Roberto Amaral: A reforma necessária — a militar
“O
Brasil tem um arremedo de Defesa. Neste domínio, a República fracassou. Para a
afirmação da soberania brasileira, precisamos de uma nova Defesa, que revise o
papel, a organização e a cultura das Forças Armadas. Chamo essa revisão de
reforma militar”. Manuel Domingos Neto – O que fazer com o militar
(Editora Gabinete de Leitura)
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Graças ao empenho e coragem de alguns poucos
cientistas sociais, e dentre eles destaco o prof. Manuel Domingos Neto (veja
o PS do Viomundo), abre-se, ainda restrito, ainda tímido e cauteloso, o
necessário debate sobre o papel das forças armadas do Estado brasileiro.
Já não era sem tempo, passados quase 60 anos do
golpe de 1964 e nada menos de 35 da Constituinte tutelada, restrita, despida de
poder originário, costurada sob a vigilância dos generais (um só exemplo é o
ameaçador art. 142).
Esta nossa democracia limitada, tanto frágil quanto
seguidamente ameaçada pela caserna, é o preço do acordo que a possibilitou.
Não poderia ser diferente, quando o próprio fim da
ditadura foi negociado, e, longe do despejo, os militares ditaram as condições
do retorno à caserna.
Um dos itens da conciliação foi a impunidade dos
torturadores, quando a “correlação de forças”, conceito hoje tão em voga,
sugeria o avanço das forças populares.
Mas, como sempre, venceu a conciliação liberal, e o
avanço foi substituído pelo recuo.
A pequena história da república é a longa narrativa
de insurreições e golpes militares, sempre contra o povo:
— 1937 (“Estado novo”);
— 1945 (queda de Getúlio Vargas);
— 1954 (deposição de Vargas);
— 1955 (tentativa de impedir a posse de Juscelino
Kubitscheck);
— 1956 (intentona de Jacareacanga);
— 1959 (Aragarças);
— 1961 (tentativa de golpe para impedir a posse de
João Goulart);
— culminando com o golpe de 1964, que ainda não
seria o fecho da preeminência militar sobre a vida civil.
Nessa crônica de autoritarismo e insurgência, um
fio de ligação: a impunidade, que ajuda a compreender a morfologia da intentona
do último 8 de janeiro.
Seus custos são consabidos. Ignorá-los é
acumpliciamento. Punir os transgressores, um imperativo cívico.
Este é o pano de fundo das reflexões do professor
Manuel Domingos: os fatos e suas implicações, vistos a partir do processo
social.
Seu laboratório é a caserna, ponto de partida para
a indicação de reformas que alterem o presente vivido para construir um futuro
imediato distinto.
Sua proposta é a reforma militar, a qual, por sem
dúvida (e não o ignora o historiador e cientista social), será a decorrência de
uma reforma-mãe, a reforma política, revolvente das estruturas arcaicas,
dependente do progresso das forças sociais.
Mas esta não pode ser uma decisão de Estado, de
cima para baixo, pois deverá crescer como uma exigência da sociedade civil
sufocada.
O bolsonarismo, filho do militarismo golpista, não
deve ser visto como “um raio em céu azul”, pois sua insurgência só terá
surpreendido aos que desprezam os ensinamentos da história. Quem não os conhece
dificilmente cumpre o papel de sujeito.
No dia 17 de março de 1964 o Partido Comunista
Brasileiro, em festa de aniversário no auditório da ABI, no Rio de Janeiro,
dizia aos seus militantes que as forças armadas brasileiras, “oriundas da
classe média”, eram legalistas e democráticas, o que afastava do horizonte
qualquer nuvem de golpe militar, temido, nada obstante o “dispositivo militar
do Gal. Brasil”.
Poucos dias passados, molhados os pés às margens da
revolução social prometida, surpreendemo-nos afogados pela ditadura, que, mesmo
naquela altura, não se supunha tão cruenta e longeva.
Era o preço de nossa alienação. Como olhar para
além do agora imaginado, se não conhecíamos, sequer, o presente?
Lamentável que seja, o fato é que nossas lideranças
mais respeitáveis teimavam e teimam em tentar interpretar a realidade a partir
da contemplação das aparências.
Quando a ditadura, superada como necessidade da
classe dominante, cedeu o poder à administração direta do grande capital, nos
deixamos vencer pela ilusão de que a democracia havia, finalmente, se
consolidado em país fraturado por brutal desigualdade social.
Prelibando o poder, renunciámos à revolução, e nos
entregamos à disputa pela administração benfazeja da sociedade de classes.
Embalados pelas vitórias do projeto de
centro-esquerda, concluímos que as massas populares estavam a poucos passos da
consolidação democrática, até que a “surpresa” do golpe de 2016, a prisão de
Lula e a eleição do candidato dos militares e da extrema-direita nos mandasse
de volta à realidade de uma sociedade conservadora e atrasada.
Em 2018 surpreendemo-nos com o avanço do projeto
militar e a emergência da ultradireita.
Em 2022 muitos setores democráticos, todos
observadores das aparências, aliviados com a eleição de Lula, deram como salva
a democracia.
Em meio às comemorações da posse, o país em festa,
fomos surpreendidos pela quase virada de mesa de 8 de janeiro, o 18 brumário
que não deu certo. Ao invés da ditadura de Luís Bonaparte, a novidade é um
capitão correndo o risco de conhecer a cadeia.
A surpresa de hoje, para o campo da esquerda – a
descoberta de uma direita protofascista com base popular –, começou a ser
narrada nos indevassados idos de 2013. Mas então a novidade era muito incômoda
para ser reconhecida.
Na sequência de três governos progressistas (os
dois de Lula e o primeiro de Dilma, pois o segundo não houve), nos convencemos
da emergência, final, de uma socialdemocracia progressista.
O atestado eram as vitórias eleitorais do bloco de
centro-esquerda liderado pelo PT.
Presentemente nos assustamos convivendo com uma
sociedade ainda arraigadamente conservadora.
Quanto mais caminhamos, mais andamos para trás,
carregando o passado como destino.
Os que se deixaram surpreender pela insurgência da
extrema-direita, fruto histórico impercebido ou negado, dão agora como favas
contadas o fim de sua ameaça, como se os apertados números das eleições de 2022
fossem indicadores de uma revolução social, assim nos libertando da autocrítica
necessária.
Pode ser boa forma de esquecer nossa
responsabilidade na aparente inversão dos polos políticos; jamais uma solução.
O ovo, porém, não gorou; a serpente, viva, apenas
se recolheu para melhor sobreviver e permanece na espreita de oportunidade para
novo ataque, se o antídoto não for aplicado de imediato, como é de regra na
república tutelada: a punição dos golpistas e a reforma militar, que só terá
sentido se fruto de um grande debate nacional, como este apenas inaugurado pelo
prof. Manuel Domingos, ainda nos modestos auditórios ao seu alcance.
Mas pouco avançaremos se não furarmos os limites
presentes, promovendo – os partidos e as instituições democráticas, as
entidades de classe, a sociedade civil – um grande debate envolvendo Congresso,
universidade, sindicatos, imprensa, movimento estudantil e mesmo a caserna,
retirada de seu casulo.
O poder judiciário (sobre o qual não nos é
permitido tecer ilusões) ensaia uma reação que precisa ser sustentada, e mesmo
a chamada grande imprensa já se dá conta do que recusou ver ao aderir
irresponsavelmente ao golpismo.
Eleito como fruto de um projeto de estado-maior, o
paraquedista Jair Bolsonaro foi sustentado pelo que hoje se sabe ser a última
geração dos porões da ditadura, em conluio com o que há de mais reacionário na
soleira da pequena política nacional, de que o “Centrão” é paradigma.
As forças armadas, diante do desafio levantado pelo
capitão, dividiram-se em tarefas igualmente comprometedoras, da omissão na
defesa da legalidade democrática à ação direta visando à desestabilização
institucional.
A Marinha, comandada por um almirante que precisa
ser levado às barras dos tribunais, chegou ao cúmulo do abuso de poder com o
jocoso desfile de tanques reumáticos e fumacentos na Esplanada dos Ministérios,
no intuito de pressionar o Congresso no dia em que apreciava o tosco projeto do
voto imprenso, jogo que interessava ao capitão para desestabilizar o processo
eleitoral.
Logo após a derrota nas urnas, o capitão reuniu-se
com os comandantes militares para maquinar o golpe derradeiro.
Enfrentou resistência do comandante do exército,
silêncio cúmplice do comandante da aeronáutica e apoio entusiástico do
comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, que permanece impune.
Incapazes de cumprir com suas atribuições constitutivas,
nossas forças se formaram no cruento combate às insurreições populares.
Desde a colônia seu ofício é combater o “inimigo
interno” – e inimigo é quem quer ameace a ordem dominante.
O indígena arredio, o escravo rebelde e seus
defensores, condenados como inimigos da ordem, a imagem sagrada no altar-mor do
civismo castrense. Inimigo é quem ameace o mando.
Na colônia, inimigo era quem se atrevesse a pôr em
risco a Coroa; no Império, os adversários do latifúndio.
A República sem povo consolida o poder militar em
defesa da ordem reacionária. Instala-se a curatela político-ideológica sobre a
sociedade, sob o comando de militares sem autonomia ideológica. Produto do
processo histórico, são igualmente o instrumento de construção e sustentação de
uma sociedade fundada na desigualdade social, e de um Estado dependente da
ordem internacional hegemônica. Na colônia, no Império e na República.
Desapartados da defesa nacional, fazem-se
instrumento dos interesses das grandes potências.
Após a segunda guerra mundial se transformam em
soldados da Guerra Fria e se dedicam ao combate ao seu irmão interno, os
amantes da paz, correntes nacionalistas e progressistas, os trabalhadores e os
camponeses sem terra, os comunistas e as esquerdas, armadas ou não.
Sem saber por que, são contra a reforma agrária e
os trabalhadores de modo geral. Em compensação, não têm a mínima condição de
enfrentar a ameaça de um inimigo externo.
Se ainda almejam merecer o crédito público, os
militares não devem perder esta oportunidade de autocrítica, e pedir desculpas
ao contribuinte.
Se o governo tem ciência da bomba de retardo sobre
a qual se senta, não pode perder esta oportunidade, de fragilidade momentânea
do militarismo, para tentar pôr a casa em ordem. E para isso não dispõe de
muito tempo.
***
Perseguição
a um soldado legalista – No momento, apenas
um oficial brasileiro está, de fato, ameaçado de expulsão da caserna, e não é o
valete do paraquedista. Trata-se do digno e combatente coronel Marcelo Pimentel
que responde a quatro processos disciplinares e um IPM, este aberto em nosso
governo pelo qual lutou, como lutou sempre pela dignidade das instituições
militares.
A perseguição começa sob o comando dos asseclas de
Bolsonaro, e prossegue agora, em nosso governo. O ministro José Mucio Monteiro
Filho, faz ouvidos de mercador. Alguém, com acesso ao Alvorada, precisa levar
essa ignominia ao conhecimento do presidente Lula.
Antirracismo
na mira – A pistolagem jornalística segue sendo um
serviço que as grandes empresas de comunicação oferecem à classe dominante, de
que são porta-vozes, e aos grupelhos beligerantes que travam batalhas
intestinas pelo micropoder, na seara da pequena política.
O alvo do momento é Anielle Franco, ministra da
Igualdade Racial (que uma articulista reacionária chegou a acusar de
deslumbramento).
Fará mal o alto comando do Governo Lula se não
tratar de defender da fritura em curso a ministra e o recém-criado Ministério,
os quais, em meio a políticas de austericídio, privatização de presídios e
cooperação com fundações empresariais suspeitas, entre outros opróbrios, ainda
mantêm vivo um pouco daquela esperança equilibrista que se renovou com a
belíssima subida da rampa, em 1º de janeiro passado.
Ø A extrema direita se recompõe em todas as frentes. Por Moisés Mendes
Trabalhadores e estudantes estão voltando a fazer o
que sempre fizeram, mas em tempos idos. Estão fazendo greves e paralisações
para defender direitos e afrontar podres poderes políticos, econômicos e
acadêmicos.
Tem gente jovem estreando em atos que haviam
desaparecido do cenário brasileiro nos últimos anos. Os calouros talvez sejam a
maioria.
Mas há ao mesmo tempo, enquanto a democracia se
restabelece, o início de um movimento de refluxo da direita e do fascismo. Em
toda parte, há um fascista à espera de protagonismo. Na Unicamp, um estudante
foi agredido por um professor armado com faca e spray de pimenta.
Poderia ser um caso pontual, mas não no contexto em
que o extremismo começa a se recompor, depois dos traumas da derrota na eleição
e do fracasso do golpe. O fascismo está sequelado, mas vivo e usa faca.
Uma faca no bolso de um professor universitário
branco não é a mesma faca no bolso de um homem qualquer no centro de São Paulo
ou num arrastão nas praias do Rio.
A extrema direita instruída e precavida, pronta para
dizer que se mantém intacta, carrega faca e spray de pimenta num campus
universitário. Para enfrentar estudantes perigosos, principalmente os negros,
como é o rapaz atacado pelo esfaqueador.
Os mais otimistas, que viam a democracia andar
somente para a frente desde a posse de Lula, são confrontados com a realidade
pós-8 de janeiro.
A cada avanço com ações efetivas, incluindo as
institucionais, haverá a reação de alguém armado com algo que pode ser bem mais
do que uma faca. Há sinais de que a extrema direita se recompõe e testa as
iniciativas de uma nova fase proativa.
Alguns exemplos. O centrão no Congresso percebeu
que estava sendo bonzinho e que pode e vai tirar mais de Lula agora e talvez
muito mais logo adiante.
Inicia-se uma campanha, liderada pela Folha de S.
Paulo, para tentar difundir de novo a falsa equivalência entre os métodos e as
decisões de Alexandre de Moraes e de Sergio Moro.
Há na Folha, pela sequência de textos, um movimento
organizado para dar uma falsa consistência à tese de que Moraes faz contra os
golpistas e muambeiros o mesmo que Moro fazia em Curitiba contra empresários e
seus executivos para pegar Lula.
A CPI do 8 de janeiro no Congresso pode chegar ao
fim, agora em outubro, com a conclusão de que foi menos consequente do que a
CPI da Covid e de que pouco ou nada acrescentou ao que o Supremo já fez no
enquadramento do golpismo.
A CPI não teve força política para ouvir Braga
Netto. Foi tratada com desdém pelo ministro Nunes Marques, que anulou a quebra
de sigilo do policial rodoviário bloqueador de estradas Silvinei Vasques.
Seu colega de STF André Mendonça tenta fazer valer
a tese de que alguns julgamentos de manés e terroristas devem ser presenciais
no Supremo, o que pode fazer com que o desfecho de centenas de processos seja
praticamente inviabilizado no médio prazo.
Não há mais uma linha, uma só, nos jornalões sobre
a corrupção que se espalhou durante a intervenção de Braga Netto em 2018 no
Rio. A pauta sumiu da grande imprensa.
Sumiram das pautas dos jornais as rachadinhas dos
Bolsonaros e qualquer referência aos crimes da família. Sumiu tudo que tenha
relação com os crimes das gangues comuns dos Bolsonaros e ficaram só, nos
cantinhos, os desmandos das quadrilhas qualificadas.
Espalha-se pelos jornais a especulação, atribuída à
gente do governo, segundo a qual pessoas próximas a Lula desconfiam da
contribuição da delação de Mauro Cid para que Bolsonaro seja finalmente
alcançado pelo sistema de Justiça.
Foram reativadas, na carona da reação ao voto de
Rosa Weber pela descriminalização do aborto, todas as pautas de costumes do
bolsonarismo.
O fascismo levou as questões moralistas, e não só
as de família, para a eleição dos conselhos tutelares, que podem ter sido
tomados de novo por fiéis das igrejas de Bolsonaro.
Só agora, quando Lula está no poder e fará suas
escolhas, Rodrigo Pacheco volta a tocar a corneta dos que defendem a fixação de
um tempo para os mandatos de ministros do Supremo.
Vozes estariam pedindo calma ao Planalto na
recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos da ditadura, prevista para
outubro, para que não incomodem os militares.
No meio disso tudo, enquanto a polícia continua
matando negros, pobres e crianças, um professor da Unicamp anda com faca e
spray de pimenta no campus e pula em cima de um estudante.
O nome do professor? A Unicamp não revela, para
proteger seu corpo docente, porque um professor fascista é antes um professor.
A direita que usa arma branca também é acadêmica e com doutorado.
Fonte: Viomundo/Brasil 247

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