Como o Círio de Nazaré se tornou uma das maiores festas religiosas do
mundo
No próximo domingo (7) são estimados mais de dois
milhões de pessoas nas ruas do centro de Belém para acompanhar a 231° edição do
Círio de Nazaré, uma das maiores festas católicas do mundo.
A devoção à Nossa Senhora de Nazaré leva a multidão
de devotos à percorrer 3,1 km em um dia que costuma ser muito ensolarado na capital
paraense.
Grande parte destes fiéis paga promessas com
artefatos de cera carregados sobre a cabeça, disputa espaço durante o trajeto
da procissão para tocar a corda do Círio ou até mesmo peregrina de joelhos,
agradecendo uma graça alcançada ou suplicando por um sonho ou pedido.
Mas será que a fé é o único motor responsável por
alavancar e impulsionar uma singela descoberta a um "mar de gente"?
• Como
tudo isso começou?
De acordo com as pesquisas do historiador e
antropólogo da Universidade Federal do Pará (UFPA), Márcio Couto, após um homem
chamado Plácido encontrar, às margens do rio Murucutu (atual avenida Nazaré) a
imagem da mãe de Jesus, devotos iniciaram visitações e novenas na área.
"Em 1793, o governador Francisco de Sousa
Coutinho teve a ideia de organizar uma feira de produtos regionais do Pará.
Preocupado com o sucesso da feira, ele escolheu exatamente o período em que os
devotos costumavam fazer as novenas em homenagem à santa encontrada por
Plácido", revelou o pesquisador.
Além da feira, Francisco de Souza Coutinho
determinou a realização de uma romaria com a imagem por Belém. Assim, conforme
os estudos do antropólogo, se realizou o primeiro Círio de Nazaré, na tarde do
dia 8 de setembro de 1793.
>>>> E como se tornou algo tão
grandioso?
• Primeiro,
"do povo"
Pode-se dizer que foi o "case de sucesso"
de Plácido, que com seu achado inspirou para além da própria comunidade e
muitas gerações a seguir.
"O Círio de Nazaré de Belém do Pará sempre
esteve associado à ideia de multidão. É preciso lembrar que a festa tem como
base uma devoção popular"
— Márcio Couto, historiador e antropólogo.
Segundo ele, outro especialista no assunto, o
pesquisador Eidorfe Moreira, reforça que a procissão se impôs por si mesmo e se
oficializou em virtude da própria popularidade.
"Assim, o Círio nasceu em torno de uma devoção
que já era popular antes mesmo de sua oficialização pelo poder público e pela
igreja. Nos jornais do século XIX, o Círio de Nazaré era definido como festa
'popular' e 'popularíssima'. Essa dimensão popular, desde suas origens,
certamente nos ajuda a entender o crescimento da devoção e da festa a cada
ano", explicou Márcio Couto.
• De
1793 aos próximos capítulos
Segundo o padre Dubois, no livro “A devoção à
Virgem de Nazaré”, de 1953, participaram do primeiro Círio, em 1793, cerca de
10 mil pessoas.
"O aspecto comercial da Festa de Nazaré também
acompanha essa devoção desde suas origens. Afinal, o primeiro Círio surgiu
atrelado a uma feira, estabelecida pelo então presidente da província, em 1793.
Círio sempre foi, também, tempo de movimentar o comércio e a economia
local", destacou o pesquisador.
De acordo com o professor, o crescimento maior no
número de participantes no Círio ocorreu ao longo do século XX:
• em
1951, a estimativa foi de 200 mil, segundo matéria de O Liberal;
• em
1969, “uma multidão de calculadamente 300 mil pessoas” acompanhou o Círio, como
destacou o jornal A Província do Pará;
• em
1970, com a participação do presidente Emílio Garrastazu Médice, falou-se,
também no Província, em “quinhentas mil pessoas, em marcha lenta, aqui e ali
serpenteando com a corda”,
"Em 1989, estimou-se mais de um milhão e, em
2022, a estimativa foi de 2,5 milhões de pessoas", lembrou Márcio. O
último foi o primeiro pós-pandemia. Aliás, nem mesmo a Covid-19 foi capaz de
parar os devotos e promesseiros em 2020 e 2021, quando não houve procissões
oficiais presenciais, mas mais de 400 mil pessoas foram às ruas.
De acordo com o antropólogo Isidoro Alves,
referindo-se aos Círios de 1974 e 1975, “para a população de Belém, estimada
[na época] em 800 mil habitantes, isto significa que perto de três quartos
desse total participam do Círio”.
• Por
outro ângulo
Segundo Márcio, este fenômeno tem a ver com o
aumento da devoção a Nossa Senhora de Nazaré, com o aumento da população e com
a melhoria do sistema de transportes no Brasil, "mas, existe um dado que,
apesar de silenciado, constitui um dos principais responsáveis pelo crescente
aumento de pessoas no Círio de Nazaré: a apropriação da Festa de Nazaré pela
indústria do turismo".
Romeiros chegam do norte, do sul, de todo o país e
até do estrangeiro, a pé, a cavalo, em ubás, transatlânticos e monstros
aéreos...”
— Reportagem de A Província do Pará em 1952.
Desde o início da década de 1950 os jornais
paraenses registraram a chegada de turistas estrangeiros a Belém por ocasião do
Círio de Nazaré, como expôs as pesquisas do antropólogo.
• Arquibancadas
e incentivos
"No Círio de 1964, a prefeitura de Belém armou
um palanque na avenida Presidente Vargas para que os turistas pudessem,
mediante pagamento, assistir a passagem da procissão principal do Círio,
prática que continua até os dias de hoje", pontuou Márcio.
Em 1970, os departamentos estadual e municipal de
Turismo encomendaram folhetos sobre o Círio e a cidade de Belém, com textos em
português e inglês, visando conferir “uma nova dimensão ao turismo” do Pará,
como divulgou o A Província do Pará na época.
No mesmo jornal, em 1974, uma matéria anônima
informava que “foi montado um eficiente esquema publicitário em seu torno [Círio],
capaz de garantir-lhe o sucesso e divulgação em todo o país e,
consequentemente, atrair cruzeiros para a cidade”.
Outro fato que evidencia a relação entre Círio e
turismo, de acordo com o pesquisador, foi a criação da romaria fluvial, em
1986, por iniciativa da Companhia de Turismo do Estado do Pará (Paratur).
Estando, portanto, diretamente ligada aos interesses da indústria cultural e do
turismo.
"Não à toa, o presidente da Paratur, àquela
época Carlos Rocque, comemorou, poucos anos antes, a exibição do Círio como
tema de escola de samba no Rio de Janeiro. Em uma matéria publicada no jornal O
Liberal, em 1989, Carlos dizia ser o 'Círio, a maior procissão do Brasil como
destino turístico.”
Ainda segundo o antropólogo, a festa católica atrai
atualmente em torno de 80 mil turistas de fora do estado e injeta na economia
local, por ano, um valor em torno de R$ 100 milhões.
• Propósito
e desafios
Ao longo dos centenários da maior procissão
católica do mundo, o Círio, em sua essência, é tempo de agradecimento, de
renovação da fé, de confraternização. Pela população paraense, os turistas
serão sempre bem-vindos e muito bem acolhidos pelos irmãos, devotos da
santinha.
"O desafio daqueles que organizam o Círio é
manter o equilíbrio entre a divulgação da Festa de Nazaré no mercado de turismo
religioso e as formas tradicionais de pagamento de promessas dos devotos
paraenses", destacou Márcio.
Promesseiros seguram na corda, em sacrifício e fé
na procissão do Círio 2022 — Foto: Brenda Rachit
Como exemplo, o historiador pontua que o excesso de
arquibancadas pagas na avenida Presidente Vargas diminui o espaço das vias
públicas aos devotos que costumam se reunir na área para ver a passagem da
santa.
"Muito embora pressionado pela busca excessiva
de turistas, o Círio segue como uma procissão popular, popularíssima. São os
devotos de Nossa Senhora, com seu modo peculiar de acompanhar a procissão e de
pagar as promessas alcançadas, que dão ao Círio de Nazaré a sua
identidade" completou.
Fonte: g1

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