Seca histórica na Amazônia estava prevista e
poderia ter sido antecipada, diz professor da USP
A seca histórica que o
estado do Amazonas registrou em outubro já estava prevista em análises
meteorológicas, segundo o professor do Departamento de Ciências Atmosféricas da
Universidade de São Paulo (USP) Augusto José Pereira Filho, entrevistado pela
Sputnik Brasil.
Para ele, impactos na
energia elétrica — que podem atingir todo o país — e, principalmente, na vida
de milhares de indígenas e ribeirinhos da região amazônica, poderiam ter sido
antecipados e reduzidos. "Essa seca já estava prognosticada desde meados de
junho deste ano. Então, já [deveria] haver um plano de redução desses impactos
para [a] mitigação de impactos."
"A meteorologia hoje
é dotada de ferramentas muito importantes e, infelizmente, parece que ainda não
aprendemos a antecipar essas situações de maneira apropriada. Com isso, toda
essa população, que depende da água e dos rios para o transporte, acaba
sofrendo de forma bastante dolorosa, e não deveria ser assim."
A seca fez o rio Negro
atingir, em 16 de outubro, o nível mais baixo em 121 anos de medições em Manaus
(AM), com 13,59 metros. A marcação começou em 1902 no porto manauara.
Segundo a Defesa Civil do
Amazonas, maior estado em extensão territorial do Brasil, mais de 633 mil
pessoas foram atingidas pela seca e 59 municípios estão em situação de emergência.
No interior, algumas
cidades têm problemas de abastecimento de água potável, alimentos e insumos. O
município de Manacapuru também teve o menor nível do rio Solimões em 55 anos de
medição.
O meteorologista da Tempo
OK e mestre em ciências atmosféricas Caetano Mancini explica que a seca do
Norte geralmente começa em junho e vai até meados de outubro, mas a região tem
tido chuvas abaixo da média e secura por mais tempo do que o previsto, em
decorrência do fenômeno do El Niño. "Em condições normais, as chuvas já
deveriam ter começado a retornar."
"A previsão é que o
fenômeno siga com intensidade forte até meados de dezembro, podendo se estender
até os primeiros dias de janeiro, quando prevemos tendência de enfraquecimento
gradual e desconfiguração total em meados de abril. Além disso, neste ano
notamos [a] peculiaridade que potencializou o impacto do El Niño no Norte.
Trata-se de um efeito combinado com o Oceano Atlântico Norte mais quente [do]
que a média, o que prejudicou ainda mais as chuvas", diz Mancini.
Pereira Filho explica que
o El Niño aumenta as chuvas na América do Sul por meio do aquecimento da
atmosfera, que inibe a formação de nuvens, e que a região amazônica é a maior
prejudicada por isso. "A Amazônia não é uma região produtora de umidade para
ela mesma. Ela recebe a umidade do oceano Atlântico, grande parte dessa
umidade."
O professor pondera que a
seca impacta a região amazônica com frequência, com períodos entre três a sete
anos, mas que a de agora tem mais fatores que a intensificam, tais como o
derretimento de galerias na Antártica — provocado pelo aquecimento global, que
leva água mais fria para o fundo do oceano e produz menor evaporação, que
transporta umidade à Amazônia.
Ele ainda comenta que as
chuvas intensas no Sudeste devem se estender até o início de 2024, mas as
precipitações na região Norte do país devem ser poucas nesse período.
A dependência das
hidrelétricas é um dos problemas, na visão de Pereira Filho, já que as chuvas
são cruciais para essa produção energética, centrada nas regiões Norte e Sul.
·
Pode faltar energia no
Brasil?
Para os especialistas
consultados pela Sputnik Brasil, o fato de o país ter uma rede de energia
elétrica interligada entre as diferentes unidades federativas pode reduzir as
chances de ocorrer interrupção no fornecimento energético, provocada pela seca.
O engenheiro eletricista
e pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Gabriel
Correia explica que a energia no Brasil é predominantemente gerada por
hidrelétricas — cerca de 60%, conforme balanço energético nacional de 2023.
No entanto, de acordo com
Correia, o país estabeleceu o Sistema Interligado Nacional (SIN), em que
praticamente todas as usinas — incluindo as eólicas, térmicas e, recentemente,
as solares fotovoltaicas — injetam energia na rede de transmissão, numa espécie
de rede de distribuição energética.
"Significa, de forma
simplificada, que uma usina hidrelétrica do Sul do país auxilia na energia do
Nordeste e vice-versa", exemplifica. "Isso amplia a oferta de
energia, reduzindo os riscos de um apagão geral, uma vez que, se a bacia do
Amazonas está com um volume baixo, o Operador Nacional do Sistema Elétrico
[ONS], que é o órgão que opera o SIN, regulará o sistema para que se produza
mais energia em alguma hidrelétrica de alguma bacia que está com volume
maior."
Ele entende que tais
fatores reduzem o risco de apagão geral, já que as secas são registradas em
diferentes regiões brasileiras. "Agora, se a seca for predominante no país
como um todo, creio que será inevitável ter apagões pontuais. Então, o governo
federal terá que decidir onde vai haver essa interrupção."
"Do ponto de vista
econômico, grandes centros urbanos serão menos prejudicados, com menor risco de
apagão, ao passo que locais distantes, comunidades menos favorecidas, acredito
que sofrerão com uma eventual falta de energia."
A Câmara de
Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), por determinação da Agência
Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), repassa o aumento da geração de energia
elétrica para o consumidor por meio do regime de "bandeiras
tarifárias". Nesse regime, a conta de energia elétrica sofre aumento para
suprir custos da geração de energia, além de "penalizar" o consumidor
ou "incentivar a redução" da energia, segundo ele.
"O consumidor paga
mais pela energia ou repensa seu uso. Portanto, o aumento da fatura é
inevitável quando há níveis hídricos preocupantes. Na seca de 2021, o governo
implementou a chamada 'bandeira de escassez hídrica'. Isso foi usado uma vez
nesse período, mas com o aumento da estiagem e seca, é possível ter a volta da
bandeira, que impacta diretamente o consumidor em todo o país."
Para o professor da USP
Augusto José Pereira Filho, as chuvas intensas no Sul têm gerado mais energia
pelas hidrelétricas da região. "Dado que o sistema de distribuição de
energia elétrica é interligado, mesmo com a diminuição das chuvas na Amazônia
e, consequentemente, da geração de energia elétrica por barragens na região
amazônica, isso pouco afeta a geração."
O meteorologista Caetano
Mancini avalia que o Norte provavelmente importará energia do Nordeste,
especialmente de matriz renovável, eólica e solar, já que o fenômeno do El Niño
deverá prejudicar também a região nordestina.
"A situação só não é
tão preocupante, em termos de energia, pois o Sudeste do Brasil atravessa [uma]
condição de armazenamento historicamente favorável."
Ainda assim, para ele, é
preciso ter atenção nesse tema, já que o verão promete ser mais quente do que a
média, o que aumenta a demanda por uso de aparelhos de ar-condicionado, por exemplo.
"O padrão mais seco do Norte pode provocar uma depreciação mais rápida dos
reservatórios do Sudeste, podendo afetar o sistema elétrico em um prazo mais
longo."
·
Desastres
A ministra da Saúde,
Nísia Trindade, anunciou, no mesmo dia do recorde de medição no rio Negro, o
valor de R$ 225 milhões para reforçar o atendimento no estado, em razão da
forte estiagem.
Do total, serão enviados
R$ 102,3 milhões em parcela única, enquanto R$ 122,7 milhões serão incorporados
ao teto de média e alta complexidade da unidade federativa. As cidades de
Lábrea, Tabatinga e São Gabriel da Cachoeira vão receber recursos para reforçar
a assistência na atenção primária.
Conforme publicou a
Agência Brasil, o governo federal disponibilizou cerca de R$ 100 milhões para
ações emergenciais de dragagem de trechos do rio em pontos críticos, próximos a
Itacoatiara e Manaus. A região tem cerca de 2,3 milhões de habitantes, e o
objetivo é evitar o desabastecimento de itens básicos.
O Ministério de Portos e
Aeroportos informou que os órgãos competentes já iniciaram trâmites para a
contratação emergencial da dragagem, que deverá começar nos próximos dias,
ainda na segunda quinzena de outubro.
Dias depois do recorde na
seca, a prefeitura de Belém (PA) anunciou que instalará oficialmente o Fórum
Municipal sobre Mudanças Climáticas e empossará membros titulares e suplentes
na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
O fórum é um suporte
fundamental, segundo o município, para as ações preparatórias para a COP-30,
que será realizada em novembro de 2025 na capital paraense, que deverá discutir
políticas destinadas ao desenvolvimento sustentável com autoridades de todo o
mundo.
Fonte: Sputnik Brasil
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