'Escravos de ganho': dependentes entregavam mais da metade do salário a
pastor evangélico no Rio
Dependentes químicos acolhidos em uma casa de
reabilitação ligada a uma igreja evangélica foram obrigados a trabalhar em
diferentes estabelecimentos de bairros da Zona Oeste do Rio, diz uma
investigação envolvendo vários órgãos.
Segundo informações colhidas durante uma
fiscalização da Superintendência do Trabalho no Rio, Polícia Federal e
Ministério Público do Trabalho, mais da metade do valor que as vítimas recebiam
pelo trabalho era dividido com o pastor da igreja Alcance Vitória ou ofertado
em dízimo à instituição religiosa, que fica em Paciência.
Segundo um documento da superintendência, os sete
resgatados eram "escravos de ganho": quando as vítimas são obrigadas
a realizar serviços fora da casa onde moram e entregar o dinheiro que ganham,
ficando apenas com uma pequena parte.
Muitas vezes, em vez de um dinheiro, os
trabalhadores recebiam tinta para pintura das casas onde moravam, ou carne e
salsicha para comer. Eles ainda eram obrigados a frequentar os cultos da
igreja.
Os trabalhadores foram resgatados em agosto deste
ano do sítio que pertence ao Ministério, em Cosmos, bairro vizinho. O g1
acompanha o caso desde então.
A região é dominada por milicianos, que foram até o
local, segundo denúncias, para saber mais a respeito da fiscalização. No
momento do trabalho dos auditores fiscais, havia escolta da Polícia Federal, o
que inibiu a ação dos criminosos. Homens armados já foram vistos no sítio.
Jackson de Sobral Almeida, pastor responsável pela
igreja Alcance Vitória, em Paciência, foi autuado por trabalho análogo à
escravidão. O g1 procurou o pastor, mas não obteve resposta até o momento.
O resgate foi realizado por auditores-fiscais do
Ministério do Trabalho e Emprego, uma procuradora do Ministério Público do
Trabalho e policiais federais da Delegacia de Defesa Institucional.
A igreja Alcance Vitória é ligada à Victory
Outreach Church, que tem igrejas em várias cidades do mundo. No site da igreja,
aparecem tanto o endereço em Paciência quanto o endereço do sítio da casa de
reabilitação, na rua das Amoreiras, em Cosmos. Em destaque, está o nome do
pastor Jackson Sobral.
• Mão
de obra a preço irrisório
De acordo com a fiscalização e os depoimentos dos
trabalhadores, o pastor mantinha a casa de apoio com o nome da igreja e era
fornecedor de mão de obra a estabelecimentos da região.
Os sete resgatados trabalhavam sem registro formal
e dividiam metade do valor do salário com o pastor. Além disso, ainda eram
obrigados a ofertar um dízimo de 10% no valor que teriam direito.
Os locais de trabalho eram três mercados em
diferentes partes da Zona Oeste, além de um Sacolão em Paciência e uma fábrica
de suco de laranja.
Em depoimento, um trabalhador contou aos auditores
fiscais que recebia R$50 por dia de trabalho, mas que o dinheiro era liberado
por um monitor apenas no dia designado para fazer compras de itens básicos.
Ele conta que um dos serviços que realizava era de
lixar treliças, sem nenhum tipo de equipamento de proteção e que inalava os
resíduos do processo.
O mesmo trabalhador afirmou que foi orientado, por
pessoas do abrigo, a dizer que usufruía de duas horas de almoço e 15 minutos de
lanche. Na realidade, ele trabalhava das 6h às 18h e tinha direito a a apenas
uma hora de almoço.
• Regras
rígidas
Uma cartilha que precisava ser seguida pelos
trabalhadores “recuperar homens do vício das drogas, álcool e devolver
dignidade, respeito e confiança na sociedade através de um encontro com Jesus”.
Entre as regras, além da proibição de celulares e
obrigatoriedade de presença nos cultos da igreja Alcance Vitória, estavam:
• todo
interno que for ao trabalho terá direto de receber a metade do dinheiro que foi
pago pelo trabalho, desde que não fume, não use celular, não brigue, entre
outros itens, bem como desde que não abandone a casa
• o
dinheiro ficará guardado com a direção da Casa, podendo ser usado a cada 15
dias para fazer compras ou para envio às esposas, caso haja
• Se o
interno decidir ir embora por conta própria, e caso tenha dinheiro na Casa, ele
não terá direito de levar o dinheiro
Um dos internos, por exemplo, perdeu todo o
dinheiro que tinha guardado por fumar dentro da casa de acolhimento, o que é
proibido pelas regras da "cartilha" do pastor Jackson.
Os internos contaram em depoimento que eram
proibidos de falar com o pastor, e que só poderiam enviar dinheiro para a
família se tivessem filhos.
De acordo com os depoimentos, não havia água
encanada no sítio e vários dos alimentos doados que usavam para se alimentar
eram vencidos.
Um dos depoimentos é de um trabalhador que relata
que, caso alguém recuse fazer trabalhos externos, é obrigado "a capinar um
terreno sob um sol de 40 graus".
Antes dos cultos, todos contaram que eram obrigados
a ficar de joelhos por duas horas e andar 40 para ir e voltar da igreja, três
vezes por semana.
Auditores fiscais, uma procuradora do Trabalho e
policiais federais participaram do resgate aos trabalhadores. — Foto:
Reprodução
• Punições
O Pastor Jackson firmou um Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC) para devolver os valores que devia aos trabalhadores (de um total
de mais de R$ 17 mil), além de pagar R$ 500 para todos os resgatados por 1 ano
e 8 meses a partir de novembro.
Duas empresas que pagaram remuneração aos
trabalhadores também firmaram um TAC para fazer o pagamento das rescisões e
FGTS.
Todos os trabalhadores terão direito ao
seguro-desemprego e tiveram devolvidos os valores retidos pela igreja. Alguns
deles receberam direito a 20 parcelas mensais de R$ 500 a partir de novembro de
2023.
O que
é trabalho análogo à escravidão, segundo a lei brasileira
Relatos dos trabalhadores da colheita da uva
resgatados em Bento Gonçalves (RS) na última semana descreveram um cenário de
violência cotidiana, condições degradantes de vida e violações a direitos
humanos básicos.
O caso é o registro mais recente de trabalho
análogo à escravidão no Brasil. Mas, afinal de contas, o que a lei brasileira
reconhece como trabalho escravo?
O artigo 149 do Código Penal Brasileiro traz a
definição jurídica do que é trabalho análogo à escravidão:
"É caracterizado pela submissão de alguém a
trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto."
A lei determina que é crime submeter alguém à
condição de trabalho análogo à escravidão e que também é punível por lei
qualquer pessoa que atue para impedir o direito de ir e vir do trabalhador que
esteja nessa condição. Veja o que diz o texto:
"Também é punido com as mesmas penas aquele
que, com o fim de reter o trabalhador: a) cerceia o uso de qualquer meio de
transporte por parte do trabalhador; b) mantém vigilância ostensiva no local de
trabalho; ou c) retém documentos ou objetos pessoais do trabalhador".
• Portaria
O Código Penal, no entanto, não é o único texto
sobre o tema. A Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência 1.293, de
2017, define os termos utilizados pelo Código Penal e ajuda a entender melhor
os traços que caracterizam o trabalho análogo à escravidão, como trabalho
forçado, jornada exaustiva e condição degradante. Veja a seguir.
• Trabalho
forçado é qualquer tipo de atividade imposta ao trabalhador sob ameaça, seja
ela física ou psicológica. No caso recente de Bento Gonçalves, os trabalhadores
relataram que eram espancados e agredidos com choques elétricos e spray de
pimenta.
• Jornada
exaustiva é qualquer período de trabalho que viole os direitos do trabalhador à
segurança, saúde, descanso e convívio familiar ou social. Uma jornada exaustiva
pode se caracterizar tanto pelo tempo de duração quanto pela intensidade das
atividades desenvolvidas. Os trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves
contaram que eram obrigados a trabalhar seis dias por semana, das 5h às 20h,
sem permissão para pausas.
• Condição
degradante é qualquer prática que negue dignidade ao trabalhador e viole sua
segurança, higiene e saúde. Em Bento Gonçalves, relatos ouvidos pelas
autoridades apontaram que os trabalhadores recebiam comida estragada e só
podiam comprar produtos em um pequeno comércio próximo ao alojamento, onde os
preços eram superfaturados e o valor consumido era descontado de seu salário.
• Restrição
de locomoção é a violação ao direito de ir e vir livremente, sob o argumento de
que o trabalhador deve dinheiro ao empregador ou a seu representante. A
restrição pode tanto manter o trabalhador preso no local de trabalho como
impedir que ele peça demissão. No caso recentemente descoberto no Rio Grande do
Sul, os trabalhadores afirmaram que eram impedidos de sair do local sem antes
pagar uma suposta "dívida" e que os empregadores ameaçavam seus
familiares.
• Cerceamento
do uso de meios de transporte é toda ação que impeça o trabalhador de utilizar
meios de transporte, sejam públicos ou particulares, para deixar o local de
trabalho ou de alojamento.
• Vigilância
ostensiva é qualquer forma de fiscalização direta ou indireta praticada pelo
empregador que impeça a saída do trabalhador do local de trabalho ou
alojamento.
• Apoderamento
de documentos ou objetos pessoais é quando o empregador mantém sob sua posse,
ilegalmente, documentos ou objetos pessoais do trabalhador, como forma de
impedi-lo a sair do local de trabalho ou de pedir demissão.
>>>> Como denunciar?
Existe um canal específico para denúncias de
trabalho análogo à escravidão: é o Sistema Ipê, disponível pela internet. O
denunciante não precisa se identificar, basta acessar o sistema e inserir o
maior número possível de informações.
A ideia é que a fiscalização possa, a partir dessas
informações do denunciante, analisar se o caso de fato configura trabalho
análogo à escravidão e realizar as verificações in loco.
Fonte: g1
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