Como as mudanças climáticas podem pôr em risco o café brasileiro
À medida que a temporada de incêndios atinge seu
pico na região amazônica, produtores de café localizados a milhares de
quilômetros de distância também vivem seu inferno particular. Fazendas como a
de Felipe Barretto Croce, em Mococa, no estado de São Paulo, têm visto as
queimadas aumentarem nos últimos anos, pondo em risco a produção daquele que é
o maior exportador de café do mundo.
“A gente vê que agosto e setembro são meses
críticos de final de época de seca, evapotranspiração, déficit de água no solo.
Começa a ficar crítico e a gente vê muitos fogos, muito incêndio na região”,
explica Croce.
A Fazenda Ambiental Fortaleza (FAF), propriedade da
família de Felipe, está situada interior de São Paulo, no meio de dois biomas –
o Cerrado e a Mata Atlântica – onde 10 hectares de café arábica orgânico estão
se tornando cada vez mais vulneráveis às mudanças do ambiente, em grande parte
acentuadas pela perda de vegetação na Amazônia.
“Nos últimos anos, tivemos dias com mais climas
extremos: frio mais intenso e calor mais intenso. Estamos vendo um déficit de
chuva no geral. Isso provavelmente por conta de muito desmatamento ao redor, no
Cerrado e na Amazônia”, diz Croce.
A previsão é de que essas estações secas e quentes
se tornem piores e mais frequentes. A modelagem climática da plataforma Gro
Intelligence estima que o número de dias com temperaturas extremas acima de 34
°C no período crítico de floração do cafeeiro, entre setembro e outubro,
aumentará em até 10 dias por
mês até 2050. Os dados sugerem que a produção de café do
Brasil provavelmente será a mais severamente afetada de todos os países
produtores de café estudados (Colômbia, Peru, Quênia e Etiópia), com a previsão
de que as chuvas também diminuam em 10% até meados do século.
Duas espécies de café são cultivadas no Brasil,
robusta e arábica, mas há muitas variedades diferentes nas 15 regiões
produtoras. O arábica, com seu sabor rico e frutado, é o grão preferido de
muitas fazendas especializadas de pequenos produtores. No entanto, é muito mais
suscetível a mudanças climáticas. Pesquisassugerem que a exposição a temperaturas acima de 30 °C pode levar a
anormalidades e degeneração do cafeeiro. Desde 2010, as temperaturas em todos
os municípios produtores de café brasileiros aumentaram em média 1,2 °C durante
o período de floração.
Com o clima extremo se tornando mais frequente, o
tempo entre os estresses climáticos nos cafezais brasileiros está mais curto, o
que significa que as plantas não têm a chance de se recuperar totalmente. Os
efeitos de uma seca severa em 2020 e da pior geada em 27 anos em 2021 ainda
estão sendo sentidos pela espécie arábica, altamente sensível.
Mais ao sul, em Bragança Paulista, também no estado
de São Paulo, José Oscar Ferreira Cintra, fazendeiro de café de quinta geração,
produz o que ele descreve como a “Ferrari do café”. Mas ele está horrorizado
com o comportamento errático de seus cafeeiros.
“O clima está embaralhado. Não há uma sequência
lógica como havia”, diz Cintra. “Nós temos momentos que era para estar seco, e
está chovendo. O contrário também acontece. E a planta não sabe como reagir.
Ela quebra totalmente a sua sequência lógica. A planta tem flor, chumbinho
[frutos em estágio inicial], café maturado, café seco, tudo ao mesmo tempo.
Isso é um horror.”
Cintra ressalta que essa sequência ilógica resulta
em uma maturação desigual do café, o que, por sua vez, não apenas resulta na
diminuição da qualidade e do sabor dos grãos como também torna os cafezais mais
suscetíveis a doenças.
“Essa mudança climática, ela afeta a saúde da
planta. Quando você tem uma planta sadia, ela dificilmente pega doença. Ou se
pega, ela resiste, combate. Agora, com a mudança, é uma planta que está sem
defesas”, explica Cintra.
·
Impacto até em regiões
com muita água
Desde as montanhas escarpadas das Matas de Minas,
na divisa de Minas Gerais e Espírito Santo, até as colinas onduladas da
Mogiana, no estado de São Paulo, não há duas regiões produtoras de café iguais.
Isso também significa que as experiências dos agricultores e os impactos
climáticos são variados.
Com mais de 1.400 metros de altitude em seu ponto
mais alto, a fazenda de café de Afonso Donizete Lacerda, em Dores do Rio Preto,
no Espírito Santo, tem escapado até agora de alguns dos problemas enfrentados
pelos produtores de café em outras regiões.
“Nós temos muita água, nós estamosem uma região
privilegiada. Todas as propriedades têm muita nascente, então água não é
problema aqui. Nós temos uma chuva aqui de 1.600 milímetros por ano, isso é
suficiente pros cafezais”, diz Lacerda. “A gente não precisa irrigar nada,
então isso favorece também a produção.”
Mas mesmo ali, na fazenda de Lacerda, produtora de
café há 200 anos, os padrões climáticos estão mudando. “Nos últimos 5 anos,
essa florada de março passou a produzir menos. Janeiro tem sido chuvoso, e a
gente acha que é isso que está afetando a diminuição da florada tardia aqui”,
explica.
Com a projeção de que mais de
50% das terras em todo o mundo se tornarão inóspitas para o
café devido às mudanças climáticas até a virada do século, conforme previu um
estudo pela Universidade de Zurique no ano passado, pode parecer tentador
considerar a migração da produção de café do Brasil para regiões de altitude
elevada ou mais frias.
Mas o especialista em agrometeorologia Jurandir
Zullo Junior, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à
Agricultura da Universidade Estadual de Campinas (Cepagri/Unicamp), alerta para
os riscos da migração dos cafezais para outras áreas produtoras, menos
tradicionais.
“A principal preocupação é que a produção do café
necessita de uma estrutura. Não é uma planta que você vai deslocando facilmente
como uma cultura de grãos, que em 120 dias ou 90 dias você produz, como o caso
do feijão. O agricultor normalmente é especializado, já tem uma tradição, já
tem uma experiência. Por isso a adaptação de uma cultura perene é muito
difícil”, explica Zullo Junior.
Vale recordar que estados como Espírito Santo e
Rondônia também têm uma produção importante de café, porém da espécie Coffea
canephora, com suas variedades robusta e conilon. Acredita-se que ambas
sejam mais resistentes às mudanças climáticas, mas um estudo
recente realizado por acadêmicos na Itália destaca a
falta de pesquisas sobre o robusta em comparação com a espécie arábica.
Apesar disso, as previsões sugerem que o Brasil
poderá perder até 60% das áreas adequadas de cultivo de café conilon até 2050.
Embora a produção deste ano em Rondônia não tenha sido afetada por condições
climáticas extremas, a história é bem diferente no Espírito Santo, onde os
eventos climáticos, incluindo invernos frios e falta de chuvas, reduziram a
produção total de conilon em 10,8%.
·
Como adaptar uma cultura
delicada
Como 78% de todo o café no Brasil é produzido por
pequenas fazendas, a adaptação será fundamental; no entanto, não há uma solução
única para todos os casos e a adaptação, por si só, não garantirá a
sobrevivência dos cafeeiros nessas diversas regiões.
De acordo com Zullo Junior, que pesquisa os efeitos
do clima na agricultura há quase 40 anos, o café é uma cultura particularmente
vulnerável às mudanças de temperatura e ao regime de chuvas: “As perdas e a
redução de produção são muito grandes porque, pela própria característica, a
planta tem um limite bem definido de adaptação. É uma planta de sub-bosque, ela
não tolera temperaturas muito altas nem muito baixas”.
A técnica de adaptação mais usada no Brasil é a
irrigação, que permite aos cafeicultores regar suas lavouras durante os
períodos mais secos e reduzir o estresse das plantas. Mas cada região tem diferentes
suprimentos de água. Entretanto, com o aumento das secas, alguns agricultores
estão preocupados com a gestão dos recursos hídricos, exigindo melhores
licenças e controle do uso de aquíferos.
Um estudo da Unicamp descobriu que outra técnica de adaptação, o
sombreamento, que é árvores maiores são plantadas entre os cafezais para
fornecer sombra, pode reduzir a temperatura do ar em 0,6 °C, além de reduzir
outros estresses, como o vento e o aumento da umidade do ar. O sombreamento
também evita a degradação do solo, atua como controle de pragas e absorve
carbono.
De acordo com Zullo Junior, a adaptação é algo que
precisa de investimento. Agora as pesquisas estão se voltando para ajudar a
encontrar soluções que não apenas protejam os pés de café de doenças e pragas,
mas também os tornem resistentes ao clima.
“O melhoramento genético é desenvolver plantas mais
adaptadas a temperaturas estresses. Essa provavelmente é a técnica mais
adequada, só que ela leva um tempo de desenvolvimento, pelo menos quinze anos”,
explica Zullo Junior.
·
Fazendas familiares:
parte da solução
A agricultura não é apenas considerada um dos
setores mais vulneráveis à emergência climática, mas também é amplamente
reconhecida como uma grande parte da solução devido à sua capacidade de reduzir
as emissões de gases de efeito estufa.
Muitos produtores familiares de café no Brasil estão
bem cientes disso, pois há gerações vêm se esforçando para produzir café de
alta qualidade em harmonia com o delicado equilíbrio de seu bioma local. Essa
paixão por proteger e restaurar a biodiversidade por meio da agrofloresta está
no cerne da fazenda de Felipe Barretto Croce, a Fazenda Ambiental Fortaleza
(FAF), e essa abordagem está produzindo resultados positivos para a produção e
o planeta.
“Estou mudando completamente o manejo da forma que
vinha sido feito no passado. Hoje estou plantando com uma agrofloresta
funcional no meio do café, totalmente mecanizada, para criar um habitat
confortável, equilibrado e estável para o meu café”, diz Croce.
A FAF, que também tem mais de 40% de floresta em
sua área, utiliza uma ampla gama de técnicas, como florestamento e proteção
contra o vento (que mantém a umidade no solo), para garantir não apenas a saúde
das plantações de café como também a saúde do solo e dos importantes
polinizadores.
Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Alfenas (MG), que incluiu
a FAF, constatou um aumento de 30% ou mais na produtividade devido à boa
polinização natural. No entanto, a pesquisa também concluiu que em São Paulo,
Minas Gerais e Espírito Santo há 43% dos municípios que estão abaixo da taxa
mínima de Reserva Legal prevista pelo Código Florestal (20% da propriedade em
todos os biomas, exceto a Amazônia).
Essa delicada rede de produção, proteção e
regeneração da natureza parece estar produzindo bons resultados e tem o
potencial de mitigar alguns dos impactos climáticos. “Com as mudanças
climáticas e a destruição da biodiversidade ao nosso redor, nunca foi tão
importante nos preparar para um futuro complicado”, conclui Croce.
Fonte: Mongabay
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