COMO A BAHIA SE BANHOU EM SANGUE
Em setembro, 56 pessoas foram mortas pelas forças de segurança da
Bahia – média de quase duas por dia. Três policiais morreram em
confrontos. Os tiroteios e operações da polícia, antes restritos a bairros
periféricos de Salvador, como Paripe e São Cristóvão, tornaram-se parte da
paisagem em Calabar e Alto das Pombas, bairros próximos à área mais valorizada
da cidade. A violência urbana, em sua versão extrema, bateu à porta da classe
média.
Daí em diante, a crise seguiu um roteiro
tradicional. Autoridades tiraram do armário frases de efeito – “não se
enfrenta o crime organizado com rosas”, disparou Ricardo Cappelli,
secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública; “não reconheço nenhum
parâmetro de ONGs que fazem publicações sobre questão de segurança”, disse Rui
Costa, ministro da Casa Civil, referindo-se aos dados públicos coletados pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em seguida, como de praxe, põe-se em
prática uma série de ações midiáticas. Libera-se mais recursos para o “combate
ao crime”, cria-se uma força-tarefa para lidar com o descontrole da violência e
abre-se caminho para o uso de caveirões, que fazem história na tragédia carioca
de cada dia.
A ineficácia dessa receita é facilmente mensurável
com dados. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes na Bahia cresceu 1.393%
entre 1981 e 2021. Os dados são do SIM/DataSUS. Como fica claro no gráfico
abaixo, esse descontrole da violência independe do partido que ocupa o governo
estadual. Se é verdade que a taxa de homicídio cresceu 103% nas gestões do PT,
ela já tinha aumentado 217% com o PFL – partido de direita que mais tarde
mudou de nome para Democratas e se diluiu no União Brasil. Parodiando
Nelson Rodrigues, que dizia que o “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra
de séculos”, pode-se dizer que a insegurança pública também não se
improvisa – é obra de décadas de um trabalho muito bem articulado
entre diferentes partidos incapazes de oferecer soluções reais para a população.
A Bahia é um caso exemplar do que acontece, com
pequenas variações, no Brasil inteiro. As crises se sucedem, com picos
pontuais, e são tratadas com placebos. A resposta costuma vir por meio da
violência policial. Não é surpreendente que a Bahia tenha ultrapassado o Rio de
Janeiro em 2022 como o estado em que a polícia mais matou. Segundo o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, foram 1.464 mortes causadas por agentes do
Estado, uma incrível média de quatro por dia. A Bahia também liderou o ranking
de mortes violentas (6.659).
Uma tragédia dessa escala só pode ser fruto de uma
constelação de políticas equivocadas, repetidas à exaustão por décadas.
Tentaremos elencá-las, de forma resumida, neste artigo.
As crises de segurança no Brasil costumam estar atreladas a três erros.
O primeiro é a aposta nos gêmeos guerra às drogas e encarceramento
em massa. Trata-se de problema conhecido e, ainda assim, incompreendido
pelas autoridades brasileiras. O combate ao tráfico não apenas é anódino no
objetivo de reduzir o consumo de drogas, como acarreta violência sistêmica e
geração de renda drenada para a compra de armamentos por criminosos (como
estamos vendo na Bahia) e ainda para a corrupção policial. A superlotação dos
presídios é a consequência natural. Entende-se, no Brasil, que a prisão é um
remédio para todos os males.
Esse erro representa um custo financeiro enorme
para o Estado. Prende-se
pequenos traficantes em vez de investigar os chefes do esquema.
Conforme os presídios lotam, esgotam-se os recursos da polícia e cria-se
um cenário fértil para o surgimento de facções.
A Bahia novamente nos serve de exemplo: em 1981, o
estado contabilizava 1.377 presos; em 2021, eram 15.169. A população carcerária
decuplicou, portanto. Como mostramos no gráfico acima, nada disso ajudou a
dirimir a crise de segurança. Pelo contrário, os homicídios subiram de forma
quase constante, passando de 310 casos para 7.206, nesses quarenta anos. O
crime organizado ganhou força. As notícias dão conta de que, hoje, há oito
facções atuando na Bahia. No Brasil, segundo o último levantamento feito pelo
Anuário Brasileiro de Segurança Pública, havia 53 facções em 2022, todas
surgidas de dentro dos presídios.
O segundo erro é a crença que o uso indiscriminado
de força pelas polícias vai resolver algum problema. Além de ferir direitos
humanos, essa política tem consequências perniciosas para a segurança pública.
Primeiro, porque a linguagem da guerra e da brutalidade – que se
manifesta nas periferias, mas não nos bairros nobres – cria um abismo
entre polícia e comunidade, inviabilizando a efetividade do trabalho policial.
Segundo, porque a violência generalizada da polícia acaba por banalizar o uso
da força. A sociedade passa a aceitar esse padrão de atuação como natural,
condenando apenas a conduta individual de um ou outro policial que exagerou na
dose. O comando das polícias não é responsabilizado. Por fim, a violência tem
um custo psicológico para o próprio policial. Não são raros os casos de agentes
que, sofrendo com problemas emocionais, suicidam-se. O tenente-coronel
aposentado Dave Grossman explica esse fenômeno no livro On Killing: The
Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society, que é adotado
por todas as forças de segurança norte-americanas.
O terceiro erro consiste na ideia de que segurança
pública é assunto só de polícia. Essa visão torta impossibilita que se pense os
fatores sociais por trás do crime. Com isso, não permite uma política de
segurança pública integrada a outras pautas, como os cuidados com a primeira
infância, o acesso à educação, à assistência social, à saúde, ao esporte, à
cultura. Tudo isso é descartado como sendo um sonho de longo prazo,
inatingível. A segurança pública no Brasil só pensa no imediato. “Não se
enfrenta o crime organizado com rosas.”
Na Bahia e no Brasil, a política de segurança se
resume a orquestrar o policiamento ostensivo, operações pontuais e, quando
necessário, o uso da inteligência policial. Não há um projeto de mudança, que
enxergue a segurança como um direito social a ser gradualmente atendido. A
seguir nessa trilha, continuaremos gastando bilhões de reais em efetivo
policial, equipamentos de ponta e prisões caríssimas. Deixaremos de lado aquilo
que vários pesquisadores já concluíram se tratar da solução mais barata e
efetiva para o descontrole da segurança pública: investir nas crianças, na
educação, no futuro.
O morticínio da Bahia e a reação de integrantes do
governo Lula mostra que o problema não é só o improviso das políticas de
segurança: há também uma dose de negacionismo. O combate à violência deve ser
feito com base em evidências científicas e ações intersetoriais. Desqualificar
as estatísticas, como fez o ministro Rui Costa, não é solução para o
problema.
A Bahia está como está graças a uma sucessão de
erros. Jerônimo Rodrigues (PT-BA), primeiro governador autodeclarado indígena,
pode mudar essa história se não ceder ao canto dos falcões. Do contrário, só
nos restará torcer para que a missiva de Caetano Veloso ao Papa Francisco dê
resultado e que Nossa Senhora Aparecida tenha piedade de nós.
Fonte: Revista Piauí
Nenhum comentário:
Postar um comentário