorização para implantar um projeto de sequestro de
carbono nas florestas das Terras Indígenas (TIs) Riozinho, Rio Biá, Estrela da
Paz, Macarrão, Espírito Santo e Acapuri de Cima. O acordo, que é uma espécie de
pré-contrato onde as partes já têm obrigações, incluiu terras que sequer foram
homologadas pelo Governo Federal.
A Funai diz que não tem
conhecimento das tais “cartas de exclusividade” assinadas pelas lideranças
indígenas, mas afirma que “todos os contratos firmados correm risco de serem
anulados, tendo em vista questionamentos de natureza técnica e legal acerca da
viabilidade, dos procedimentos necessários e do cumprimento das salvaguardas
socioambientais, dentre as quais destaca-se o direito à consulta livre, prévia
e informada [CLPI]”.
A CLPI é uma das
obrigações impostas pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) e trata do direito
das comunidades tradicionais de serem consultadas em razão de ações que
impactem seus territórios e modos de vida. Em julho deste ano, o Ministério
Público Federal (MPF) emitiu uma Nota Técnica para orientar as procuradorias federais sobre projetos de carbono
em Terras Indígenas. O documento destaca a necessidade de acompanhamento
técnico do Estado e alerta que “a consulta prévia deve ocorrer na fase do
planejamento e antes de qualquer ato decisório”.
Os projetos firmados com
a empresa Concepto Carbono abrangem 1,6 milhão de hectares em Terras Indígenas
nos municípios de Jutaí, Fonte Boa, Carauari e Juruá, todas no estado do
Amazonas, próximas à tríplice fronteira com Colômbia e Peru, em territórios
ocupados pelos povos Kokama, Katukina, Miranha, Kambeba, Tikuna, Kanamari e
Kulina. Os seis acordos assinados pelos caciques das aldeias deram origem a
três projetos de crédito de carbono, chamados de Jutaí-1, Jutaí-2 e Rio Biá,
que estão listados como em fase de desenvolvimento no portfólio
da CommunityRedd+, uma aliança de empresas colombianas que conduzem projetos de
compensação ambiental em comunidades tradicionais na Colômbia, e mais
recentemente no Peru e no Brasil.
Além desses seis
pré-contratos no Solimões, o grupo também tem projeto de carbono na TI Enawenê Nawê, em Mato Grosso, onde há inclusive a presença
de povos isolados. Nesse projeto, existe a participação de uma empresa
brasileira, a JGP Consultoria e Participacoes Ltda. Segundo informa a
CommunityRedd+ em seu site, este projeto também está em fase de desenvolvimento.
No ofício encaminhado à sua Coordenação Regional do Alto
Solimões (CR-AS) em
agosto de 2022, a Funai em Brasília justificou que “a transação de créditos de
carbono em Terras Indígenas possui peculiaridades que suscitam dúvidas e
apontam para a necessidade de uma definição específica, visto tratarem-se de
terras de propriedade da União destinadas à posse e usufruto permanente de
indígenas”.
Para a Procuradoria da
Funai, qualquer projeto de carbono em Terras Indígenas necessita de autorização
da União, o que não ocorreu nos acordos firmados no Alto Solimões ou em Mato
Grosso.
Ao longo dos últimos dez
meses, a InfoAmazonia investigou projetos de carbono que deram origem à série
“Dinheiro que dá em árvore: financeirização da floresta pressiona terras
indígenas”. A série explora contratos de projeto de carbono em territórios
tradicionais da Amazônia brasileira com suspeitas de ilegalidades.
Em setembro deste ano,
nossa reportagem visitou as comunidades do Alto Solimões e descobriu que o
projeto de crédito de carbono dos colombianos chegou na região a reboque da
promessa de implantação da denominada Universidade Indígena Diferenciada dos
Povos Amazônicos (UIDPA), ideia que cativou as comunidades e se tornou o
principal motor para as lideranças aceitarem o acordo com a Concepto Carbono.
Em nenhum dos projetos
foram realizadas consultas prévias nos moldes da OIT-169, e as decisões têm
ficado restritas aos caciques e lideranças com quem os empresários mantêm
contato. Os projetos, até o momento, são praticamente desconhecidos da grande
maioria das comunidades.
Nos acordos assinados, os
líderes indígenas se comprometem com total sigilo sobre “a carta de intenções”,
sob pena de descumprimento do acordo: “todas as negociações comerciais e acordos
entre as partes serão mantidas em sigilo”, diz trecho do documento assinado
pelos líderes indígenas com Juan Eduardo Hernández, da Concepto Carbono.
Os indígenas também estão
proibidos de iniciar, avançar ou assinar quaisquer outros projetos de “redução
de emissões” sem autorização da Concepto Carbono, uma vez que cada território
só pode vender resultados de desmatamento evitado uma vez e, portanto, não pode
haver outros projetos ali.
Além disso, o acordo
prevê como foro para resolução de conflitos um tribunal arbitral em Bogotá, na
capital da Colômbia, a ser nomeado pelas partes.
Segundo especialistas
consultados pela reportagem, tal cláusula poderia ser considerada abusiva por
apresentar “desigualdade econômica entre as partes e dificuldade de acesso ao
judiciário”, como explica a advogada Brenda Brito, mestre e doutora em Ciência
do Direito pela Universidade Stanford (EUA) e pesquisadora associada da
organização Imazon. “Acho que facilmente esse contrato seria declarado nulo se
fosse levado ao judiciário brasileiro”, aponta Brito.
Os documentos informam
que os indígenas ficariam com até 70% do valor da venda dos créditos
negociados. Apesar disso, não deixa claro quais custos eles teriam para manter
a área de floresta do projeto intacta — sem desmatamento —, nem como usariam
esse dinheiro.
Apesar de os
pré-contratos estarem assinados apenas com a Concepto Carbono, outros
documentos obtidos pela InfoAmazonia, como o modelo de negócios e proposta de trabalho para o
desenvolvimento do programa, mostram que o projeto apresentado aos indígenas inclui outras três empresas que atuam no
mercado de carbono colombiano, Carbo Sostenible, Terra Commodities e Yauto, e
que, juntas com a Visso Consultores e a Plan Ambiente, formam a aliança
CommunityRedd+. As empresas que formam o grupo dizem ter clientes
de peso global em outros projetos,
como Coca-Cola e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O folheto
entregue aos líderes indígenas inclui os logotipos das quatro empresas.
Em março deste ano, o
Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP) revelou que essas
mesmas empresas envolvidas nos projetos de carbono no Solimões (Carbo
Sostenible, Terra Commodities e Yauto), ligadas à CommunityRedd+, excluíram indígenas locais na participação dos resultados
em um projeto de carbono desenvolvido na reserva indígena de Monochoa, na Amazônia colombiana. De acordo com a
reportagem, duas das seis comunidades do território foram excluídas do projeto
de carbono, embora as terras que habitam estivessem dentro da área negociada pelas
empresas, de modo que as duas aldeias indígenas não se beneficiaram dos
créditos de carbono que estavam vendendo no mercado voluntário e não puderam
participar de outros projetos de compensação ambiental.
Por estarem em fase de
desenvolvimento, os projetos nas Terras Indígenas do Solimões e em Mato Grosso
ainda não geram créditos de carbono certificados para venda no mercado. Após
ser estruturado com as comunidades locais, um auditor independente deve avaliar
a qualidade do projeto e, em seguida, o padrão de certificação o aprova. Esse
selo de qualidade é o que permite vender os créditos no mercado, que geralmente
são comprados por empresas que buscam compensar o uso intensivo de combustíveis
fósseis. Cada crédito equivale a uma tonelada de dióxido de carbono — um dos
gases de efeito estufa que causam mudanças climáticas —, que deixaria de ser
liberada na atmosfera como resultado do esforço de conservação.
As Terras Indígenas
brasileiras estão entre as categorias fundiárias que mais preservam os ecossistemas
da Amazônia. Nos últimos 30 anos, esses territórios tiveram 1% de suas
florestas desmatadas, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%, segundo dados da rede MapBiomas. Isso explica a atratividade para aqueles que
buscam promover projetos privados de carbono nestes territórios.
No site da
CommunityRedd+, o projeto na TI Enawenê Nawê, em Mato Grosso, indica a
organização Verra como responsável pela certificação dos créditos de carbono a
serem gerados. Mas na Verra, que é a maior certificadora de créditos de carbono
do mundo, não há nenhum registro do projeto desenvolvido na TI Enawenê Nawê. O
site do CommunityRedd+ não informa quem certificará os três projetos do
Solimões.
A Concepto Carbono foi
criada em 2021 e é liderada pelo biólogo colombiano Juan Eduardo Hernández
Orozco, que também aparece como coordenador técnico da aliança CommunityRedd+ , da qual fazem parte as empresas
listadas no documento de apresentação dos projetos no Solimões e Mato Grosso.
Entre as figuras mais visíveis dessa aliança, está o advogado Pedro Santiago
Posada, líder e acionista da Yauto, que ocupou os dois cargos mais altos do
Estado colombiano na proteção dos direitos indígenas: foi diretor de assuntos
indígenas no Ministério do Interior por oito anos, entre 2008 e 2016, durante
os governos de Álvaro Uribe e Juan Manuel Santos, e defensor para minorias indígenas
e étnicas na Defensoria Pública da Colômbia (2016-18).
A InfoAmazonia procurou
as quatro empresas colombianas envolvidas nos projetos de crédito de carbono no
Alto Solimões.
Por mensagem, Juan
Eduardo Hernández, gerente da Concepto Carbono e coordenador da CommunityRedd+,
disse que não responderia aos questionamentos porque “o foco das perguntas não
conhece o contexto de um projeto de Redd+”. Ele também contestou as informações
da Funai apuradas pela reportagem e disse que “o escritório da Funai que consultaram
não tem jurisdição na área de trabalho”.
Já Federico Ortiz,
acionista e diretor da Terra Commodities e também diretor
comercial da aliança
CommunityRedd+, afirmou, também por mensagem, que “o projeto é dos indígenas e
eles [os indígenas] que pedem e recebem as autorizações diretamente da
autoridade competente”. Ele também disse que os projetos ainda não estão em
desenvolvimento “Portanto, todos que vão participar do desenvolvimento, como a
universidade, devem aguardar até que seja definido um caminho para o projeto”,
disse, sem responder outros questionamentos da reportagem.
Yauto e Carbo Sostenible
não responderam às perguntas da reportagem, nem atenderam os nossos pedidos de
entrevistas.
·
Universidade não é citada em
documentos
Apesar de ser o principal
argumento apresentado nas comunidades para implantação do projeto de carbono,
nos contratos assinados pelos líderes indígenas do Solimões com a Concepto
Carbono não há qualquer menção à Universidade Indígena Diferenciada dos Povos
Amazônicos (UIDPA).
A InfoAmazonia apurou com
fontes locais que a Concepto chegou a financiar o projeto da universidade nos
primeiros meses do ano passado, e os indígenas tiveram aulas na suposta
faculdade, inclusive com o pagamento de professores indígenas da própria
comunidade.
Mas, após assinatura do
contrato com a Concepto, os indígenas afirmam que os repasses de dinheiro foram
suspensos e as aulas interrompidas, com a promessa de retornarem após a
implantação do projeto de carbono.
As comunidades guardaram
a data: 5 de janeiro de 2024. Nesse dia, a promessa é de que serão retomadas as
aulas na UIDPA.
E, apesar das incertezas,
as lideranças depositam expectativas no projeto.
Na aldeia Boa Vista, na
Terra Indígena Estrela da Paz, o simpático cacique Afonso Maricaua anunciou a
chegada da nossa equipe por um megafone instalado na área central da
comunidade. O cacique disse que assinou o pré-contrato para o projeto de
carbono porque acredita que a universidade é uma “oportunidade para os jovens
da comunidade” e “para ajudar a preservar a floresta”.
No dia a dia das roças,
que eles cultivam, ou nos lagos, onde os homens fazem o manejo do pirarucu, os
indígenas sonham com que tudo por ali pode mudar, principalmente por não se sentirem
seguros e independentes em seus territórios, em uma região da Amazônia, na
tríplice fronteira, onde o mercúrio do garimpo polui rios, madeireiros avançam
nos territórios e o crime organizado se
alastra.
Segundo cálculo dos
próprios indígenas, mais de uma centena de balsas de garimpo atuam no Alto Jutaí desde a década de 1990, com uso de
mercúrio e oferecendo ameaças às comunidades indígenas da região.
“Nós sempre temos
esperanças que as coisas melhorem. O que esperamos é que tudo isso traga mais
oportunidades para nossas aldeias”, contou a indígena Francieti Estevão
Santiago, da TI Acapuri de Cima, que ainda não estava homologada em novembro de
2022, quando teve sua área cedida para o projeto de carbono.
Por outro lado, os
relatos dos indígenas com quem conversamos demonstram que eles pouco sabem
sobre o projeto de carbono que está em negociação, e muito menos sobre as
orientações da Funai e dos demais órgãos.
Não há, nem na Funai nem
no Ministério da Educação (MEC), até o momento, nenhum pedido de regularização
da universidade indígena para os povos de Jutaí. E não há expectativas de que o
projeto de fato possa ser implantado antes de janeiro de 2024 para o prometido
início das aulas.
·
Funai não sabia da
existência de pré-contratos
No mesmo mês de setembro
em que estivemos nas Terras Indígenas em Jutaí, o coordenador da CommunityRedd+
e diretor da Concepto Carbono, Juan Eduardo Hernández, também esteve nos
territórios do município, segundo os indígenas, para “definir as áreas dos
projetos”, e mais uma vez sem acompanhamento ou autorização do órgão
indigenista brasileiro.
Apesar de provocada ainda
em agosto de 2022 pelos próprios empresários colombianos, a Funai não se
manifestou mais sobre os projetos de carbono no Solimões, desde setembro do ano
passado, quando pediu para que a Coordenação Regional orientasse as comunidades
a não assinarem contratos antes de uma regulamentação do mercado de carbono em
Terras Indígenas.
Em 23 de agosto de 2022,
as empresas Yauto, Terra Commodities e Carbo Sostenible (Carbo-Terra-Yauto)
enviaram ofício ao órgão intitulado “Modelo de Negócios para o Desenvolvimento de Projetos
REDD+ com Comunidades Indígenas do Brasil no Estado do Amazonas”.
O documento indica a
possibilidade de pelo menos cinco projetos de carbono em Terras Indígenas na
região do Solimões e solicita “apoio e participação da Funai”, mas não faz
nenhuma menção aos nomes das Terras Indígenas.
“Queremos apresentar a
nossa maneira de abordar os projetos Redd+ diretamente às autoridades das
comunidades, com o apoio e participação da Funai, para permitir a aproximação
entre os povos indígenas e as nossas empresas”, diz o ofício assinado por Juan
Andrés López, da Carbo Sostenible, Alicia Micolta, da Yauto, e Federico Ortiz,
da Terra Commodities.
Em março deste ano, desta
vez em ofício assinado apenas pela Concepto Carbono, a empresa pediu
autorização para levar um representante da Funai para Bogotá para “reconhecer a
estrutura das empresas que estão apoiando a implementação do projeto Redd+
Jutaí, revisar os esquemas de trabalho”. O pedido foi encaminhado à presidência
da Funai, mas não há registro de que a presidência tenha respondido à
solicitação. No entanto, de fato, em 24 de março deste ano, uma representante
da Funai viajou a Bogotá, a pedido dos indígenas. As despesas da viagem foram
todas pagas pelas empresas.
Procurada pela
reportagem, a Funai disse que havia uma “solicitação de ingresso em Terra
Indígena” para apresentação de projeto de carbono, mas sem identificar quais as
terras indígenas de interesse”.
O órgão indigenista
reiterou que sua recomendação sempre foi “no sentido de que não sejam assinados
contratos para comercialização de créditos de carbono em Terras Indígenas até
que a questão seja regulamentada”. O órgão ainda disse que não tinha
conhecimento da situação atual dos projetos nas Terras Indígenas do alto
Solimões e não sabia da existência de pré-contratos assinados.
“A Fundação Nacional dos
Povos Indígenas (Funai) não tem conhecimento acerca de contratos de carbono
assinados nas TIs Riozinho, Rio Biá, Estrela da Paz, Macarrão, Espírito Santo e
Acapuri de Cima. Há na Funai processo que trata de solicitação de ingresso em
Terra Indígena por parte da ONG Carbo-Terra, para apresentar projetos de
crédito de carbono, sem, contudo, identificar quais as Terras Indígenas de
interesse”, informou o órgão. Apesar de nos informar que o pedido teria partido
de uma ONG, as três empresas colombianas são companhias privadas, e não
organizações não governamentais (ONG), como classificou a Funai.
·
Sonho da universidade
“A universidade indígena
vai beneficiar várias comunidades. Hoje, nossos alunos terminam o ensino médio
e não têm como continuar os estudos, por isso acreditamos que o projeto de
carbono vai nos ajudar muito para realizar esse sonho”. A fala do professor
Francisco Romão ecoava pela cabana onde nos reunimos com as lideranças
indígenas na aldeia Bugaio, na TI Estrela da Paz, no início de setembro deste
ano.
Um dos principais
defensores do projeto da universidade, Romão sonha com a possibilidade de
trabalhar com livros na língua kokama em sala de aula, e acredita que este é um
momento de virada para os indígenas do Solimões.
A cabana ficou cheia de
gente. Os indígenas serviram pajuaru, uma bebida alcoólica do povo Tikuna,
fermentada de um tipo específico de mandioca, e contaram planos e sonhos que
depositam com a vinda do projeto de carbono.
O cacique da aldeia,
Vanildo Romão da Silva, seguiu com as preocupações sobre a educação, e disse
que a comunidade já tem um planejamento para utilizar a verba do projeto de
carbono.
“Nosso projeto prevê
escolas de qualidade para nossa comunidade, posto de saúde, transporte,
sustentabilidade, energia solar e proteção da floresta. Nós precisamos de um
ensino superior para nossas crianças”, afirmou o cacique, que reclama da falta
de apoio da Funai. “Nós levamos as reivindicações para Funai e quase nunca
somos atendidos, ficamos aqui esquecidos”.
João Braz, do Conselho
dos Povos Indígenas de Jutaí (Copiju), diz que acompanha com cautela, e com uma
dose de esperança, o desenvolvimento do projeto de carbono. “Nós acreditamos
porque o nosso povo precisa de uma qualidade de vida melhor. Nós queremos
acreditar que vai dar certo”.
Quando perguntamos se ele
sabia sobre as orientações da Funai, disse que sabia que os órgãos foram
comunicados sobre o projeto, mas que a comunidade nunca recebeu orientações
contrárias à realização do projeto.
·
Contrários a projetos têm
medo de represálias
Nem todos concordam sobre
como as coisas têm sido conduzidas na região. Durante nossa passagem pelas
aldeias ouvimos críticas e até resistência ao projeto de carbono e de como a
ideia da universidade indígena foi utilizada para atropelar os processos. Quem
é contra prefere não aparecer com medo de represálias.
Em uma das comunidades,
um indígena se aproximou da nossa equipe e questionou: “é certo eles deixarem
os colombianos entrarem em nossas terras sem nos falar nada?”.
Outra fonte relatou
preocupação sobre situação irregular da universidade: “Os caciques já estavam
comentando que seus filhos seriam doutores, muitas mães e pais também acreditam
no projeto, sonhando com uma vida melhor para seus filhos. Mas eles [a
universidade] não tinham nada, começaram a dar aulas sem nenhum critério”,
contou outra pessoa que não quis se identificar.
·
Colombiano excluído do
projeto diz que existia “acordo”
Em 2021, o colombiano
José Antonio Pérez Manrique surgiu na região de Jutaí com o projeto da
universidade indígena. Ele se apresenta como voluntário, assessor dos indígenas
e coordenador-geral de uma organização denominada Guarda Indígena Ambiental
Internacional da Amazônia, que, segundo ele, é quem faz a gestão de
universidades indígenas no Brasil, Colômbia e Peru, e que congrega o povo
Tikuna.
Em Benjamin Constant,
também na tríplice fronteira, existe o movimento para criação da Universidade Indígena Diferenciada do Alto Amazonas, que Manrique cita como sendo um dos projetos
da sua organização. Mas, segundo o cacique Eli Tikuna, que coordena o projeto,
o colombiano não tem nenhuma relação atual com a universidade, mas confirma que
ele passou pela região e que a “experiência não foi boa”.
“Ele já passou por aqui
na nossa região, trabalhou com a gente, só que eu particularmente não
recomendo. Ele tinha essa ideia do projeto de carbono para financiar a
universidade, mas não continuamos com ele”, contou sem querer dar mais
detalhes.
À InfoAmazonia, Manrique
disse que o modelo de ensino com financiamento de créditos de carbono
permitiria aos indígenas implantarem seus planos de vida. A proposta inclui
construções do que ele chama de “ecoaldeias” e uma série de promessas de
melhorias para a vida das comunidades. E obrigatoriamente inclui um projeto de
carbono.
“Nós fazemos assessoria
para as comunidades criarem seus planos de vida baseado em nossa filosofia de
proteção, conservação, restauração e defesa da floresta. Dentro do plano de
vida nós criamos a universidade, e todo o projeto é financiado com créditos de
carbono”, afirmou. Em 2022, o próprio Manrique ministrou
aulas na universidade
indígena.
Pérez Manrique diz que
viajou com os indígenas de Jutaí para Bogotá, capital da Colômbia, onde
apresentou os empresários ligados à CommunityRedd+ aos indígenas. Quando
questionado sobre autorização da Funai ou do governo brasileiro para
desenvolver os projetos, ele desconversa e afirma que os caciques “são as
autoridades” para aprovar esses projetos: “essa parte não tem problema não,
porque os indígenas podem fazer”.
Segundo Manrique, o
projeto de carbono no Solimões está avançado e deve gerar crédito de carbono em
breve. No entanto, ele diz que foi excluído do processo pela Concepto Carbono e
acusa os empresários de traição.
“Não permitiram que eu
supervisionasse e fiscalizasse o projeto, esse era o pacto que fizemos. Se eles
não querem fazer as coisas certas, eu vou conversar com os caciques e vamos
trocar de empresa”, afirma, dizendo que vai denunciar os empresários.
“Eles suspenderam o
dinheiro para o projeto da universidade. Os alunos precisam estudar, esse ano
perdemos as aulas, mas no próximo ano as aulas serão retomadas. Se for preciso,
vamos denunciar eles. Eles estão subornando os indígenas”, disse, mas sem
apresentar provas à nossa reportagem.
Procurado para comentar o
assunto, o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse que está
reunindo informações de todos os projetos de carbono em Terras Indígenas para
uma análise mais aprofundada da sua Procuradoria Jurídica. O órgão também
afirma que a falta de uma regulamentação sobre o tema tem dificultado a ação
dos órgãos indigenistas, que muitas vezes não são informados corretamente sobre
a realização destes projetos.
Fonte: Mongabay
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