Impactos da seca na Amazônia devem se estender por
meses
A vida parou nas
comunidades às margens do médio rio Solimões. Nessa parte do estado do Amazonas
onde as vias são aquáticas, a seca extrema impede que crianças cheguem à escola
e que pescadores e agricultores familiares trabalhem.
"Tudo parou. Não dá
para sair de barco, há famílias isoladas. A gente tem medo de a água potável
acabar, essa é nossa principal preocupação", narra à DW Maria de Fátima
Celestino, 33 anos, mãe de uma recém-nascida de três meses e de outros três
filhos.
Ela e outras 31 famílias
moram na comunidade Tauary, a oito horas de barco da cidade mais próxima, Tefé.
Por conta da dificuldade da navegação e do transporte de mercadores pelo
Solimões, os ribeirinhos estão pagando mais caro pelo arroz, feijão, óleo e
café.
"Nem a minha sogra,
que tem 98 anos, viu uma seca dessa", conta Celestino sobre a situação que
presencia de sua casa no médio Solimões que, quilômetros à frente, se
transforma no rio Amazonas.
Algumas estações
hidrometeorológicas que medem o nível na bacia amazônica registraram mínimos
recordes nas últimas semanas. A seca dramátia também afeta comunidades no curso
dos rios Negro, Purus, Madeira e Amazonas.
O cenário para os
próximos meses não é otimista. A temporada de chuvas na região, que vai de
novembro a março, começa atrasada com volumes abaixo da média, o que compromete
o retorno dos rios a níveis saudáveis.
"A previsão para o
próximo trimestre é semelhante ao quadro dos últimos meses: a seca continua na
Amazônia, e as chuvas persistem no Sul. Começam também os primeiros sinais de
seca na região Nordeste", afirma à DW Gilvan Sampaio, coordenador geral de
Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
• Apagão de dados
A bacia amazônica é o
maior sistema fluvial do mundo, com 6,4 milhões de quilômetros quadrados de
extensão compartilhada entre nove países. A maior parte dela está no Brasil,
nos estados do Amazonas, Roraima, Acre, Rondônia, parte do Mato Grosso, Pará e
Amapá.
No país, o desafio de
monitorar a situação em tempo real é proporcional à extensão do território. Uma
dificuldade extra surgiu durante a crise atual: o acesso público aos dados está
mais difícil desde que a Agência Nacional de Águas (ANA) sofreu um ataque
hacker, no início de outubro.
"Os servidores
saíram do ar e não há previsão para retorno. Justamente numa época em que se
tem cotas muito baixas na Amazônia e muito elevadas no Sul, com processos de
enchentes extremas", comenta André Martinelli, pesquisador do Serviço
Geológico do Brasil (SGB), à DW.
Em parceria com a ANA, o
SGB opera mais de 75% das estações que formam a rede hidrometeorológica
nacional. Os aparelhos – entre automáticos e manuais – coletam dados de chuva,
nível dos rios, vazão, sedimentos e qualidade da água.
No Amazonas, onde o
quadro é mais crítico, a maior parte do monitoramento (54%) é feita por
empresas privadas terceirizadas contratadas pela ANA.
"A gente perde um
pouco das facilidades de pegar os dados e trazer informação correta. A gente
cobra das empresas, mas as respostas são evasivas. Eles não têm que correr,
pois o prazo para entregar os dados para a ANA é de cinco meses", comenta
Martinelli, que chefia a regional do SGB em Manaus.
Diante da emergência, o
SGB disponibilizou um link com informações de algumas estações telemétricas,
solução tecnológica que permite o acompanhamento remoto.
"Tem dados que a
gente só consegue indo a campo, como vazão, qualidade de água e coleta de
sedimentos. Em algumas estações, a gente só consegue chegar de avião ou depois
de muitos dias de navegação", detalha Martinelli.
As empresas que prestam
serviço para a ANA recolhem os registros feitos nesses locais apenas duas vezes
por ano. "O compromisso do SGB é fazer pelo menos quatro visitas por
ano", adiciona.
O gargalo, afirma o
pesquisador, reflete os problemas estruturais que empresas públicas enfrentam
na Amazônia de contratar e fixar pessoas em seus postos de trabalho. Diante da
crise, a expectativa é que um novo concurso público do SGB seja anunciado ainda
neste ano.
• Efeito cascata
A coleta de dados sobre
os rios amazônicos é bastante deficiente, analisa José Genivaldo do Vale
Moreira, pesquisador da Universidade Federal do Acre (Ufac). Há falhas nos
registros e perda de informações, o que compromete a formação de séries
históricas.
"Apesar de hoje a
maioria das estações já serem automáticas, a internet na Amazônia não é tão
boa. Se no momento da transmissão dos dados a conexão falha, o dado é
perdido", exemplifica o pesquisador.
Sem informações exatas, a
previsão de cenários futuros fica em xeque. Os dados coletados no mundo real
abastecem modelos matemáticos rodados no computador que dão pistas do que pode
vir pela frente e que ajudam o poder público a se preparar.
"Eu trabalho na área
de modelagem dos fenômenos, como seca e enchentes. O modelo consegue prever com
grau confiável de certeza cenários futuros quando temos séries históricas
longas e confiáveis", afirma.
No Acre, por exemplo, os
pesquisadores podem contar com apenas três estações que coletam dados de chuvas
desde 1970 – o que seria muito pouco, pontua Moreira sobre a dificuldade das
análises científicas.
Assim como no Amazonas,
parte do estado do Acre também registrou momentos de seca extrema. A aguardada
volta do ciclo de chuvas não deve ser suficiente para devolver o pulso
satisfatório dos rios, estima Moreira.
"A americana NOAA
(Administração Oceânica e Atmosférica Nacional) acena já para possível
recorrência do El Niño no ano que vem. Se isso acontecer, a seca será
devastadora", diz.
• "Pior do que o esperado"
Um período mais seco que
o normal já era aguardado na região. Sempre que as águas do Oceano Pacífico ao
longo da linha do Equador ficam mais quentes – fenômeno conhecido como El Niño
–, o transporte de umidade pelo ar para a Amazônia e o Nordeste é prejudicado.
O que não estava no radar era sua intensidade sobre toda a bacia.
"Está pior do que o
previsto, está mais intenso. Sabíamos que o El Niño seria moderado, podendo
chegar a forte, mas chegou muito rapidamente a forte", comenta Sampaio, do
Inpe.
Outro fenômeno
concomitante inibiu ainda mais a formação de nuvens e de chuvas na região: o
aquecimento das águas do Atlântico tropical, que afeta principalmente as partes
sul e sudoeste da Amazônia.
"De forma
generalizada, os dois eventos causam esses impactos da pior seca já registrada
nos últimos 102 anos. O El Niño vai atingir seu auge ainda em dezembro. Tudo
indica que haverá maior impacto no norte e leste da Amazônia nessa época",
detalha Sampaio.
• Efeitos prolongados
Em Tefé, Amazonas,
pesquisadores do Instituto Mamirauá fazem medições em caráter emergencial para
dar uma resposta direta à tragédia que provocou a morte de mais de 150 botos
nas últimas semanas.
"Ainda não sabemos
qual será a extensão da tragédia humanitária e ambiental, que é muito grande
já", diz à DW Ayan Fleischmann, pesquisador do Instituto Mamirauá.
Uma das soluções para
fazer frente aos gargalos de monitoramento hidrometeorológico da região seria
descentralizar o serviço. "O próprio Instituto Mamirauá está desenvolvendo
uma rede de monitoramento no local onde atua. Não há estações pluviométricas
suficientes no curso dos rios", diz Fleischmann.
Flávia Capelotto Costa,
cientista no Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (Inpa), também se
assusta com a intensidade da seca. A tragédia será ainda mais devastadora caso
o nível da água dos rios demore muito para se normalizar.
"A resposta da seca
na floresta terá que ser muito bem acompanhada. Ela foi feita para se adaptar
às cheias. Na seca, o impacto é muito mais profundo na floresta e nas
comunidades também", alerta Costa.
Fonte: Deutsche Welle
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