Cargill opera porto com licença precária na Amazônia enquanto população
reclama de impactos
Um porto de embarque e desembarque de grãos mantido
pela gigante do agronegócio Cargill no município de Itaituba, no Pará, opera
com uma licença precária há um ano e meio na margem direita do Tapajós, um dos
mais importantes rios da Amazônia brasileira.
A empresa obteve uma prorrogação automática de sua
licença de operação, vencida em abril de 2022, sem que os técnicos da
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) tenham dado
parecer favorável à renovação, etapa obrigatória do processo de licenciamento.
O problema é que há obrigações impostas à empresa ainda não cumpridas – como
realizar um estudo de impacto sobre os indígenas Munduruku, que possuem terras
na área de influência do terminal – além de reclamações de moradores sobre as
consequências negativas do empreendimento.
“Houve
crescimento da população e hoje a gente sente na pele a fome, a pobreza e a
vulnerabilidade”, observa Jesielita Roma Gouveia, coordenadora do Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS), equipamento que executa políticas
públicas voltadas a pessoas em vulnerabilidade social. A Repórter Brasil foi
até Itaituba e ouviu relatos de exploração sexual, atropelamentos e insegurança
generalizada que os moradores atribuem à chegada do empreendimento. Enquanto a
violência cresceu, diminuíram os peixes no rio, segundo os habitantes da
região.
“Os órgãos ambientais têm demorado para concluir
análises de renovação das licenças, o que em boa parte se deve à falta de
estrutura, recursos humanos e institucionais. Isso traz problemas sérios do
ponto de vista dos impactos e da verificação de se estão ou não sendo
solucionados adequadamente pelas condicionantes”, observa Maurício Guetta,
advogado do Instituto Socioambiental (ISA), organização que atua na defesa de
direitos relacionados ao meio ambiente.
A prorrogação automática da licença está amparada
em uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que permite o
uso desse expediente temporário “até a manifestação definitiva do órgão
ambiental competente”. Mas segundo informação da Semas obtida por meio da Lei
de Acesso à Informação, não há “previsão para conclusão do parecer técnico da
análise do processo de renovação da licença”.
“Na prática,
o que está acontecendo é uma renovação automática da licença”, alerta Pedro
Martins, advogado da organização Terra De Direitos, que lançou no início do ano
um relatório sobre as consequências socioambientais do porto da Cargill. O
documento alerta para “ausência de informações essenciais e uma baixa qualidade
técnica” nos estudos de impacto ambiental da empresa.
No ano passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu
que a concessão automática de licença, sem análise dos técnicos ambientais, é
inconstitucional. “O poder público está dando um benefício para que a empresa
continue a operar. É como se a renovação da licença não fosse necessária”,
complementa Martins.
Procurada pela Repórter Brasil, a Cargill afirmou
que “a prorrogação automática ocorreu de acordo com a legislação” e que “todas
as condicionantes [da licença de operação] são integralmente respeitadas”.
A Semas negou qualquer irregularidade e disse que
“a empresa deu entrada com o pedido de renovação com a antecedência necessária
que garante a prorrogação automática da licença”. A secretaria ainda informou
que “neste momento está em elaboração a nota técnica de avaliação das
condicionantes da licença, que ficará disponível no Portal da Transparência
quando concluída”. A íntegra da manifestação da Cargill e da secretaria pode
ser lida aqui.
• Itaituba
é conexão do agro com Europa
A Cargill não é a única empresa a operar um porto
fluvial em Itaituba. Outras gigantes da soja como a Bunge e a Amaggi, que
juntas fundaram a Unitapajós, também fazem parte do complexo portuário, que
inclui ainda empresas especializadas em logística. Os empreendimentos funcionam
em Miritituba, um distrito de Itaituba que, de uma pequena vila, foi
transformada em zona “comercial, industrial e portuária”.
A localização estratégica de Itaituba foi decisiva
para a implantação dos portos no local. É neste ponto do mapa que se encontram
a BR-163 – também conhecida como “rodovia da soja”, que cruza de norte a sul o
Mato Grosso, maior produtor nacional do grão –, a Transamazônica, outra
importante via de escoamento de produção agrícola do norte, e a hidrovia
Tapajós-Amazonas, que, de lá, percorre esses dois cursos d’água em direção ao
norte, onde há portos com capacidade de receber navios que cruzam o oceano
Atlântico até a Europa ou outros destinos internacionais.
Mas a Cargill tem uma vantagem estratégica sobre as
concorrentes: um porto próprio para navios em Santarém, distante 360
quilômetros de Itaituba – trajeto muito menor do que o feito por outras
empresas, cujas barcaças que partem de Miritituba precisam percorrer um caminho
mais longo até Barcarena, também no Pará – município que fica a mais de mil
quilômetros dali. A empresa é a maior exportadora de soja e milho do Brasil, e
a maior companhia de agronegócio do mundo, segundo levantamento da revista
Globo Rural.
Moradores reconhecem que a chegada dos portos
impulsionou a economia de Miritituba, com a abertura de restaurantes, hotéis e
lavanderias. Serviços públicos como o CRAS e o ensino médio também chegaram nos
últimos anos, após pressão da comunidade. “Mas onde tem desenvolvimento também
tem a parte negativa”, aponta Jesielita Roma Gouveia, coordenadora do CRAS.
Hoje, Itaituba é a 15ª cidade mais violenta do país, segundo o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública.
“Que desenvolvimento é esse onde você mora numa
cidade que tem esgoto a céu aberto, que não tem saneamento básico e que tem que
comprar água para poder beber?”, pondera Raione Lima Campos, advogada da
Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Itaituba. “Historicamente o estado não
investe em políticas públicas, e com a chegada dos portos os problemas que já
existiam foram se intensificando”, completa.
• Violência
sexual ameaça infância
Entre os vários impactos da instalação dos portos
em Miritituba, há um especialmente difícil de documentar: a exploração e
violência sexual contra mulheres, incluindo crianças e adolescentes, problemas
que cresceram com a construção do porto e a chegada dos caminhões de carga. A
Cargill previu o “aumento da população masculina” em seu estudo de impacto
ambiental de 2013, que classifica essa mudança como um “efeito negativo” de
magnitude “média”. Estimativas indicam que o distrito de Miritituba recebe 1,5
mil caminhões por dia no auge da safra de soja.
“A violência sexual aqui na nossa região sempre foi
forte, mas não podemos fingir que não aumentou”, diz Yasmin Correa, advogada do
Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) em Itaituba.
Enquanto o CRAS atua na prevenção da violência, é no CREAS que as vítimas
buscam atendimento.
A situação é especialmente grave em Campo Verde, a
30 quilômetros de Miritituba. No projeto apresentado em 2013, a Cargill previa
a construção de um estacionamento para 150 caminhões dentro da área do porto,
mas no ano seguinte mudou a proposta: reservou apenas 15 vagas em sua área
interna para as carretas descarregarem e criou um pátio regulador para 400
caminhões em Campo Verde. “Fica um tanto de menina no meio dessas carretas, mas
não chega nenhuma denúncia. É um crime difícil de ser provado”, lamenta Maria
José de Barros, coordenadora do Conselho Tutelar de Itaituba.
Em 2016, Itaituba proibiu a circulação de caminhões
no distrito de Miritituba – uma tentativa de conter atropelamentos na área
urbana, como o que matou o filho de Edizangela Vieira, em 2019. “Ele veio
almoçar, deixou o prato em cima da mesa e saiu para comprar um refrigerante.
Então foi atropelado. Eu mesma, quantas vezes eu tive que ir para a beira da
estrada para não ser massacrada por um caminhão?”, relata Edizangela.
Com isso, Campo Verde passou a concentrar quase
todos os serviços de apoio aos caminhoneiros, como postos de gasolina e hotéis
– junto com essa infraestrutura, se proliferaram também os bares e bordéis.
“Deve ter quatro ou cinco boates [em Campo Verde], apareceram depois do negócio
dos portos”, conta um morador que pediu para não ser identificado.
Uma funcionária da assistência social afirma ter
testemunhado a exploração de uma adolecente em um desses estabelecimentos
depois de receber uma denúncia do Conselho Tutelar. “Aparentemente, era um bar,
mas ao lado da entrada havia um beco bem apertadinho que dava acesso a quartos.
Era um cabaré”, descobriu. No local, ela diz ter encontrado uma adolescente que
trabalhava como “acompanhante” de um carreteiro – serviço pelo qual a dona do
bordel havia cobrado 2 mil reais. Além de vítima de exploração sexual, diz a
servidora, a menina sequer era paga por isso. “Quem recebia era a dona do
local”, completa.
A exploração sexual é um crime previsto no Código
Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Se considera “exploração” tirar
vantagens sobre atividades sexuais de uma criança ou adolescente. O ato sexual
com quem tem menos de 14 anos é considerado estupro. “Crianças não se
prostituem, são exploradas sexualmente, elas não tem noção do problema e da
gravidade para vida futura delas. Estão na pobreza, acham que é legal receber
dinheiro”, completa Barros, do Conselho Tutelar de Itaituba.
Em nota, a Cargill disse que “lamenta a tentativa
de conexão entre a presença da empresa em Miritituba e temas tão sérios como
abuso e exploração de crianças e adolescentes”. A empresa informa que levou
para a localidade o programa “Na Mão Certa”, desenvolvido pela Childhood Brasil
para prevenir a exploração sexual de crianças e adolescentes em rodovias, o que
inclui “treinamentos, campanhas de engajamento, comunicações internas, entre
outras atividades” direcionadas à equipe fica e prestadores de serviço.
Promover ações de redução dos impactos “da
potencialização dos problemas decorrentes da intensificação do fluxo
migratório” é uma das condições da licença que a Cargill obteve em 2014, quando
começou a construir o porto – obrigação que segue em vigor e é levada adiante
pela Associação dos Terminais Portuários e Estações de Transbordo de Cargas da
Bacia Amazônica (Amport), que representa as várias empresas com portos na
região.
A entidade explicou, em nota, que faz isso por meio
de “ações de conscientização, como treinamentos, campanhas de engajamento,
comunicações internas, entre outras atividades”. “As empresas associadas estão
sempre envidando todos os esforços para trabalhar de forma preventiva e
corretiva no enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes”,
completa. Leia na íntegra as manifestações.
• Redução
de danos é insuficiente, avalia comunidade
Documentos acessados pela Repórter Brasil via Lei
de Acesso à Informação mostram que entre abril de 2021 e março de 2022 foram
realizadas quatro palestras sobre violência sexual no pátio de triagem
compartilhado entre Cargill e Unitapajós, em Campo Verde.
Mas funcionários da assistência social de Itaituba
e grupos da sociedade civil alertam que as ações são insuficientes.
“Só a
palestra não resolve. É uma medida muito fraca mediante o impacto que é
gerado”, avalia o sociólogo Wwyncla Paz de Aguiar, que atua no Grupo Tibira,
uma organização em defesa da diversidade no Tapajós. “É uma questão coletiva
séria, por isso é preciso ir além da responsabilidade individual dos
caminhoneiros”, completa.
Antonieta Lima, da coordenação de políticas
públicas para mulheres de Itaituba, que já participou dessas atividades de
conscientização concorda. “Levamos a mensagem e a aceitação é boa, mas a
cultura da violência não muda da noite para o dia”, aponta.
Também há críticas sobre o apoio financeiro que a
Associação dos Terminais Portuários fornece – em nome das empresas que operam
portos em Itaituba – ao CRAS de Miritituba, inaugurado em 2015 também como
parte da agenda de ações para mitigar os impactos dos portos. É neste local que
a prefeitura promove atividades de fortalecimento social, uma política pública
desenhada para prevenir a violência e acolher situações de vulnerabilidade
social. Mais de 60 crianças e jovens entre 6 e 17 anos participam de oficinas
de capoeira, música e futebol. Uma vez por semana 35 idosos participam de um
café da manhã coletivo.
A doação mensal da Associação é de R$ 5,5 mil e nos
últimos meses permitiu aquisição de itens de alimentação e material didático:
leite, ovo, açúcar, caderno, canetas, lápis e massa de modelar. Mas Jesielita
Gouveia, coordenadora da unidade admite que esse recurso “não é suficiente”.
“São R$ 5,5 mil reais para quatro multinacionais.
Falando especificamente da Cargill, ela não dá quase nenhuma ajuda ao
distrito”, reclama um integrante dos movimentos sociais de Miritituba. A
receita da Cargill no Brasil em 2022 foi R$ 125,8 bilhões, o que representou
crescimento de 22% em relação ao ano anterior.
Os movimentos sociais também reclamam que não
conseguem obter informações sobre os impostos ou outros tributos pagos para a
prefeitura – por isso, não têm parâmetros para cobrar ações mais robustas de
enfrentamento à violência.
“A arrecadação da prefeitura com os portos é muito
obscura. Não temos informações de quanto esses portos repassam para Itaituba
investir em serviços públicos”, revela Raione Lima Campos, da CPT.
Mesmo o Conselho Gestor de Fiscalização dos
Investimentos e Empreendimentos no Distrito de Miritituba, órgão responsável
por fiscalizar as ações dos portos, tem dificuldade para acessar aos valores,
segundo seu presidente. “Transparência zero”, avalia Naldo Luna, presidente do
colegiado, criado em 2019 para acompanhar as ações das empresas portuárias.
A Repórter Brasil entrou em contato com a
prefeitura para saber o montante e destinação dos impostos, mas não obteve
retorno até o fechamento do texto.
• Indígenas
Munduruku não foram ouvidos
Em 2017, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e
Sustentabilidade estabeleceu que a Cargill precisaria realizar um Estudo do
Componente Indígena nos territórios Munduruku de Praia do Mangue e Praia do
Índio – duas áreas indígenas situadas dentro do município de Itaituba, a poucos
quilômetros de distância do núcleo urbano. Juntos, os dois territórios somam 60
hectares e quase 300 pessoas.
O estudo é uma obrigação prevista em uma norma
federal para antever os impactos específicos sobre esta população.
O documento deveria ser entregue no prazo de quatro
meses, a contar de abril, quando a licença de operação foi liberada. Mas só 5
anos mais tarde, em 2021, o plano de trabalho preliminar deste estudo foi
protocolado na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), segundo a própria
Cargill. Desde então a Associação dos Terminais Portuários, responsável pelo
plano, discute com o órgão indigenista federal melhorias no projeto. “Várias
reuniões foram realizadas e comunicações trocadas entre as partes, mas não há
um parecer definitivo da Funai para dar seguimento ao tema”, assinala a
empresa.
Enquanto isso, os Munduruku ouvidos pela reportagem
reclamam do avanço da violência. Muitas famílias proibiram as crianças de
brincarem sozinhas no Tapajós. “As coisas pioraram bastante. Tem muito assalto,
muita morte, drogas e prostituição por conta da chegada das empresas”, relata
Karo Munduruku, um dos indígenas que habitam a Praia do Mangue.
Segundo os pescadores, eles não podem se aproximar
do complexo. “O peixe está todo cheio de bagaço de soja. Isso é muito ruim”,
condena o cacique Brasilino Painhum Munduruku.
Com o passar do tempo, a dieta tradicional dos
indígenas foi sendo substituída por comida industrializada. “Antes não tinha
tanta hipertensão e diabetes. Tratamos muitos problemas intestinais devido ao
consumo de refrigerantes, salgadinhos e enlatados”, conta Edilene Munduruku,
agente de saúde da aldeia Praia do Índio.
• Capacidade
ociosa à espera da Ferrogrão
Em Miritituba, a Cargill tem uma capacidade de
embarque de 24 mil toneladas por dia, o equivalente a oito barcaças. Ao ano,
conseguiria movimentar até 4 milhões de toneladas – mas documentos obtidos pela
Repórter Brasil via Lei de Acesso à Informação mostram que há capacidade
ociosa.
Entre abril de 2021 e março de 2022 foram cerca de
2,5 milhões de toneladas somando cargas recebidas e embarcadas.
Fontes ouvidas pela reportagem temem que os
impactos negativos se intensifiquem caso um projeto de construir uma ferrovia
paralela à BR-163 – chamada Ferrogrão – saia do papel. Isso porque o
empreendimento de mais de 900 quilômetros deve incrementar o volume de grãos
escoados por Miritituba. A estimativa é que então sejam movimentados até 52
milhões de toneladas por ano (de soja, milho e outros produtos agrícolas).
Fonte: Reporter Brasil
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