Diogo Comitre: Corrupção se combate com militares?
Nos últimos meses, diversos canais de comunicação
repercutiram as investigações que apuram as denúncias de corrupção envolvendo
agentes públicos que compunham o governo Bolsonaro. Chama a atenção o grande
número de militares entre os suspeitos, o que contrapõe a visão difundida pela
extrema direita nos últimos anos, de que os militares eram os únicos capazes de
combaterem a corrupção dos políticos civis.
Em agosto, por exemplo, a Polícia Federal conduziu
a operação “Lucas 12:2”, que investigou a venda ilegal de joias e outros
presentes recebidos pelo governo brasileiro durante o mandato de Bolsonaro.
Entre os investigados, que foram alvos de mandatos de busca e apreensão, três
eram militares: o tenente do Exército Osmar Crivelatti, o tenente-coronel Mauro
Cid, ambos ex-ajudantes de ordens de Jair Bolsonaro, e o coronel Mauro César
Lourena Cid, pai de Mauro Cid. Outro suspeito alvo da operação foi o advogado
da família Bolsonaro, Frederick Wassef. Além deles, o almirante de Esquadra da
Marinha Bento Albuquerque já havia sido investigado por tentar retirar um
conjunto de joias avaliado em R$ 5 milhões que foi retido pela Receita Federal,
no Aeroporto de Guarulhos.
Vale lembrar que a lista de militares que fizeram
parte do governo Bolsonaro e que são alvo de investigações é ainda mais
extensa. Os motivos incluem apurações sobre a conduta de membros do exército
que possuíam cargos no governo durante à Pandemia de Covid-19, a participação
em milícias digitais, fraudes em cartões de vacinação, crime de terrorismo,
associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito
e tentativa de golpe de Estado. Para termos uma ideia, a lista de acusados
apresentada pela relatoria da CPI dos atos golpistas é constituída por 61
pessoas, destas 31 são militares.
O envolvimento de diversos agentes das Forças
Armadas em escândalos de corrupção e irregularidades contrasta com a
representação dos membros do Exército difundida pelos setores conservadores da
sociedade brasileira. Nos últimos anos, vivemos um fenômeno em que uma parcela
considerável da população passou a enxergar os militares como a salvação para a
corrupção historicamente presente na sociedade brasileira.
A extrema direita conseguiu resgatar uma linguagem
do período da Ditadura Civil-Militar, convencendo grande parte dos brasileiros
de que os membros do Exército seriam os guardiões da ordem, da moral e dos bons
costumes. Dentro deste discurso caberia aos militares combater todo o mal
existente na sociedade brasileira, defender a pátria e a família tradicional
dos ataques perversos de políticos civis, especialmente aqueles identificados
com as visões progressistas.
Diante deste cenário assistimos à multiplicação da
participação de militares e policiais na política nacional, especialmente de
2018 em diante. Segundo levantamento realizado pelo G1, em 2018 o número de
militares ou policiais eleitos para o Legislativo saltou de 18 para 73, ou
seja, um número quase quatro vezes maior. A mesma pesquisa apontou que cerca de
59% destes foram eleitos pelo PSL, então partido de Jair Bolsonaro.
Durante o governo do ex-presidente, hoje também
investigado por corrupção, milhares de militares foram nomeados para funções
civis na administração federal. Segundo levantamento realizado pelo IPEA, em
2018 o Brasil possuía 2.765 militares exercendo funções civis na Administração
Pública Federal, já em 2020 este número aumentou para 6.157.
Em relação as eleições de 2022, o Instituto Sou da
Paz, realizou um levantamento sobre os eleitos para o Legislativo, oriundos das
Forças de Segurança. A pesquisa considerou a eleição de parlamentares que foram
ou são policiais, bombeiros ou militares, revelando que 103 candidatos vindos
destes cargos foram eleitos pela população brasileira. Destes, 57 foram eleitos
para Assembleias Legislativas, 44 para a Câmara Federal e 2 para o Senado.
Portanto, o discurso difundido pela extrema direita, desde a ascensão do
bolsonarismo em 2018, de que os policiais e militares seriam a salvação para o
país produziu como efeito a multiplicação de militares na política nacional.
Coincidentemente, de 2018 a 2022 percebemos um aumento significativo da
presença de membros das Forças de Segurança em cargos políticos eletivos ou
ligados a Administração Pública Federal.
Vale lembrar que a visão difundida pela extrema
direita de que militares e policiais seriam a única possibilidade de
moralização da política nacional não chega a ser uma novidade na história do
Brasil. Na década de 1920, por exemplo, o movimento Tenentista se opôs ao
sistema político vigente durante a República Velha, denunciando as fraudes
eleitorais, a corrupção e o mandonismo fruto da atuação das oligarquias do
período. Grande parte das lideranças tenentistas apresentava-se como
responsável por dirigir o destino político do país, defendendo a necessidade de
uma ruptura na ordem estabelecida. (FAUSTO, 1975, p.92).
A falta de coesão entre as oligarquias e as
disputas pelo poder político, no período, facilitou a eclosão do movimento, que
também canalizou a insatisfação dos jovens tenentes com suas condições de
trabalho no Exército. Podemos dizer que uma parte considerável das lideranças
tenentistas apoiaram as oligarquias dissidentes que organizaram o golpe que deu
origem ao Governo Provisório de Getúlio Vargas, em 1930. Vale lembrar que
alguns líderes tenentistas, como Luís Carlos Prestes, não aderiram ao movimento
de 1930 e que outros que apoiaram Vargas, mais tarde se juntaram a Prestes na
Aliança Nacional Libertadora (ANL), responsável por unir diversos setores de
oposição ao governo.
Deste modo, podemos perceber um papel político de
destaque de membros do Exército nas décadas de 1920 e 1930, já que lideranças
tenentistas foram uma base de apoio importante para a condução e para a
sustentação de Vargas no poder. Ao mesmo tempo, o principal movimento de
oposição, também tinha como liderança um membro do Exército, Luís Carlos
Prestes, que já havia se destacado na década de 1920 por combater o sistema
político do período da República Velha, organizando a Coluna Prestes. Portanto,
é razoável pensarmos que nas décadas de 1920 e 1930 lideranças militares
alcançaram importante apoio popular, sendo vistos por boa parte da população
como uma alternativa para o enfrentamento dos problemas inerentes ao sistema
político brasileiro. Se por um lado Prestes transformou-se no Cavaleiro da
Esperança, reunindo diversos setores populares em prol das ideias comunistas e
combatendo o governo Vargas; por outro lado outros militares ganharam destaque
especialmente após a promulgação da Ditadura do Estado Novo, em 1937. É o caso
do general Dutra, que teve destaque como chefe do Ministério da Guerra durante
a Ditadura chefiada por Vargas, liderando o combate da suposta ameaça
comunista, dentro do contexto da Guerra Fria.
Mais tarde, em 1946, o general Dutra ainda foi
eleito presidente do Brasil, em uma eleição marcada pelo clima gerado pelo fim
da Segunda Guerra Mundial. Porém, nas eleições seguintes nenhum candidato
militar logrou êxito, embora a presença militar no processo eleitoral tenha se
tornado constante nas décadas posteriores. Em 1950, o brigadeiro Eduardo Gomes
foi derrotado por Vargas, em 1955 o general Juarez Távora foi derrotado por
Juscelino Kubitscheck, e por fim, em 1960, o marechal Henrique Lott foi
derrotado por Jânio Quadros.
Deste modo, podemos afirmar que a maior parte da
população brasileira, nas décadas de 1950 e início de 1960, não reconheceu nos militares
uma possibilidade de solução para os problemas políticos nacionais. Contudo, o
golpe de 1964, contra João Goulart, colocou os membros do Exército novamente no
centro da política do país. Munidos pelo discurso do combate a ameaça
comunista, de defesa da família e da religião, a alta patente das Forças
Armadas instalou um regime de terror por 21 anos no Brasil.
Vale lembrar que o regime foi amplamente apoiado
por grandes corporações, especialmente ligadas ao setor de comunicação e
construção civil, além de uma parte considerável da classe média e alta do
país. O controle do Legislativo e do Judiciário pelo poder Executivo, chefiado
por militares e a intensa propaganda vinculada pela ditadura fez com que parte
da população brasileira acreditasse que os militares eram a solução para os
tradicionais problemas da política nacional e que os mesmos eram capazes de pôr
fim à corrupção e moralizar à sociedade brasileira.
Isso porque as instituições de investigação e
fiscalização perderam sua autonomia no período, o que impedia que a corrupção
militar fosse investigada. Do mesmo modo, o apoio da Grande Mídia e a censura
dos meios de comunicação, não alinhados com o regime, impediram que os
escândalos de corrupção chegassem até a população. Não é de se estranhar que
muitas pessoas que viveram no período não tenham a real dimensão da corrupção
praticada durante a Ditadura Civil-Militar.
Porém, com o processo de redemocratização o
Ministério Público voltou a ter autonomia e a imprensa livre permitiu a atuação
de veículos de comunicação independentes o que trouxe à tona, ao menos parte,
dos escândalos de corrupção do Regime Militar. Diversos documentos apontam, por
exemplo, irregularidades e ilegalidades envolvendo grandes empreiteiras no
período, revelando que o regime ditatorial fechado garantiu um ambiente
propício para a multiplicação dos lucros dos empresários do setor de
construção. O desmonte dos mecanismos fiscalizadores permitiu a maximização dos
lucros por meio de práticas ilícitas, permitindo o enriquecimento de
empreiteiros e agentes públicos em esquemas de corrupção (CAMPOS, 2012, p.
512-513).
Diversas obras faraônicas do período tinham como
finalidade, além de enaltecer o regime, enriquecer empreiteiros e agentes
públicos. Um exemplo emblemático é a rodovia Transamazônica, cuja real
necessidade de construção é bastante questionável. Além disso, a execução da
obra teve diversos problemas técnicos, como: falta de asfalto, rampas íngremes,
pontes feitas com madeira e drenagem precária, o que contrasta com o alto custo
do projeto.
Já a ponte Rio-Niterói, com previsão de entrega
para 1968 foi orçada em NCr$ 240 milhões; porém em 1971 houve a troca na
empresa que executava a obra e a previsão de custo foi atualizado para NCr$ 320
milhões. Apesar do aumento injustificável, o custo final da obra pode ter siso
ainda maior, já que não foi divulgado. Outro escândalo de corrupção que pode
ser citado é o que ficou conhecido como “Relatório Saraiva”.
Em 1976, Raimundo Saraiva Martins, então adido
militar na embaixada de Paris, denunciou que Delfim Neto (embaixador em Paris)
teria solicitado U$$ 6 milhões de fornecedores estrangeiros para intermediar a
compra de equipamentos para a Usina Água Vermelha. Jacques Broissia, diretor do
Banco Crédit Commercial de France, denunciou a diplomatas que havia pago Delfim
em conta na Suíça. Estes diplomatas levaram a denúncia até Saraiva, que
preparou o relatório que foi entregue a militares, advogados e políticos de
oposição. O caso ainda foi tratado no Congresso em 1978 e deu origem a uma CPI
na década de 1980 (CAMPOS, 2012, p. 499).
Embora o processo de redemocratização tenha trazido
à tona parte da corrupção do período da Ditadura Civil-Militar, podemos
observar que no senso comum permaneceu uma certa “aura” a respeito da conduta
dos militares. Trabalhos acadêmicos e reportagens jornalísticas sobre a
corrupção militar publicadas após a redemocratização dificilmente tiveram o
mesmo alcance de 21 anos de censura e propaganda oficial do regime, enaltecendo
as virtudes dos membros das Forças Armadas. Certamente, uma parcela
considerável da população continuou acreditando que os militares poderiam ser
uma alternativa importante contra a corrupção existente na sociedade
brasileira, principalmente após o processo de demonização dos políticos civis
ocorrido de maneira sistemática a partir de 2014.
A atuação política e anticonstitucional de
magistrados e membros do ministério público, juntamente com o espetáculo
midiático levado à cabo pela Grande Mídia produziu como resultado o sentimento
popular de rejeição à classe política brasileira, abrindo margem para a
ascensão de indivíduos e grupos identificados como “não políticos”. Ou seja, os
abusos e irregularidades cometidas pela Força Tarefa da Operação Lava Jato,
amplamente enaltecidas pela Grande Mídia levou grande parte da população
brasileira a negar toda a classe política existente até então.
Diante da comoção popular gerada pela crença de que
todos os políticos eram corruptos, muitas pessoas passaram a se identificar com
organizações que se proclamavam apartidárias, como o Movimento Brasil Livre,
Vem Pra Rua, Endireita Brasil, entre outros. Neste contexto, emergiram
celebridades e empresários, assim como membros das Forças de Segurança, que
passaram a ser vistos como alternativas a classe política tradicional, por
serem identificados pela população como “não políticos”.
O resultado acirrado da eleição de 2014, o não
reconhecimento imediato da derrota por parte de Aécio Neves e o golpe de 2016,
que conduziu Michel Temer ao poder, contribuíram para a criação de um contexto
político propício para a ascensão da extrema direita no Brasil. Tais eventos
políticos foram utilizados pela Grande Mídia como um verdadeiro espetáculo de
demonização dos partidos e dos políticos progressistas brasileiros. A atuação
de magistrados e de poderosos meios de comunicação com o objetivo de interferir
no resultado das eleições de 2018, impedindo a vitória de forças progressistas,
foi vista como uma oportunidade de atuação para grupos de extrema direita.
Por meio de uma atuação contundente e eficaz nas
redes sociais, a extrema direita conseguiu despejar toda a insatisfação popular
contra a classe política somente nos partidos e lideranças progressistas. Tal
processo levou grande parte da população a identificar a esquerda com o mal, ou
seja, como uma ameaça que precisava ser combatida. A ascensão do bolsonarismo
foi capaz de resgatar aspectos da propaganda oficial da Ditadura Civil-Militar,
construindo uma narrativa de que o governo dos militares teria sido marcado
pelo fim da corrupção e pela moralização da sociedade brasileira. Além disso, o
movimento também resgatou o anticomunismo característico do período ditatorial,
identificando a esquerda brasileira, do século XXI, com a ameaça comunista
propagada em todo o bloco capitalista durante o período da Guerra Fria. Tal
discurso passou a alimentar o crescimento da extrema direita brasileira, que
passou a criminalizar os partidos progressistas e a defender o protagonismo
militar na política como uma forma de resolver todos os problemas da sociedade
brasileira.
Como já mencionamos em nosso texto, a ascensão do
bolsonarismo foi acompanhada de um aumento considerável no número de militares
em cargos eletivos ou em cargos nomeados por autoridades políticas, o que
demonstra o quanto os militantes da extrema direita se identificaram com o
discurso que alçava os membros das forças armadas ao posto de salvadores da
pátria. Durante todo o governo Bolsonaro, o aparelhamento do Estado e a
interferência do governo na Procuradoria Geral da República e na Polícia
Federal conseguiu acobertar a maior parte das denúncias de irregularidades
envolvendo militares. Porém, a eleição de Lula, ao cargo de presidente da
República, foi acompanhada da retomada da autonomia de órgãos republicanos de
investigação e fiscalização, desnudando diversos esquemas de corrupção
envolvendo membros das Forças Armadas atuantes no governo Bolsonaro.
Assim como ocorreu durante o processo de
redemocratização, a garantia de autonomia das instituições republicanas
permitiu a investigação do alto escalão que ocupava o poder no período
anterior. Resta saber qual será o impacto destas investigações para a imagem
dos militares brasileiros, que estiveram tão em evidência nos últimos anos.
Segundo uma pesquisa realizada pelo DataFolha e repercutida em reportagem de
Igor Gielow, na Folha de S.Paulo, 61% dos entrevistados consideram que membros
das Forças Armadas estiveram envolvidos em irregularidades durante o governo
Bolsonaro. Já a pesquisa Quaest apontou que em dezembro de 2022, 43% dos
entrevistados diziam “confiar muito” nas Forças Armadas, já em agosto de 2022,
esse número caiu para 33%.
Alguns veículos de comunicação interpretam tais
dados como uma evidência de que a participação de militares na política deve
diminuir nos próximos anos, porém tal interpretação pode ser um pouco
precipitada. Isso porque a própria pesquisa Quaest aponta que entre os
eleitores de Bolsonaro no Segundo Turno que foram entrevistados, os que dizem
“confiar muito” nas Forças Armadas caiu de 61% para 40%, de dezembro de 2022
para agosto de 2023. Vale lembrar que a grande maioria dos bolsonaristas
possuía a expectativa de que os militares levariam adiante a tentativa de golpe
contra a eleição de Lula. Deste modo, tais pesquisas podem revelar mais o ressentimento
bolsonarista contra a atuação das Forças Armadas no dia 08/01, do que uma
verdadeira mudança na visão do senso comum brasileiro a respeito dos militares.
Neste sentido, talvez as eleições municipais de 2024 possam servir como um
termômetro mais calibrado sobre os impactos da corrupção envolvendo militares
no governo Bolsonaro na opinião pública brasileira.
De qualquer forma, a análise histórica dos períodos
em que os militares assumiram o protagonismo na política nacional revela que a
“aura ilibada” da caserna não se justifica, já que todos estes momentos foram
acompanhados de diversos escândalos de corrupção. Ao mesmo tempo, é possível
percebermos que o processo de aparelhamento do Estado com militares e a
intervenção no funcionamento das instituições da república não representa um
combate as irregularidades, mas ao contrário, cria um terreno propício para a
multiplicação das ilegalidades. Portanto, cabe a sociedade questionar o papel
das Forças Armadas na política nacional e refletir sobre qual deveria ser o
verdadeiro papel dos militares em nossa sociedade. A “aura ilibada” dos
militares tem raízes históricas e envolveu a atuação de agentes públicos e dos
meios de comunicação neste processo. Neste sentido, o atual momento histórico
representa uma oportunidade para que algumas visões deturpadas sejam combatidas
e para que possamos discutir com profundidade a atuação de militares em cargos
eletivos e comissionados, assim como a importância da defesa da democracia como
valor máximo da vida em sociedade.
Além disso, combater a deturpada visão de que os
membros das Forças Armadas seriam a única opção para o fim da corrupção
presente na sociedade brasileira pode representar um primeiro passo importante
para o enfrentamento real do problema. A crença infundada na existência de
salvadores da pátria impede a percepção de que a corrupção tem causas
estruturais, que devem ser enfrentadas por meio de medidas concretas e
efetivas, que necessitam ser pactuadas entre toda a sociedade brasileira.
Fonte: Observatório da Imprensa
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