“Passamos da etapa do aquecimento, estamos em uma emergência
climática”, diz professor da USP
A crise climática, que vem se manifestando de
diversas formas nos últimos meses em todo o planeta, também tem afetado o clima
no Brasil. Nas últimas semanas, enquanto a região Sul vem sofrendo com muita
chuva provocada por ciclones extratropicais, o restante do país tem atravessado
ondas de calor extremo, com temperaturas recordes para esse período do ano no
Brasil. As consequências da crise climática no planeta e do fenômeno El Niño no
Brasil são o tema desta entrevista com Paulo Artaxo, professor titular do
Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês).
>>>> Eis a entrevista.
• A Agência
Americana Oceânica e Atmosférica (NOAA) apontou, no dia 22 de setembro, que há
95% de chance de 2023 estar entre os dois anos mais quentes já registrados na
Terra. Isso ocorre por conta do atual El Niño?
O principal fator é o aquecimento global, não é o
El Niño. Este é um fenômeno natural que, em conjunto com as mudanças
climáticas, está intensificando os fenômenos extremos neste ano. O clima do
planeta está aquecendo e esse aquecimento favorece e intensifica eventos
climáticos extremos, como essas ondas de calor que estamos vendo em São Paulo,
as grandes inundações que estamos vivendo no Rio Grande do Sul, e assim por
diante. O próprio El Niño está sendo intensificado pelas mudanças climáticas,
pois ele é alimentado essencialmente pela temperatura marinha na região do
Oceano Pacífico e essa temperatura está um grau, um grau e meio mais alta do
que seria o normal. Em resumo, os eventos extremos atuais para o planeta como
um todo, incluindo o calor recorde no Brasil, são um efeito sinergístico entre
o El Niño e o aquecimento global.
• A
NOAA também apontou que o mês de agosto de 2023 foi o mais quente da história,
com temperatura média global 1,25 graus Celsius acima da média do século 20.
Você avaliava ser possível chegarmos a esse número tão cedo?
Os modelos climáticos estavam prevendo que a
temperatura do planeta iria atingir 1,25 graus Celsius mais altos do que no
século retrasado apenas na década de 2040 e, na verdade, já estamos vendo isso
ocorrer. Isso ocorre devido à intensificação que estamos observando nas
mudanças climáticas globais, que ficam mais intensas e geram impactos cada vez
mais frequentes. Não há a menor dúvida de que esse calor recente atual é uma
das consequências disso.
• O
agosto de 2023 também foi o mais quente na região do Ártico, além de ser o
quarto mês consecutivo de menor extensão ou cobertura de gelo marinho já
registrada na Antártida. É possível afirmar, diante desses dois fatores, que
caminhamos para impactos ainda maiores nas correntes marítimas e, por
consequência, no clima?
Não há a menor dúvida. Já há documentação
científica de ótimo nível mostrando que a articulação meridional das correntes
com o Atlântico Norte está se enfraquecendo, por causa de mudanças na
salinidade e no gradiente de temperatura, que provocam essas correntes
oceânicas e são grandes transportadores de energia e de calor no nosso planeta.
Então, o principal efeito disso é a intensificação das mudanças climáticas, em
particular no Atlântico Norte.
• Observando
as condições globais de consumo de combustíveis fosseis, há alguma chance de
ficarmos no chamado "limite seguro" de aumento de 1,5 graus Celsius
para o aumento da temperatura global?
Com as emissões de gases de efeito estufa que
geramos hoje, incluindo 62 bilhões de toneladas de CO² a cada ano na atmosfera,
estamos caminhando para uma trajetória de aquecimento global da ordem de 2,7
graus Celsius. Se não houver nenhuma redução na emissão desses gases, como foi
preconizado no Acordo de Paris, é para essa ordem de aquecimento que o planeta
está indo.
• Isso
ocorreria em quanto tempo, a partir dos modelos de cálculo existentes
atualmente?
Os modelos existentes atualmente indicam que
atingiremos 2,7 graus Celsius de aquecimento global, provavelmente, no início
do meio da segunda metade deste século, ou seja, entre 2050 e 2070. Ressalto
que isso dependerá de o quanto conseguiremos reduzir as emissões ao longo desta
e da próxima década.
• E
para conseguirmos reduzir, outras formas de habitar o planeta, como a de
indígenas, tem algo a nos ensinar?
Sim, mas não é possível e muito menos viável
tentarmos reproduzir o modo de vida de populações indígenas para uma população
global de oito bilhões de pessoas, a maioria já vivendo em grandes áreas
urbanas do nosso planeta. Não é possível fazer isso, por razões óbvias. Então,
temos que inventar e criar novas maneiras de construir cidades, que sejam mais
sustentáveis do que as que existem hoje. Novas formas de construção, de consumo
de energia, transporte, produção de alimentos, distribuição de água, de tudo.
• Isso
lembra uma declaração recente do secretário-geral da ONU, António Guterres, de
que entramos numa era de "ebulição global". Foi uma declaração de
apelo político para esse cenário que você cita ou há aderência com o que ocorre
no plano físico-químico do planeta? A Terra está mesmo em ebulição ou ainda
estamos em "banho maria"?
Eu creio que o que está acontecendo no Brasil neste
ano e também outros fenômenos extremos que ocorreram nos Estados Unidos, na
Europa, na China e na Índia, demonstram claramente, e não há qualquer
possibilidade de erro no que eu vou falar, que entramos efetivamente no que
poderíamos chamar de emergência climática ou de ebulição global. Passamos da
etapa do aquecimento. É isso que o secretário geral da ONU deixou claro,
entramos em uma nova fase que colocará a mudança do clima no planeta em um
estágio que efetivamente coloca em risco muitas das nossas estruturas
socioeconômicas - indústria, agricultura, a vida nas cidades, entre outras.
Todas as áreas começam a sofrer uma nova magnitude de impacto.
• Quase
ao mesmo tempo da declaração de Guterres, a Organização Meteorológica Mundial
(OMM) afirmou que estamos dando um “mergulho no desconhecido” ao alertar sobre
o impacto causado pelo El Niño. Os modelos matemáticos conhecidos dão conta da
realidade atual ou a própria ciência precisará reexaminar suas fórmulas para
relatar os acontecimentos climáticos? O IPCC faz essa avaliação?
As equações e contas que estão embutidas nos
modelos climáticos são continuamente reformuladas, conforme novos artigos
científicos são publicados e novas evidências começam a ficar claras. Nós
atualizamos, permanentemente, os modelos climáticos e parâmetros, no que
chamamos de parametrização dos processos de controle do clima do planeta.
• Sobre
o calor recente no Brasil, há o recorte de que em alguns locais ele veio
acompanhado por uma baixíssima umidade relativa do ar, com riscos para a saúde
humana. No Rio de Janeiro, por exemplo, que é uma cidade litorânea, em alguns
bairros, a umidade relativa chegou a 27,6% na última semana. Há algo que
explique o casamento entre esses dois fatores?
É preciso analisar caso a caso, mas eventos de
baixa umidade relativa do ar em áreas urbanas, geralmente, são causados pela
falta de arborização, porque a evapotranspiração das árvores é reconhecida como
o maior fator de regulagem da umidade relativa do ar em áreas urbanas. Então,
se você acabar com a área verde, por consequência, isso fará com que a umidade
relativa do ar diminua. Mesmo em locais onde já existe baixa umidade relativa
do ar, como Brasília, se ocorrer a abertura de áreas verdes, isto ajudará na
regulação do clima. Então, precisamos olhar caso a caso o que ocorre em cada
localidade.
• Outro
registro, ocorrido no dia 20 de setembro, foi o de que Manaus (AM) registrou
146 pontos no índice de qualidade do ar, considerado altamente nocivo para a
saúde, por causa da fumaça decorrente de queimadas na região. O El Niño pode
tornar essa situação pior do que em 2022, quando a fumaça das queimadas na
Amazônia chegou a São Paulo?
Não, isso não tem associação com o El Niño, mas com
o ar mais seco sobre a Amazônia, que é também causado pelas mudanças
climáticas. A precipitação na região da Amazônia está diminuindo rapidamente e
esta queda na precipitação favorece a incidência de queimadas, que também estão
associadas ao desmatamento. Precisamos reduzir o desmatamento para reduzir as
emissões de queimadas. Essencialmente, a tarefa do Brasil é zerar o
desmatamento da Amazônia até 2030, como foi compromissado com a comunidade
internacional. Com isso, também eliminamos as queimadas na região amazônica.
Isso é possível.
Diante de tantos sinais, já é possível afirmar que
viveremos em 2024 o verão mais quente da história do Brasil?
Isso não é possível de ser afirmado, ainda. O clima
é caracterizado por uma variabilidade muito grande, o máximo que podemos dizer
é que há indícios de que o próximo verão será mais quente pela persistência do
El Niño.
• O
senhor defendeu, em entrevistas recentes, a criação de um sistema de governança
global para estabilizar o clima. Poderia descrever melhor sua proposta?
A questão da governança global é das principais,
quando abordamos o desafio das mudanças climáticas. Evidentemente, o único
órgão de que dispomos hoje é a ONU, que não foi feita para lidar com a questão
das mudanças climáticas globais. A ONU foi feita no pós-guerra, para dividir o
mundo entre as potências que ganharam a Segunda Guerra e, com isso, tentar
construir um sistema mais estável, impedindo uma terceira guerra mundial. A ONU
foi criada para isso e não para lidar com a construção de um projeto que dê
conta do desafio das mudanças climáticas globais. O presidente Lula defendeu a
reforma da ONU, o próprio Guterres também defendeu a reforma da ONU para que
ela possa tratar de problemas tão graves quanto a desigualdade social, a
concentração de renda e as mudanças climáticas.
• Como
o senhor avalia o chamado ”Direito ao Desenvolvimento”, que está no discurso de
países do Sul Global como justificativa para o uso de fontes de energia como
carvão e petróleo?
Evidentemente, os países do Sul Global devem ter o
direito ao desenvolvimento, mas um desenvolvimento que precisa ser baseado não
nos erros cometidos pelos países desenvolvidos, o que basicamente nos levou a
implementar modelos de desenvolvimento que geram concentração de renda e uso
excessivo dos recursos naturais. Então, os países em desenvolvimento têm uma
boa oportunidade, na verdade, de construir uma sociedade mais justa e
igualitária e eficiente no uso de energia e dos recursos naturais.
• Qual
sua avaliação sobre iniciativas de judicialização climática, como a do governo
do Estado da Califórnia de processar empresas petroleiras e a de jovens
europeus que levaram 32 países à Corte Europeia de Direitos Humanos para que os
mesmos elevem os cortes de emissões? Acha que processar agentes políticos e
econômicos é uma ação justa diante do aquecimento global?
Isso é importante, faz todo o sentido e deveria ser
ampliado significativamente, porque, claramente, nosso sistema político não
está funcionando para resolver, de fato, as questões associadas às mudanças
climáticas. Se os governos não estão funcionando e as indústrias querem
continuar nessa mesma trajetória, só resta à sociedade usar o sistema
judiciário para, com isso, tentar, efetivamente, mudar a trajetória que estamos
seguindo.
• O
Congresso brasileiro debate a implementação da tese do marco temporal, mesmo
após decisão contrária do STF, bem como um novo projeto de lei (PL 2.159/2021)
que afrouxa o licenciamento ambiental. Por que o mundo da política está tão
dissociado da Ciência, em temas que geram impacto no clima?
A nossa democracia sofre um processo de degradação
muito avançado. Passamos por uma fragilização do processo democrático não
apenas no Brasil, mas na maioria dos países, o que faz com que os governos não
representem, efetivamente, os interesses de suas populações e defendam muito
mais, por exemplo, os interesses da indústria do petróleo, a invasão de terras
indígenas, os ilícitos que dominam o processo de ocupação da Amazônia e assim
por diante. Precisamos trabalhar e melhorar a qualidade de nossa democracia.
• A
população está suficientemente informada sobre os riscos do aquecimento global?
De que forma cientistas podem utilizar momentos como esse – de calor extremo –
para conscientizar as pessoas?
Não há a menor dúvida de que informar a população
sobre os riscos atuais e potenciais das mudanças climáticas é tão importante
quanto o de produzir a ciência que embasa essas conclusões. É fundamental que a
área de comunicação, principalmente, os jornalistas possam se engajar nessa
tarefa, já que é uma tarefa do jornalismo e não da ciência. Os cientistas são
treinados para produzir ciência, não para comunicar essa ciência para o público
em geral, esta é uma das tarefas da imprensa.
Fonte: Entrevista com Paulo Artaxo, para Paulo
Schueler, publicada por EPSJV/Fiocruz
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