“Não se podem manter na jaula 2 milhões de pessoas. Israel não entendeu
isso", afirma professor italiano
A Guerra de Gaza. L'Unità discute o assunto com
Lucio Caracciolo, diretor da Limes, a mais respeitada revista de geopolítica
italiana.
>>> Eis a
entrevista.
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O 7 de outubro de 2023, o
“11 de setembro de Israel”, representa realmente um divisor de águas definitivo
entre um antes e um depois do conflito Israel-Palestina e o Médio Oriente?
Eu diria que sim. Vamos relembrar o primeiro
divisor de águas que foi 2005, ou seja, a cessão da Faixa de Gaza por Sharon aos palestinos, pensando que seria a Autoridade Nacional Palestina a
governar Gaza, de acordo com Israel.
Nessa perspectiva, e com tais propósitos, teria
sido também uma forma de dizer ao mundo: vejam, Israel também sabe abrir-se aos palestinos. Na realidade, estavam devolvendo algo impossível de
gerir, como o Egito bem sabia quando, nas conversações com Begin que levaram à paz de Camp David entre Israel e Egito, Sadat teve o cuidado de não
assumir a Faixa de Gaza e os seus habitantes.
O plano de Israel estava claro há tempo: vamos devolver Gaza e, nesse interim, vamos
congelar por tempo indeterminado a questão
palestina, continuamos a construir assentamentos, afogamos a ANP em
dinheiro assim a mantemos sob controle, e o problema está resolvido...
·
Em vez disso, professor
Caracciolo?
O que talvez não perceberam bem foi, em primeiro
lugar, que não se pode manter uma população numa jaula por tempo indeterminado.
Mais de dois milhões de pessoas espremidas num espaço estreito, naquelas
condições, independentemente de qualquer crença política, religiosa ou
ideológica, no final aquele projeto de contenção não funciona.
Estoura. Explode. Em segundo lugar, Israel confiou em demasia na
chamada “manutenção”....
·
Que significa?
Simplificando, damos-lhes apenas o mínimo necessário
para sobreviver sem incomodar demais. Quando, como tem acontecido, a raiva
transborda, pedem dinheiro e lançam alguns mísseis, jogamos sobre eles a ira de
Deus sem entrar em Gaza e
em uma semana ou duas a questão se resolve. Tudo isso durou de 2005-2006 até 7
de outubro passado.
A verdadeira questão é entender por que aconteceu o
que aconteceu no dia 7 de outubro.
·
Que explicações são
possíveis?
Uma explicação pé-no-chão, mas com elementos de
verdade, é que a certa altura, de tanto forçar, o mecanismo não funciona mais.
A segunda leitura é que algum mecanismo interno ao Hamas e externo - o Irã ou
algum outro ator - decidiu que era necessário dar um sinal, entre outros, a
israelenses e sauditas para que não se aproximassem demais e não formalizassem,
porque é disto que se trata e nada mais, um acordo sigiloso, que todos sabem
que existe já há bastante tempo, entre Israel e o Reino
Saudita, isolando ainda mais o Irã.
·
Quanto está presente dos
meses tumultuados, de revolta interna que dividiu o país em dois, na base ou,
de toda forma, como elemento não secundário do clamoroso desastre de 7 de
outubro?
É uma pergunta mais do que justa que, no entanto,
pressupõe o fato de que na realidade, para além das divisões internas do Hamas, entre aqueles que queriam
eliminar Israel e
aqueles que queriam negociar uma espécie de convivência beligerante, mas sem se
agredirem definitivamente, se você acha que seu inimigo, Israel, entrou em uma
crise definitiva, então provavelmente quem leva a melhor é a facção que diz:
agora ou nunca, vamos tentar eliminar Israel, ou melhor, vamos ajudar Israel a
eliminar-se a si mesmo, porque não é que o Hamas possa vencer Israel, mas
Israel pode vencer Israel. Naquela altura, alguém, interno e externo, poderia
ter-se tornado ganancioso e pensado que, ao atrair Israel para a armadilha
de Gaza, no final os
palestinos acabariam por colocar Israel em crise. Israel está numa crise muito
séria, podemos ver isso por muitos sinais também no front das forças armadas e
da inteligência. Recordamos a atitude de muitos líderes militares, sem falar
daqueles da inteligência, durante os meses, que nunca terminaram, de protesto
contra Netanyahu, e também do fato de muitos reservistas não se
apresentaram.
Depois do 7 de outubro houve uma condensação em
torno da bandeira que, no entanto, certamente não curou as feridas. Não
esqueçamos que aqueles que neste momento comandam a guerra contra o Hamas em Israel são senhores que sabem que
em 99% dos casos se reformarão no dia seguinte.
E isso não ajuda muito na batalha.
·
No local, a situação
evolui de hora em hora. A invasão de Gaza parece uma questão de dias se não
horas. Qual é a estratégia militar de Israel?
Uma guerra em três fases. A primeira, em curso
desde 8 de outubro, é limpar com bombardeios aéreos a Faixa. Mais ou menos 35-40% dos
edifícios em Gaza já foram atingidos, e esperamos que também algumas
infraestruturas do Hamas.
A segunda fase prevê incursões, acompanhadas de uma
batalha em todas as dimensões: cibernética, espacial, marítima... Os
israelenses entrarão com força em Gaza,
mas não será uma operação de massa. Será uma operação direcionada, pelo menos
nas intenções. Visando, por exemplo, destruir mísseis, que em perspectiva
representam o principal problema para Israel. Prender ou eliminar alguns dos
chefetes, porque os líderes que contam do Hamas já foram embora. Serão
realizadas operações de comando reforçado. Contudo, começa-se com essas ideias,
mas depois dependerá de como os outros reagem. Isso na frente de Gaza. Mas não se deve esquecer que
também existem a frente norte, o Hezbollah e
a Cisjordânia.
E depois há a terceira fase, que está longe de ser
clara...
·
Em que sentido?
Depois de entrar, como se sai? Os israelenses dizem
que, uma vez feita a limpeza de
Gaza, já não querem ter mais nada a ver com o assunto. O problema, e que
problema, é representado por mais de 2 milhões de pessoas que não podem
desaparecer no ar, mesmo que alguém possa pensar ou esperar que possam acabar
no Egito ou na Jordânia. Além disso, o Egito e a
Jordânia estão muito preocupados com a possibilidade de uma “invasão” pacífica
de refugiados de Gaza e
da Cisjordânia.
·
No meio dos combates, a
diplomacia internacional redescobriu de repente a solução dos “dois Estados”.
Mas não é tarde demais?
Essa redescoberta, em alguns casos sincera, em
outros desesperada e em outros ainda pura zombaria, é simplesmente a prova de
que não há solução, caso contrário já a teríamos encontrado. A questão
palestina pode ser gerida, mas não pode ser resolvida. O problema é que levamos
a gestão, na minha opinião muito malfeita, ao limite do administrável, e agora
as forças extremas, tanto no campo palestino - que, no entanto, valem o que
valem, ou seja, muito pouco, - tanto no campo israelense, que vale quase tudo,
aproveitam-se para tentar o impossível. Do lado israelense, as ultradireitas, os colonos e aqueles
que os apoiam no governo estão convencidos de que esta é uma boa oportunidade
para encerrar definitivamente a questão com os palestinos e talvez para criar
finalmente aquela fronteira
oriental de Israel, que aliás seria o Vale do Jordão e, assim formalizar a situação. No campo
palestino não temos resultados eleitorais, porque há muito tempo que não se
realizam eleições.
A minha sensação é que, pelo menos na Cisjordânia, mas talvez também um
pouco em Gaza, uma boa
parte dos palestinos, tendo entendido que nunca terão o seu próprio Estado,
prefeririam tornar-se cidadãos israelenses com todas as vantagens e direitos
que, apesar de tudo, os árabes israelenses têm. Mas essa não é uma solução
porque é evidente que a “Israstina”,
como a chamava Kadafi, não
agrada nem um pouco ao Estado Judeu.
·
O dia 7 de outubro também
marca o fim do que restava da Autoridade Nacional Palestina de Abu Mazen?
Não, porque já estava morta. E é mantida viva, de
forma absolutamente artificial, pelo nosso dinheiro europeu, estadunidense e
israelense. Com algum sucesso, é preciso dizer, porque a vida na Cisjordânia, apesar de todas as
perseguições, maus tratos e até as mortes, é incomparavelmente melhor do que a
vida dos palestinos em Gaza,
sempre foi e sempre será.
·
A narrativa de que o
Hamas é o fantoche do “titereiro” iraniano, agindo sob comando, não é simplista?
Certamente é. Tem a vantagem, justamente por ser
simplista, de ser atraente. As coisas são muito mais complicadas. No Oriente Médio, a realidade nunca
corresponde à aparência.
Acredito que existem níveis de entendimentos
clandestinos, financiados sobretudo pelos países do Golfo e em parte também por
outros, entre as forças palestinas que devem ser mantidas sob controle,
"domesticadas", e os israelenses que devem ser acalmados nas suas
intenções definitivas, essencialmente ter a Terra Santa completamente livre dos
palestinos.
Tudo isso entrou em crise e é isso que me preocupa.
Sinceramente, não vejo alternativa à reconstrução de um tecido em que todos os
atores, as grandes potências, a começar pelos Estados Unidos, globais e regionais, tenham de encontrar, ainda
que fingindo desprezo, um equilíbrio que permita a restauração de alguma forma
de convivência, mas desta vez passando por uma guerra que será sangrenta, já é,
o que dará uma cara diferente a essa hipotética convivência.
·
Setembro marcou o
trigésimo aniversário dos Acordos de Oslo-Washington. Com a visão
de hoje, era um fracasso anunciado?
Não, porque cada um entendia algo diferente ao
assinar os acordos. Mas no final, quer fossem israelenses ou palestinos,
convergiam na convicção de que uma solução definitiva e mutuamente aceitável não
era possível. Contudo, não só era aceitável, mas necessária, alguma forma de
entendimento que permitisse desarmar a bomba, talvez até obter bastante
dinheiro e depois continuar a negociar a tempo indeterminado algo que não pode
ser negociado, ou seja, a paz entre os dois Estados.
·
Ao longo dos anos, a
Limes dedicou muitos volumes ao Oriente Médio e ao conflito
Israel-Palestina. A partir daquela reconstrução analítica, o fracasso de hoje
já estava previsto?
Não, porque se podem adivinhar algumas tendências de
base, que são tão visíveis que também nós as adivinhamos, mas a questão é que
há sempre desvios, há sempre imprevistos.
O 7 de outubro é um exemplo tragicamente clamoroso
de que nem tudo que é racional é real e vice-versa. Acrescentaria que, como
somos pessoas teimosas, estamos trabalhando num outro número sobre Israel, que sairá no dia 8 de
novembro.
A Limes também
contou sobre a existência de uma sociedade civil, tanto no campo israelense
quanto palestino, que ainda acredita no diálogo e não se curvou diante da
inevitabilidade da guerra.
O problema é que os acordos não são feitos pelas
sociedades, mas pelos Estados. E, além disso, há a sociedade civil, mas também
há uma sociedade cada vez mais incivil.
Em
Gaza, o objetivo é matar civis por vingança, exemplo e limpeza étnica. Por
Mario Vitor Santos
As sociedades já foram menos condescendentes diante
de crimes evidentes contra a humanidade, como o que ocorre agora, aos olhos de
todo o planeta, na guerra de Israel contra a Palestina.
Já houve indignação mais generalizada contra os
massacres ocorridos durante, por exemplo, a guerra civil espanhola ou no
Vietnã. Desde a incursão do Hamas em Israel no 7 de outubro o número de mortos
se elevou tanto que se torna fácil duvidar de sua precisão. Na Faixa de Gaza,
são 6.546 mortos, de acordo com o Ministério da Saúde, "controlado pelo Hamas", de acordo
com o portal G1. Do lado israelense, são 1.402.
Dentre os mortos em Gaza, de acordo com o
Ministério da Saúde de Gaza "controlado pelo Hamas", como faz sempre
questão de repetir o G1, 2.704 são crianças. Outras 5,3 mil foram feridas. As
crianças desaparecidas são 800.
Estas cifras ocorrem como consequência dos
bombardeios israelenses sobre a Faixa de Gaza. Tão grave como esses
bombardeios, intencionalmente sobre áreas civis, é a carga de propaganda que
tenta justificá-los. Israel diz que sua guerra é exclusivamente contra o Hamas,
e que suas bombas estão direcionadas especialmente para a cadeia de comando e
as ramificações do grupo palestino.
Essa versão é reproduzida sem questionamento por
toda a mídia ocidental. Tal mídia não leva em consideração, como hipótese
jornalística, a possibilidade de que a tática israelense, não propriamente
nova, seja a oposta: impor os danos civis
mais extensos possiveis.
Desabrigar, desalojar, retirar os meios de
sobrevivência, transformar Gaza num
inferno.
Isso já ocorreu nos bombardeios nazistas contra
Londres e outras cidades inglesas. Foi o que aconteceu também, por exemplo, nos
ataques americanos e ingleses que incendiaram Dresden, na Segunda Guerra
Mundial. Ainda ontem, Moshe Feiglin, ex-deputado do Likud, declarou à TV INN
Israel News Network que o país deveria transformar Gaza numa "nova
Dresden" em chamas, forçando todos os seus habitantes a um êxodo para o
Egito.
Ao fim da Segunda Guerra, o lançamento das bombas
nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki foi outro exemplo trágico. Matar civis é a
lógica das armas nucleares estratégicas. O "sentido" desses ataques é
o de matar muito para, alegadamente, quebrar o moral da população, enfraquecer
seu apoio ao esforço militar e facilitar uma eventual invasão.
Submetida à censura ideológica pró-israelense, a
mídia corporativa hegemônica no Ocidente se obriga a seguir a narrativa oficial
de Telavive e Washington, a de que Israel está em guerra com o Hamas, e não com os palestinos, e que suas bombas
nao visam os civis, só os "terroristas". Na verdade, o que está na
ordem do dia é uma estratégia de limpeza racial contra a população Palestina.
Ø Na Cisjordânia, onde o Hamas não atua, Israel já matou 102 palestinos.
Por Jeferson Miola
Na Cisjordânia, território ocupado e controlado por
Israel e administrado pela Autoridade Nacional Palestina sem nenhuma autonomia,
o grupo Hamas não tem atuação política e, menos ainda, organização armada.
A despeito disso, porém, desde 8 de outubro Israel
já matou 102 palestinos na Cisjordânia, sendo a maioria das vítimas crianças,
mulheres e idosos. Nenhuma dessas vítimas civis, assassinadas covardemente,
estava armada ou nas trincheiras de combate do Hamas.
Palestinos são assassinados com repugnante
banalidade pelo simples fato de serem palestinos, e, por isso, considerados
seres inferiores, desumanizados, destituídos de direitos humanos. Os palestinos
merecem receber, por isso, o tratamento que corresponde a animais selvagens,
como declarou Yoav Gallan, o ministro nazi-sionista de Defesa.
A rotina de morticínios na Cisjordânia, de tão
frequente ao longo de décadas, é banalizada; já integra a paisagem de terror
imposto pelo regime sionista de apartheid nos territórios onde
os palestinos são obrigados a viver confinados, cercados e asfixiados por
terra, mar e ar. Prisioneiros no maior Auschwitz do mundo.
Esta rotina de brutal violência israelense na
Cisjordânia se intensificou muito depois dos ataques do Hamas em 7 de outubro.
E deverá escalar cada vez mais.
Sob o falso pretexto de combater o Hamas, Israel
segue sem freios a ofensiva genocida que, na realidade, tem por objetivo
executar uma limpeza étnica nos territórios
palestinos.O que está acontecendo em Gaza, e, em proporção
menor na Cisjordânia, não é uma guerra, é genocídio!Se o plano sionista fosse verdadeiramente combater o Hamas, por que
então o assassinato de 102 palestinos na Cisjordânia, onde o Hamas não atua, e
por que a execução de 7 crianças palestinas a
cada hora pelos bombardeios assassinos na Faixa de Gaza?
Se o plano israelense fosse verdadeiramente punir
os combatentes do Hamas, o que justifica que mais de 60% dos palestinos
mortalmente abatidos em Gaza sejam crianças, adolescentes, mulheres e pessoas
idosas?
É absolutamente inaceitável e vergonhosa a inação
da ONU diante da maior tragédia do mundo, em que está sendo levado a cabo o
extermínio do povo palestino.
É repugnante a indiferença dos EUA e governos
vassalos, que se aliam a Israel na máquina mortífera de assassinato de uma
criança palestina a cada 9 minutos, o que jamais deixariam acontecer se as
vítimas fossem crianças judias.
O morticínio que o regime sionista de apartheid promove
também na Cisjordânia desnuda o verdadeiro plano do gabinete de guerra
israelense, que é consumar a limpeza étnica por meio do genocídio do povo
palestino.
Com o genocídio em Gaza, Israel e seus aliados de
barbárie abrem guerra total contra a civilização humana e contra qualquer ideal
decente de humanidade.
Fonte: Entrevista com Lucio Caracciolo, para l’Unità
- tradução de Luisa Rabolini, em IHU/Brasil 247
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