Reconhecimento facial no Paraná impõe monitoramento de emoções em
escolas
No ano passado, professores da rede de ensino
pública do Paraná foram surpreendidos com o que eles chamaram de “trambolho”:
um pedestal acoplado a uma televisão, computador, teclado, mouse, microfone e
webcam. Receberam a orientação de que essa estrutura deveria ser posicionada em
local privilegiado da sala de aula, ao lado do professor.
O nome dado pela Secretaria de Educação do estado é
“Educatron”, mas, além de trambolho, os professores também o chamam de
“deceptron” por causa das várias falhas e erros no sistema.
Oficialmente, o Educatron serve para passar
conteúdos multimídia e fazer videochamadas com outros professores e
palestrantes. Na prática, porém, ele também é usado para fazer o reconhecimento
facial dos alunos, substituindo a tradicional chamada dos nomes dos alunos por
ordem alfabética.
O reconhecimento facial foi implantado nas 1,7 mil
escolas do estado gradativamente desde o ano passado. Além do Educatron, os
professores também usam os próprios celulares pessoais para tirar fotos da
turma e enviar para o sistema identificar os rostos.
Mais do que apenas identificar os alunos presentes
na sala, a ideia também era que o sistema reconhecesse expressões faciais dos
alunos, como uma forma de medir como eles estão se comportando.
Um projeto piloto foi implantado em uma escola
cívico-militar do estado no início do ano. Os alunos foram monitorados durante
o tempo do experimento com a finalidade de gerar gráficos de atenção e
dispersão – ou seja, medir a qualidade das aulas por meio das emoções
demonstradas pelos estudantes.
Os dados são de um relatório inédito, obtido pela
Agência Pública, feito por pesquisadores ligados à Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e à Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR) sobre o
reconhecimento facial nas escolas do Paraná. Segundo a pesquisa, o
monitoramento de emoções foi realizado em 10 salas da escola cívico-militar
Ermelino de Leão, no Bairro Boa Vista, de Curitiba.
O relatório aponta fragilidades do sistema de
vigilância, entre elas o armazenamento dos dados pessoais dos estudantes e
professores, que segundo os pesquisadores fere a Lei Geral de Proteção de Dados
(LGPD). Além disso, eles questionam a eficácia do modelo de monitoramento
comportamental na prevenção de violência em sala de aula e ainda racismo dos
algoritmos.
Um edital lançado pela Tecnologia da Informação e
Computação do Paraná (Celepar) em parceria com a PUC-PR, em 2021, selecionou
startups para, entre outras áreas, fornecer uma solução de “monitoramento
comportamental de alunos, por meio de vídeo e voz, utilizando inteligência
artificial para coleta, processamento e classificação de emoções”.
A Celepar confirmou aos pesquisadores a realização
de testes a partir da biometria facial para o monitoramento comportamental dos
alunos com a câmera Educatron. Além das salas de aula, também houve um teste
com imagens captadas de uma torre fora do colégio usando o software SecurOS, da
empresa israelense Intelligent Security Systems (ISS).
O software faz parte de um projeto que implantou
câmeras de segurança em torres de escolas utilizando inteligência artificial
para medir comportamentos que possam representar riscos à integridade dos
alunos e servidores, segundo o relatório.
A Celepar informou aos pesquisadores que os testes
não foram eficazes por limitações de captação das câmeras. Não está claro,
porém, se o governo irá persistir com os testes.
Os autores da pesquisa citam que há diversos
estudos (como da neurocientista Lisa Feldman Barrett) que mostram que uma
pessoa não necessariamente terá expressões faciais de raiva ou agressividade
antes de cometer algum ato violento, por exemplo. Por outro lado, um aluno
classificado pela inteligência artificial como “violento” poderá ter prejuízos
na sua vida escolar e no mercado de trabalho se for classificado erroneamente
como “violento”.
Além disso, os sistemas de reconhecimento facial
“tendem a interpretar expressões faciais de pessoas brancas e negras de modo
distinto, atribuindo sentimentos negativos com maior frequência em pessoas
negras”, segundo o relatório.
Como os algoritmos são feitos e treinados por
pessoas, eles tendem a reproduzir discriminações que já existem na sociedade.
Um estudo de 2019 da Rede Observatórios de Segurança, por exemplo, mostrou que
90,5% dos presos por reconhecimento facial no Brasil eram negros.
Outra questão é que, apesar de a Celepar ter
desenvolvido o sistema de biometria, a empresa privada Valid ganhou uma
licitação para armazenar os dados biométricos dos alunos ao custo de R$ 4,5
milhões. Uma das especificações do edital era a necessidade de “detecção de
emoções”.
A Valid é uma das maiores empresas do país no ramo
de documentação. Ela chegou a questionar, durante a fase da licitação, se seria
mesmo necessário armazenar dados de emoção porque eles não seriam fundamentais
para a identificação biométrica. E a resposta da Celepar foi de que era, sim,
necessário, “dado o interesse de futuras análises estatísticas”.
Após ganhar o processo licitatório, a Valid criou
um banco de dados biométricos em forma de hashes (um representante alfanumérico
criptografado) das fotos dos alunos. As imagens foram tiradas por servidores
das escolas, que foram orientados a coletar três fotos de cada estudante – uma
de frente e uma de cada lado do perfil.
De acordo com a Celepar, as imagens ficam
exclusivamente em sua posse, são armazenadas em seu servidor e em nuvem não
especificada. A transferência de dados para a Valid ocorre em fluxo contínuo,
de modo que as imagens dos alunos não ficariam retidas pela empresa.
Henrique Kramer, pesquisador que fez parte do
estudo, lembra que, no ano passado, houve mais de 300 mil disparos de SMS com
mensagem de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro e contra o Supremo Tribunal
Federal, em plena campanha eleitoral, usando dados da Celepar.
“Naquela oportunidade ficou evidente que bases de
dados da Administração pública estadual não foram adequadamente protegidas e
dados como números de celulares foram utilizados por uma empresa contratada
pelo estado do Paraná de forma inadequada. Ao que sabemos esse caso está ainda
sob investigação, mas a falta de proteção à dados pessoais foi flagrante”,
afirmou.
Pais de estudantes também se mostram preocupados..
“Eles não pediram a minha autorização para tirar foto do meu filho. Pra fazer o
reconhecimento significa armazenar a imagem dele em algum lugar que eu não sei
onde é”, diz Claudia Mendes Campos, mãe de um aluno do 7° ano do Fundamental II
do Colégio Estadual do Paraná.
“Meu filho reclama bastante que o sistema demora
muito e não reconhece os rostos de alguns alunos.”, afirma. “E os professores
têm que fazer chamada em cada aula, mesmo quando é geminada, então é muito tempo
gasto. Era para economizar tempo, mas por um lado é uma invasão, e por outro
perda de tempo.”
• Reconhecimento
facial nas escolas brasileiras
O uso de reconhecimento facial em escolas está
crescendo rapidamente no país. Um relatório de março deste ano do grupo de
pesquisas sobre direitos humanos e tecnologia Internetlab apontava o uso do
recurso em um estado (Tocantins) e 14 municípios.
O Paraná ainda não havia oficialmente lançado o seu
sistema, então, de lá pra cá, mais 399 cidades foram adicionadas à lista. “Há
um movimento tão forte pelo uso dessa tecnologia que nosso levantamento se
desatualizou rápido”, disse uma das coordenadoras do estudo, Clarice Tavares.
O pesquisadores notaram que as justificativas para
o uso do reconhecimento facial são bem parecidos. O argumento geral é de
encurtar o tempo gasto com chamada (de cinco minutos passaria para um), evitar
evasão escolar (já que o sistema pode mostrar quem está faltando muito e, se
for o caso, notificar o Conselho Tutelar), e aumentar a segurança dos alunos.
O relatório questiona que, embora estas questões
sejam legítimas – são, afinal, problemas históricos das escolas brasileiras –,
o reconhecimento facial pode não ser a melhor maneira de lidar com elas.
“Esta tecnologia não é necessariamente capaz de
resolver os problemas, e ainda pode trazer novos problemas. Há riscos sérios de
vazamento de dados sensíveis e falta de acurácia”, diz Tavares. Ela cita que o
sistema muitas vezes não é adaptado a pessoas com deficiência (por exemplo,
cadeirantes ou crianças autistas que não olham para a câmera), e os erros de
identificação de pessoas negras são muito comuns.
“Se uma criança está sendo identificada de forma
errada, pode impactar com corte do programa Bolsa Família, por exemplo”, afirma
a pesquisadora.
“A gente sabe muito pouco como as empresas de
segurança/vigilância estão tratando esses dados. No caso de pessoas já
marginalizadas, pretas, pobres, um tratamento irregular tem um peso muito
negativo. Tanto de autonomia dos dados, como na vida prática. Ou seja, essas
pessoas podem levar desde faltas erradas até terem os seus dados compartilhados
com outros órgãos, como segurança pública, para identificar suspeitos”,
continua.
Além disso, o sistema costuma operar em
equipamentos velhos, desatualizados e com baixa capacidade. Professores do
Paraná, por exemplo, relataram à Agência Pública que as câmeras têm uma
resolução tão baixa que não conseguem captar os rostos dos alunos sentados
atrás da segunda fileira – ou seja, só os 10 alunos sentados na frente são
identificados.
“Nunca funciona porque a câmera é ruim e as salas
são mal iluminadas. Em muitas faltam lâmpadas”, disse um docente de Curitiba
que não quis ser identificado. Com os erros frequentes, ele parou de usar o
recurso e só faz a chamada manual. Diz que, por enquanto, isso ainda é
possível, mas há uma cobrança da diretoria e da Secretária de Educação para
obrigar o uso do reconhecimento facial em todas as aulas.
“E o pior é que dificilmente esse reconhecimento
facial consegue reconhecer alunos negros”, ele continua. “Só não virou um
constrangimento porque nós ainda temos a opção da chamada manual.”
>>>> Aplicativos no lugar dos livros
O processo de informatização da rede escolar
paranaense foi iniciado pelo ex-secretário de educação Renato Feder durante o
primeiro mandato do governador Ratinho Junior. Ele assumiu a pasta do governo
de São Paulo, à convite do governador Tarcísio de Freitas. Ele chegou a ser
cotado para o Ministério da Educação durante o governo de Jair Bolsonaro.
Defensor dos meios digitais em sala de aula, Feder
é um dos fundadores da Multilaser, gigante que vende equipamentos digitais e
tem contratos milionários com o poder público. Só com o governo de São Paulo, a
empresa teve contratos de R$ 192 milhões com a venda de tablets e computadores
com a pasta que ele passou a comandar. Os contratos foram assinados antes da
posse na secretaria, mas ele permanece como acionista da empresa por meio de
uma offshore nos Estados Unidos.
Neste ano, Feder se envolveu em polêmica ao decidir
que São Paulo iria deixar o Programa Nacional do Livro Didático, do governo
federal, e que alunos a partir do 6º ano usariam apenas material digital. Uma
investigação aberta pelo Ministério Público e o peso da opinião pública, que
criticou a medida, fizeram o governo voltar atrás.
O substituto de Feder no governo paranaense é Roni
Vieira, que era o seu braço-direito durante a gestão e deu continuidade à
política de trazer equipamentos tecnológicos e informatizar a sala de aula.
Hoje, os alunos têm que usar mais de 20 aplicativos
para acessar conteúdo das matérias escolares e fazer lição de casa. Eles foram
implantados de forma gradual desde o ano passado em disciplinas básicas, como
português e matemática. Nas redes sociais, estudantes reclamam do excessivo número
de plataformas. Um vídeo do TikTok, com mais de 70 mil curtidas, mostra uma
fadinha se desesperando frente a uma grande quantidade de nomes de aplicativos.
A Secretaria de Educação do estado diz que, mesmo
se o aluno não tiver internet em casa, todas as escolas têm acesso à rede
Wi-Fi, o que evitaria problemas, mas um relatório da APP Sindicato, associação
ligada aos professores do estado, mostra quea internet nas escolas é ruim e a
falta de acesso em casa prejudica o processo de aprendizagem.
A pesquisa mostra que 93% dos professores
paranaenses já usam os equipamentos tecnológicos enviados pela secretaria, mas
seis em cada 10 avaliam que o governo não está correto em priorizar o uso de
plataformas digitais nas salas de aula.
Profissionais de ensino concordam que é importante
os alunos se aprofundarem no mundo da tecnologia, algo que é imprescindível no
mundo de hoje. Mas, argumentam que deveria haver melhor estrutura nas escolas
para comportar uma mudança tão drástica.
Um dos principais pontos levantados pelos docentes
é a falta de diálogo. “Não teve conversa, nenhuma audiência pública. Começou um
projeto-piloto nas escolas cívico-militares e logo passou para todo o resto.
Sem explicar direito, sem uma atividade de formação. Enfiaram goela abaixo”, afirma
Margleyse dos Santos, secretária executiva educacional do sindicato.
Sobre o reconhecimento facial, segundo o
levantamento, 84% dos professores consideram o sistema pior do que a chamada
manual. “É sempre uma guerra com os alunos, eles odeiam porque nunca dá certo e
demora muito tempo”, disse uma professora de Pato Branco.
O relatório dos pesquisadores da UFPR e da PUC-PR
ainda aponta que o problema é bem mais complexo do que corriqueiros erros nos
dispositivo. Segundo o documento, há inconsistências preocupantes na maneira
como informações sigilosas – dados pessoais e a imagem pessoal – de alunos
menores de idade estão sendo coletados, armazenados, tratados e eventualmente
descartados pelo governo do estado.
Os pesquisadores apontam que não há indícios de o
governo do estado ter feito um estudo de impacto sobre a implantação da
tecnologia, e que a sua aplicação fere a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
em suas normativas sobre o tratamento de dados de crianças e adolescentes.
No Brasil, a LGPD estipula que o consentimento para
o uso dos dados de crianças e adolescentes deve ser dado por pelo menos um dos
pais ou responsáveis legais. Mas, no Paraná, os próprios professores ou
diretores das escolas aceitam a política de privacidade em nome dos alunos.
Em uma orientação enviada aos professores em maio
deste ano, a Secretaria de Educação diz que, em caso de negativa do uso da
imagem, “a administração pública pode tratar dados sem consentimento para
implantação de políticas pública e de segurança”, e que o uso de dados
biométricos já havia sido informados no ato da matrícula.
Alei permite o uso dos dados sem consentimento
apenas em casos em que o seu tratamento seja indispensável para uma política
pública.
“As crianças e suas famílias precisam estar cientes
de que os dados biométricos faciais são dados sensíveis, de tudo o que será
feito com eles ede que podem se negar à concessão desses dados. E até onde
pesquisamos, isso não ocorreu”, diz Carolina Israel, professora da UFPR e
integrante do Núcleo de Coordenação da Rede de Pesquisa em Governança da
Internet.
A ferramenta Edutech não tem uma política de
privacidade expressa em seu site, e a do fabricante, Alura, diz claramente que
os dados pessoais dos usuários podem ser compartilhados com empresas de
publicidade e marketing.
“Se a Política de Privacidade da Alura se aplica à
sua versão paranaense chamada Edutech, temos uma política pública de ensino que
envolve coleta de dados de estudantes para perfilização voltada à propaganda
direcionada e a possibilidade de transferência de dados dos estudantes para
solo internacional”, afirma Israel.
Fonte: Por Amanda Audi, da Agencia Pública
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