Brasil: para deixar o labirinto do desemprego
O golpe de 2016 atingiu
políticas de emprego, salário e relações trabalhistas. Os governos de Michel
Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022) cortaram mecanismos de proteção
social e restringiram direitos. Agravaram uma crise que é econômica e bastante
concreta, mas também simbólica pois o desemprego assumiu uma normalidade
bizarra, em meio a uma crise de esperança na qual as condições precárias foram
naturalizadas e dadas como certa.
O movimento sindical, os
movimentos sociais e a sociedade civil vão dar a volta por cima e conseguir
elaborar alternativas e construir caminhos para o Brasil? O momento pede não
apenas regulamentação das novas formas de trabalho, mas sobretudo uma abordagem
propositiva. É preciso projetação para a defesa de formas de organização do
trabalho que integrem políticas ativas de geração de trabalho qualificado,
renda e ocupação digna na economia popular rural e urbana.
Trata-se da incorporação
das transições para relações mediadas por plataforma digital, combinadas com
políticas de qualificação e renda mediante uma economia que resulte em impactos
positivos profundos, tanto em termos ambientais quanto de inclusão social.
Estas transições e novos
modelos podem ser construídos mediante a união de forças do movimento sindical
e dos movimentos sociais em diálogo com diferentes níveis de governo. Devem ser
seus principais protagonistas, pois têm a legitimidade para dar direcionamento
de longo prazo e cobrar políticas de estímulo ao que chamamos de Economia
Solidária 2.0. Ou seja, incentivar o uso de tecnologia para, a partir do
acúmulo histórico que o Brasil tem na Economia Solidária, fomentar novos
modelos de cooperação e organização econômica pensados não apenas a partir do
lucro. Políticas como, para citar um exemplo, o fortalecimento das inversões
mediante compras públicas em organizações produtivas populares (OPPs).
Platraforma digital não é um santo milagreiro, mas ajuda!
Mais do que isto,
defendemos aqui o aumento da capacidade de projetarmos modelos alternativos e
colaborativos de redes com estruturas sociais e digitais coletivas que levem à
criação de valor fora do ambiente das gigantes e predatórias corporações de
tecnologia. Nesses espaços, híbridos de estruturas sociais e digitais
coletivos, vários elementos podem ser inseridos para além das plataformas
digitais coletivas (moradia, educação, qualificação, cultura, transferências
sociais; acesso a crédito e assessoria sociotécnica para circuitos populares da
economia, etc).
Esse tipo de apoio só
pode prosperar se as cooperativas, associações e coletivos de economia
solidária foram reconhecidas como atores legítimos, recebendo incentivos e
estímulo para avançar com projetos alternativos. A economia solidaria não pode
ser encarada como periferica, local, ou invisivel no contexto do
desenvolvimento economico e tecnologico de um pais – como defendem Veronica
Gago e colegas em livro recente.
Para elaborar e construir
soluções são necessários modos de interação e gestão compartilhada entre
movimentos sociais com suas demandas populares e desenvolvedores de software
livre para Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Articular tais
segmentos é o desafio para o desenvolvimento de algoritmos com protagonismo
social em projetos capazes de operar em favor do bem público – esse é o melhor
caminho para garantir a soberania digital e avançar com empreendimentos
econômicos solidários no Brasil.
• Ampliar espaço para organização coletiva
As OPPS demandam uma
reforma oficial ousada e adequada com titulação fiscal, creditícia,
securitária, previdenciária e trabalhista a exemplo do E-SOCIAL (modelo
avançado desenvolvido no governo Lula 2 pelos técnicos da empresa pública
SERPRO que reúne escrituração digital das obrigações fiscais, previdenciárias e
trabalhistas para as relações entre empregados e empregadores domésticos).
Por que não seria viável
um modelo do tipo E-ECOPOPSOL semelhante ao E-SOCIAL para reconhecer
oficialmente o que de fato, já ocorre? Que é a existência de milhões destas
OPPs como categoria própria de organização econômica (que seriam oficialmente
separadas da camada de 5,5 milhões de PMEs – Pequena e Micro Empresas) nos
variados circuitos populares da economia que abarcam desde agricultores e
assentados da reforma agrária, trabalhadores da reciclagem, alimentação, têxtil
e vestuário, pequena e micro-industrias, oficinas de todos os tipos, até os
entregadores e motoristas sob plataformas de trabalho, hoje foco de atenção
exclusiva do GT criado pelo governo para debater o tema. Por que não criar
condições e abrir espaço para pequenos coletivos de trabalhadores e
trabalhadores, hoje atuando na informalidade, poderem se formalizar e fazer
parte do ecossistema nacional de cooperativas nacional? Ou a política nacional
deve beneficiar apenas cooperativas gigantes, como as de crédito?
O cenário do trabalho no
mundo mudou e segue mudando com velocidade. Tendências recentes apontam que as
plataformas de trabalho remoto configuram uma das características
contemporâneas da reestruturação do capitalismo. Gigantes transnacionais como
Microsoft, Amazon, Meta/Facebook e as antigas Basf, Syngenta e Bayer apresentam
em comum investimentos estratégicos para tornar as plataformas digitais
elementos centrais na reestruturação do mundo do trabalho em todos os segmentos
produtivos e de serviços ondem atuam, no campo e nas cidades. As tecnologias
emergentes reunidas nas Plataformas Digitais (PDs) têm aumentado,
progressivamente, o seu peso na economia das nações, mas não no número de
pessoas envolvidas. Em 2016, nos EUA, o setor de tecnologia possuía apenas 6,8%
do valor agregado das empresas e 2,5% da força laboral. Mesmo no relativamente
desindustrializado EUA, o setor de tecnologia emprega quatro vezes menos que a
indústria. No Reino Unido, quase três vezes menos empregados que na produção
industrial. Em suma, as tecnologias emergentes têm uma enorme e veloz tendência
de produzir de forma simultânea explosão, exclusão e aumento da competitividade
no sistema [10].Os oligopólios também estão concentrados em termos espaciais
(MORAES, 2020).
Metade (49) da lista
total das Top 100 (FT) estão localizadas nos EUA; outras 24 na China e outras
27 espalhadas pela Europa e Ásia. Dentro desse sistema hegemonicamente
financeiro e tecnológico (dois setores com bens e fluxos intangíveis que se
encontram), a América Latina se torna ainda mais periferia, vendo a sua dependência
se ampliar em termos de infraestruturas tecnológicas, como consumidora de
pacotes que controlam seu imenso e desejado mercado. O que mostra os impactos
do gigantismo do setor de tecnologia e seus espaços no território, para além da
centralização setorial que o uso expandido das Plataformas Digitais deixa
evidente (MORAES, 2020).
Sabemos que há estudos
co-relacionando tendências de posicionamento político e visão de mundo
decorrentes da radicalização de modelos de negócios baseados no acirramento da
competição, do livre mercado e de um tipo de empreendedorismo profundamente
individualista com resultados que apontam que o discurso conservador é causa e
consequência do capitalismo de plataforma que opera sob a batuta do
neoliberalismo desde abajo, manipulando novas dinâmicas sociais estruturadas no
vácuo de proteção social deixado pelo Estado. As centrais sindicais têm
participação assegurada nesse processo de ampliação dos direitos sociais para
pessoal dentro e fora dos contratos de trabalho, pois a transição tecnológica
reúne várias camadas de trabalhadore/as – todos e todas sob uma mesma
plataforma não importa se tem relação trabalhista ou não. Empresas públicas
como o SERPRO e DATAPREV (que implantaram o E-SOCIAL no segundo governo Lula)
poderão ser os laboratórios de protótipos.
• A necessidade de imaginar
Por estas e outras razões
o movimento trabalhista depara-se com uma esfinge que pode devorá-lo se não
situar o mundo do trabalho centralmente nas estratégias de desenvolvimento
econômico, socioambiental e do uso das plataformas para gerar e distribuir
trabalho e renda. Seja no campo, seja nas cidades, em atividades formais ou nos
circuitos populares da economia, em todos os segmentos que envolvem trabalho
dá-se o mesmo fenômeno: a reprodução social das famílias não tem como ser
equacionada no Brasil sem políticas públicas adequadas.
É preciso ousar,
imaginar, construir caminhos alternativos. Os governos têm o dever de garantir
espaço para essa nova Economia Solidária 2.0 florescer. Movimentos sociais e sindicatos
têm a oportunidade de criar e avançar com novas formas de organização social e
econômica. Não preencher esse espaço é arriscado, o poder não aceita vácuo.
Quando deixadas sob a
hegemonia do Capital, esta reprodução social fratura a sociedade e a economia,
com empresas e governo operando sob a forma de assalariamento, e a partir de
2016 de forma intensa como acesso ao trabalho remunerado temporário. O andar de
cima coloniza e extrai valores dos circuitos populares da economia recorrendo
ora ao trabalho precarizado sob diferentes modalidades, ora ainda por meio das
relações de base familiar e comunitária que garantem o mínimo, básico para a
sobrevivência.
Em períodos de crise dos
circuitos empresariais e dos investimentos do Estado, como o que o Brasil
atravessou de 2019 a 2022, os circuitos populares da economia perdem suas
reservas de autoproteção e aumenta vertiginosamente o risco de fome e miséria.
Os indicadores sociais e econômicos são a expressão de uma crise de múltiplas
dimensões.
Uma delas atende pelo
nome de precarização das relações trabalhistas e sua face relacionada às
estratégias empresariais de impor um modelo de negócio – o do trabalho remoto
mediante plataformas digitais ao vasto contingente de pessoas que dependem das
trocas nos circuitos populares da economia.
Estas plataformas são
controladas quase na sua totalidade por corporações e empresários, que se
aproveitaram da desorganização do metabolismo social, devido a uma gestão de
governo que vitimou milhares de trabalhadore/as e familiares, afetando
sobretudo o tecido social das camadas mais pobres. No mundo do trabalho deu-se
em paralelo o aprofundamento do desemprego e da subocupação com a
desregulamentação trabalhista promovida com o lobby de grandes empresas.
A ausência de governo e a
retirada de cena dos mecanismos de mediação com a extinção do Ministério do
Trabalho e o da Previdência – provocaram a vácuo necessário aos empresários
para turbinar o capitalismo de plataforma.
Dados preliminares
estimam em 2,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras foram atraídos e
subordinados a um modelo de negócios fundamentado na precarização e
desregulamentação, cujo gerenciamento se tornou viável devido aos dispositivos
orientados pela tecnologia de algoritmos opacos e literalmente nas “nuvens” que
serve como verniz tecnológico para reativação de práticas de exploração há
muito superadas.
A crise econômica já
existente no país no período pré-pandemia foi agravada pela necessidade de
isolamento social, gerando maior desemprego, de modo que o trabalhadores
passaram a ser obrigados a buscar trabalho, seja através da clássica
informalidade, ou como novos “servidores” do trabalho de plataformas a partir
de empresasPara explicitar essas questões é necessário ampliar e focalizar
algumas linhas de atuação estratégicas. É o que propomos neste texto inicial,
um convite para pensar problemas e imaginar alternativas.
Esta serie de artigos
está organizada em oito partes:
• 1. Plataformismo: outra etapa do Modo de Produção
capitalista?
A revisão das tendências
econômicas, jurídicas, psicossociais, culturais e sociológicas da penetração do
capitalismo de plataforma no Brasil para identificar sua relação com as lógicas
de exclusão e de inclusão produtiva e atividades econômicas de contingentes
consideráveis da PIA (População em Idade Ativa)
• 2. Uma proposta de política economia popular e solidária
começa pelo mapeamento e cartografia
Realizar pesquisa
nacional sobre cooperativismo de plataforma, identificando especificidades
regionais e tipologias de experiências que utilizam as plataformas digitais
para alavancar projetos cooperativos. A partir dessa pesquisa promover
encontros entre as iniciativas mapeadas, poder público, instituições da
sociedade civil, movimentos sindicais e pesquisadores da temática com intuito
de construir políticas públicas voltadas para o setor entre produtores e
consumidores, associados e gestores de associações e cooperativas solidárias
• 3. Se não trabalho me matam, se trabalho me acabo! (direito e
saúde dos trabalhadores de Plataforma).
Em parceria com a
Fiocruz, que há anos estuda os efeitos na saúde dos trabalhadores de
plataforma, promover debates sobre esse tema com pesquisadores e atores sociais
afetados pelo plataformismo.
• 4. Centrais sindicais, sindicatos e Confederações podem assumir
as lutas dos movimentos pela Economia Popular e Soliudária?
Com as centrais sindicais
e a Unisol Brasil, promover seminários para discutir a incorporação das pautas
relacionadas aos direitos dos trabalhadores de plataforma nas lutas sindicais.
• 5. A luta dos movimentos sociais pela construção da
visibilidade da Economia Popular e Solidária
Como chegar ao
cooperativismo solidário de plataforma: Como resultado do mapeamento nacional
de cooperativismo de plataforma, promover encontro com as cooperativas/associações
mapeadas para disuctir os resultados encontrar e encaminhar propostas de
política pública para o setor.
• 6. Políticas públicas para Eco Pop e Ecosol: como criar uma
estratégia a partir da plataforma digital
Incorporar os gestores
públicos no debate com os movimentos sociais e sindicais para elaborar
propostas participativas de programas voltados para o cooperativismo de
plataforma
• 7. Software livre para apoio à gestão de empreendimentos da
economia solidária
Em parceria com a
cooperativa EITA, que atua com desenvolvimento de software livre para
movimentos sociais, desenvolver uma ferramenta para facilitar a gestão de
cooperativas
• 8. De volta ao princípio: crédito e financiamento para
alavancagem da Economia Popular e Solidária?
Financeirização das
experiências associativas e de cooperativismo solidário em plataformas: Com
apoio do Banco Palmas, promover troca de experiencias sobre capilarização do
crédito e da renda mediante ferramentas digitais via bancos comunitários de
desenvolvimento local
Fonte: Texto-manifesto
coletivo
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