quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Caso Abin: Contrato de programa espião com Governo Caiado, em Goiás, previa 10 mil acessos

O contrato entre o governo de Goiás, na gestão de Ronaldo Caiado (União), e a empresa israelense Cognyte permitia 10 mil acessos pelo programa First Mile num prazo de 24 meses a contar de junho de 2021, segundo documentos obtidos pela Agência Pública. O uso do programa pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) está sob investigação da Polícia Federal que, na sexta-feira (20), desencadeou a Operação Última Milha.

O First Mile permite acompanhar a movimentação de uma pessoa que esteja usando um telefone celular. A PF investiga se o programa foi usado por servidores da Abin para acompanhar os passos de políticos, jornalistas, advogados ou críticos do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). A vigilância em massa por essa mesma empresa foi detectada em países como Mianmar e Sudão do Sul.

O governo de Goiás contratou em 2020 a Cognyte (então denominada Suntech S/A) pelo valor de R$ 7,6 milhões por meio da Secretaria de Segurança Pública. O contrato diz genericamente que se tratou de uma “aquisição de solução de interceptação telefônica”. Na segunda quinzena de setembro, a Pública solicitou, por meio da Lei de Acesso à Informação, acesso à execução do contrato, incluindo as notas fiscais, para tentar entender todo o alcance e a capacidade dos programas oferecidos pela Cognyte.

No dia 3 de outubro, ou seja, após a solicitação da Pública, o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, André Gustavo Corteza Ganga, classificou as informações solicitadas pela reportagem como “reservadas” por 5 anos. Com isso, só poderão ser conhecidas a partir de 3 de outubro de 2028.

No despacho, que determinou o prazo de sigilo, o delegado argumentou: “Trata-se de informações que possibilitaria ações direcionadas pela criminalidade, a neutralização de ações de inteligência e investigação; além do planejamento de novos crimes esquivando-se da atuação da polícia judiciária, bem como fragilizando o banco de dados referente à emissão de carteiras de identidade no estado de Goiás, comprometendo a segurança do Estado e da sociedade”.

A Pública procurou a SSP de Goiás nesta terça-feira (24) novamente com dúvidas sobre o contrato, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

Em junho de 2021, o governo goiano fez um aditivo ao contrato de 2020 a fim de estender a validade dos acessos no First Mile por mais dois anos. Desde o começo, o negócio foi conduzido a partir de uma declaração de inexigibilidade de licitação, ou seja, o governo considerou que não havia outra empresa capaz de oferecer os mesmos produtos e serviços além da Cognyte.

O contrato e seu aditivo confirmam que o First Mile, também identificado como “Firstmile Vigia Embedded e Standalone”, estava na cesta de produtos oferecida pela empresa israelense. O uso da ferramenta, segundo o contrato, custou R$ 2,2 milhões aos cofres públicos do valor total de R$ 7,6 milhões.

Além do First Mile, o contrato prevê o acesso a uma ferramenta denominada “Vigia Elite Advanced Version”. Os dois programas estão inseridos numa atividade genérica de “solução de interceptação telefônica e telemática”.

O contrato e o aditivo de Goiás nada esclarecem sobre a real capacidade das ferramentas. Na cláusula quinta do contrato, o governo estadual “reconhece que as informações contidas no Sistema e no Software Licenciado constituem segredos comerciais valiosos e pertencentes à Suntech [Cognyte], devendo proteger e manter confidenciais tais informações, e se compromete a não realizar nenhuma tentativa de cópia, alteração, mau uso ou violação de tais informações”.

Além de Goiás, o Amazonas também contratou a ferramenta Vigia Elite, como a Pública apurou a partir de publicação no Diário Oficial do Estado. A plataforma atenderia à Secretaria de Segurança Pública, às Polícias Civil e Militar, bem como ao Ministério Público do estado – este último, inclusive, em agosto de 2018, contratou a “extensão de garantia dos serviços de suporte e manutenção da plataforma VIGIAELITE” por 36 meses, por mais de R$ 115 mil.

Conforme a Pública antecipou com exclusividade na última sexta-feira (20), além de Goiás, Amazonas e Abin, sete unidades da Federação, setores do Exército e da Aeronáutica e a PRF (Polícia Rodoviária Federal) fecharam contratos com a Cognyte desde dezembro de 2017, quando a ferramenta foi adquirida pela primeira vez pela Abin, ainda durante o governo Michel Temer. Os contratos somaram mais de R$ 57 milhões, de acordo com os diários oficiais dos estados.

Quatro dos governos estaduais que adquiriram produtos e serviços da empresa israelense se recusaram a prestar quaisquer informações à Pública sobre a execução contratual (Espírito Santo, Mato Grosso, Goiás e São Paulo).

Outros quatro estados (Alagoas, Amazonas, Rio Grande do Sul e Santa Catarina) sugeriram que as informações fossem buscadas no Portal da Transparência. Porém, os endereços eletrônicos divulgam apenas os contratos, não os relatórios de execução e outros detalhes solicitados.

O governo do Pará foi o único a enviar nota de empenho, contrato e seu extrato publicado em Diário Oficial, mas não deu acesso aos relatórios de execução contratual e às notas fiscais. Assim como no caso de Goiás, os negócios foram fechados sem licitação.

       Investigação interna da Abin foi parar na CGU para driblar pressão

 

Uma sindicância sobre o uso irregular do sistema First Mile, aberta em março, foi parar na Controladoria-Geral da União (CGU) para tentar driblar a pressão interna sofrida por funcionários da agência, que estavam reticentes em colaborar com a investigação.

Como mostrou a coluna, os 20 depoimentos de agentes da Abin na última sexta-feira (20/10) demonstram, para os investigadores da PF, como os servidores não estavam se sentindo à vontade em colaborar com a investigação interna. Os relatos são mais detalhados e completos do que os testemunhos feitos no âmbito da sindicância.

A sindicância começou dentro da Abin, mas foi avocada pela CGU há pouco mais de um mês, após o órgão de controle ser alertado de que uma investigação conduzida externamente traria mais independência e poderia incentivar os servidores a testemunhar.

Um dos responsáveis pela aquisição do sistema, Paulo Maurício Fortunato se tornou o número 3 da agência na atual gestão, o que pode ter desestimulado os envolvidos a dar detalhes sobre como funcionava o uso irregular do software de monitoramento, na avaliação da PF.

A CGU pediu também ao ministro Alexandre de Moraes o compartilhamento de provas do inquérito da PF que possam ajudar a conduzir a sindicância, mas ainda não teve resposta.

 

       Abin monitorou alvos em áreas ricas de Brasília e do Rio de Janeiro

 

Com o sistema de monitoramento First Mile, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) monitorou alvos em bairros ricos do Rio de Janeiro e de Brasília durante as eleições municipais de 2020, o que reforça a suspeita da Polícia Federal (PF) de uso político e ilegal da ferramenta.

A Polícia Federal descobriu que o programa foi usado para monitorar alvos em mansões do Lago Sul, região rica de Brasília, durante a eleição de 2020. Também houve monitoramento em bairros nobres do Rio de Janeiro, como informaram os repórteres Paolla Serra , Eduardo Gonçalves e Thiago Bronzatto.

Os investigadores estão fazendo um levantamento de quem são os titulares dos celulares monitorados, mas já confirmaram que constam na lista de alvos nomes de políticos, jornalistas, advogados e até professores universitários vistos como opositores de Jair Bolsonaro.

As máquinas da Abin nas quais era usado o sistema foram formatadas, mas a PF já conseguiu restaurar um backup e descobriu que foi usado um software para apagar os dados dos monitoramentos.

Segundo integrantes da PF, em várias ocasiões, a Abin negou pedidos de acesso aos arquivos e às máquinas em que era usado o First Mile. Há uma suspeita de que a cúpula da agência tenha atuado para obstruir a investigação.

Houve 30 mil monitoramentos, mas a agência forneceu ao STF dados de apenas 1,8 mil antes das buscas. Além disso, a Abin não informou os nomes dos alvos monitorados, alegando não deter essa informação. Disse quais servidores usavam as máquinas, mas não qual usuário no sistema correspondia a cada servidor, segundo os investigadores.

Na Abin, por outro lado, a versão é de que a agência colaborou com a investigação e respondeu aos ofícios e que, portanto, não há justificativa para a busca e apreensão realizada na sexta-feira passada (20/10).

Na representação que pediu a busca e apreensão, a PF citava, para justificar a operação, a suspeita que a cúpula da agência estaria atuando para abafar a investigação. O pedido foi acatado por Alexandre de Moraes.

 

       Empresa de “programa espião” alvo da PF também é investigada no TCU

 

A Cognyte, empresa investigada na Polícia Federal (PF) e na Controladoria-Geral da União (CGU) por vender ao governo Bolsonaro um sistema espião ilegal, também é alvo de uma apuração no Tribunal de Contas da União (TCU). A investigação foi solicitada pela então relatora da CPMI do 8 de Janeiro, senadora Eliziane Gama, e mira um contrato da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na gestão Bolsonaro.

Em 7 de agosto, Gama pediu formalmente que o TCU apurasse todos os contratos da PRF com a Cognyte. O processo, que ainda não teve decisão, é relatado pelo ministro Vital do Rêgo. A senadora citou que em 2018, durante o governo Temer, a corporação pagou R$ 4 milhões à firma por um serviço de monitoramento de redes sociais. Como parte dos repasses foi feita nas categorias orçamentárias “policiamento ostensivo nas rodovias” e “combate à criminalidade”, o negócio chamou a atenção da CPMI.

Em 2021, já no governo Bolsonaro, a PRF voltou a fechar contrato com a Cognyte. Na época, a PRF era comandada por Silvinei Vasques, que está preso por supostamente ter usado o órgão para favorecer Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2022. A descrição do contrato, genérica, mencionou “serviços de manutenção e treinamento” para uma ferramenta da companhia.

A empresa israelense é suspeita de ter vendido ao governo Bolsonaro, por meio da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a tecnologia First Mile. O serviço, fora do escopo da Abin e sem autorização judicial, consistiria num monitoramento ilegal de ministros do STF, advogados, professores e jornalistas vistos como opositores de Bolsonaro. Na última sexta-feira (20/10), a PF prendeu dois servidores da Abin, que no mesmo dia foram demitidos pelo governo Lula.

A CGU, por sua vez, analisa o caso depois de ter assumido uma sindicância interna aberta pela Abin para apurar o caso. A CGU tomou a decisão depois de detectar riscos de parcialidade na investigação dentro da Abin. A PF também constatou que os servidores da Abin não se sentiam à vontade em colaborar com a apuração interna.

 

Fonte: Por Rubens Valente, Laura Scofield e Caio de Freitas Paes, da Agencia Pública/Metrópoles

 

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