'Aqui quem manda no preço do gás não é a Petrobras': como milícia e
tráfico controlam venda em comunidades do RJ
Quando precisa de gás para sua casa, em uma favela
da zona sul do Rio de Janeiro, Pedro (nome fictício) compra o produto em um dos
pontos de revenda na comunidade. O gasto atualmente chega a R$ 146 pelo botijão
de 13 quilos. Fora dali, no “asfalto”, o mesmo botijão pode ser adquirido por
cerca de R$ 100, mas essa não é uma alternativa possível nem para Pedro, nem
para seus vizinhos.
O sobrepreço no GLP (gás liquefeito de petróleo),
conhecido popularmente como gás de cozinha, é resultado de um mercado dominado
pelo crime organizado, neste caso, por uma quadrilha de traficantes.
O grupo obriga que moradores comprem o gás no
comércio local e impõe taxas à atividade econômica na região que dominam. De
mototaxistas a comerciantes, todos pagam pelo direito de trabalhar, fazer
negócios ou simplesmente viver na favela perto do mar onde Pedro mora.
O custo pesa no bolso - como o extra pago pelo GLP
essencial para cozinhar -, em uma peculiar inflação do crime. O processo também
atinge a água mineral em galões e chega até o carvão para churrasco.
“Há pelo menos dez anos é assim”, diz Pedro, que é
aposentado, à BBC News Brasil. Ele também paga R$ 100 por mês aos traficantes
apenas para ter acesso à internet, depois que a operadora oficial avisou que não
poderia mais fornecer o sinal na comunidade. Antes, gastava R$ 150 mensais com
a concessionária, mas por um pacote com mais serviços. “Somos abandonados pela
fiscalização pública.”
O domínio sobre o comércio do gás de botijão, comum
em muitas comunidades pobres do Rio, é um dos negócios em disputa na “guerra”
que, há mais de um ano, envolve milicianos e traficantes na cidade.
Em jogo, também está o dinheiro que flui não só da
imposição do comércio de botijões a preços turbinados como também do controle da
venda ilegal de acesso à internet, TV a cabo, transporte por van, carros de
aplicativo ou motocicletas, aluguel e comércio de imóveis, além da venda de
diferentes produtos, incluindo drogas.
O foco é a zona oeste da cidade, onde assassinatos
e chacinas registram aumento neste ano como reflexo do confronto entre grupos
rivais, mas repercussões se espalham pelo município.
Na segunda-feira (23/10), criminosos incendiaram 35
ônibus e um trem. Foi um protesto contra a morte de um dos chefes milicianos em
uma operação da Polícia Civil. Matheus da Silva Rezende, o Faustão, de 24 anos,
era procurado sob acusação de integrar a milícia comandada por seu tio , Luiz
Antônio da Silva Braga, o Zinho. Sua eliminação embaralhou ainda mais a luta
entre grupos milicianos e entre essas quadrilhas e o narcotráfico.
O conflito também é apontado pela polícia como
motivo para o ataque que matou três médicos no início de outubro. Uma das
vítimas tinha semelhança física com um rival dos assassinos.
O cenário da disputa, a zona oeste da capital
fluminense, equivalea 70% do município. Nela, vivem cerca de 2,5 milhões de
pessoas.
Aos menos dois fatores favorecem a expansão do
esquema ilegal de venda de gás e outros produtos. O primeiro deles é a
possibilidade de domínio territorial armado, imposto por milicianos ou
traficantes a comunidades pobres, com pouca ou nenhuma presença oficial do
Estado.
Outro fator é a “milicianização” do narcotráfico.
Há alguns anos, traficantes começaram a copiar o modelo de negócios das
quadrilhas milicianas.
Esses bandos, originalmente formados por agentes
das forças de segurança, além de ex-policiais e ex-bombeiros, monopolizam
serviços e venda de produtos nas favelas ou cobram taxas ilegais sobre eles.
Agora, os papéis se misturam cada vez mais:
traficantes exploram serviços como a venda dos botijões, enquanto milicianos se
aliam a alguns deles na venda de drogas.
Mas como funciona o domínio do comércio do gás de
cozinha?
• Estatísticas
mostram sobrepreço do gás de cozinha
Um levantamento feito pelo Grupo de Estudos dos
Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) a pedido da BBC
News Brasil dá algumas pistas sobre os mecanismos que governam o comércio de
gás em comunidades controladas por criminosos no Estado do Rio.
O estudo comparou os preços médios do gás de
cozinha em áreas sem controle de grupos armados com os valores cobrados em
comunidades cariocas dominadas pelas milícias ou pelo tráfico.
No Brasil, o preço do gás de cozinha não é
tabelado, mas é fortemente influenciado pelo preço que a estatal Petrobras
determina para o insumo. Varia entre Estados a depender dos impostos cobrados.
Altera-se ainda de acordo com o preço de distribuidoras e revendedoras.
Semanalmente, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) coleta os preços na ponta e
calcula o preço médio do GLP por Estado.
No levantamento, o Geni-UFF analisou os valores
médios para o gás entre 2008 a 2022 apurados pela ANP. Também os cruzou com
dados de mais de 13 mil perímetros - como são denominadas favelas, conjuntos
habitacionais e sub-bairros pobres que formam a sua base de dados.
O levantamento do Geni-UFF apontou que, sobretudo
na capital fluminense, moradores de áreas dominadas por traficantes e
milicianos, em geral, pagaram mais pelo botijão, A comparação foi feita com os
valores desembolsados por quem mora em localidades sem controle de grupos
armados.
Nas áreas de milícias, o sobrepreço variou entre
10,31% a 18,19% nos 15 anos analisados. A exceção foi o ano de 2008, quando o
preço no território sob domínio de milicianos ficou abaixo do medido pela ANP
nas áreas dominadas.
Já nas áreas dominadas pelo tráfico, o sobrepreço
do botijão ficou abaixo de 10%, com exceção dos anos de 2013 e 2014, quando os
valores a mais foram 14,6% e 15,2, respectivamente.
• Prática
aproxima milicianos e traficantes
O sociólogo Daniel Hirata, do Geni-UFF, explica que
os últimos anos da série estatística indicam uma aproximação entre os preços do
gás praticados nas áreas dominadas por milicianos e naquelas sob jugo por
traficantes.
Em 2020, na capital, milícia e tráfico cobravam
respectivamente, em média, R$ 63,31 e R$ 67,64 por botijão; em 2021, R$ 83,11 e
R$ 82,84; em 2022, R$ 99,16 e R$ 97,07. O movimento indicaria a adoção cada vez
mais intensa, pelo tráfico, da economia gerida originalmente das milícias.
Segundo Hirata, o modelo dos milicianos é “muito mais diversificado” e atua na
“extração dos recursos urbanos” - água, luz, internet, gás. Aproveita-se do
distanciamento da fiscalização.
“Há uma convergência (de preços) cada vez maior que
pode ser identificada por esse valor parelho, cada vez mais próximo, do botijão
de gás vendido nessas áreas”, afirma. Ele ressalta que o movimento é mais claro
na capital fluminense do que na região metropolitana ou no leste do Estado
(região de Niterói e São Gonçalo, por exemplo).
Segundo Hirata, embora as práticas aproximam
milícias e tráfico, “do ponto de vista sociológico” permanecem diferenças
importantes.
“Porque temos que pensar não só, digamos assim, na
atuação em certos mercados específicos, mas em quais são as redes que
estruturam essa atuação”, explica.
“Aí me parece que ainda há algumas diferenças no
sentido de que as milícias têm redes mais extensas e uma penetração no Estado
que ainda é maior do que o tráfico de drogas”, segue Hirata.
• Especialista
fala em governos criminais
Sob anonimato, moradores afirmam que os
revendedores de gás nas comunidades dominadas por traficantes ou milicianos não
têm escolha. Se quiserem vender gás nas favelas, devem cobrar o ágio no preço
do botijão e repassá-lo aos moradores.
Além de evitar problemas, a contrapartida dessa
simbiose é lucrativa. Os vendedores ganham um mercado exclusivo, sem
concorrência e com preços regulados para cima - pelos criminosos.
Quem desafia essa lógica arrisca a vida. Foi o caso
de um comerciante na zona oeste da capital fluminense. Seu depósito de venda de
água mineral e GLP recebeu tiros de fuzil na noite de 10 de setembro, segundo o
telejornal RJ2, da Rede Globo.
O pequeno empresário de Campo Grande disse à
emissora ter se recusado a aumentar o preço dos botijões, de R$ 80 para R$ 100.
Essa exigência fora feita dois dias antes do ataque, por homens encapuzados.
Eles foram ao depósito, dizendo ser da “milícia do KM 32”, localidade pobre
próxima. Lá, depósitos cobrariam R$ 100 por botijão e pagariam ágio aos
criminosos.
Muitos moradores tinham passado a comprar o
produto, 20% mais barato, com o comerciante de fora da área dominada. Os
criminosos disseram que, se a ordem de reajuste não fosse cumprida, o negócio
seria metralhado.
O cumprimento da ameaça – com cerca de 30 disparos
registrados por câmeras de segurança, que deixaram buracos redondos no muro-
foi um aviso sobre o funcionamento da economia na área.
"O depósito é legalizado. Não faz sentido
isso", queixou-se o homem à emissora, sem se identificar, por segurança.
Antropóloga e professora de segurança pública na
Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz afirma que, nos
territórios dominados pelo crime, o Estado é “terceirizado” para o que chama de
“governos criminais”.
São grupos que, lembra a pesquisadora, administram
água, luz, internet, venda de gás e outros produtos. Essa é uma forma também de
bancar os custos – muitas vezes altos - das atividades criminosas, como aluguel
de armas, por exemplo.
“A economia do gás está articulada com as outras
prestações de serviços essenciais, que garantem o fluxo de caixa cotidiano”,
explica. Falhas nos serviços são reportadas a pessoas próximas aos criminosos,
para que o problema seja sanado, relata ela.
“Por que eu chamo de governos criminais?”, pergunta
ela. “É exatamente porque essas são mercadorias políticas, importantíssimas
ali. Quando você tem o controle do território, você tem o do mercado ilegal. Na
prática, os governos criminais no Rio de Janeiro administram população,
controlam território e regulam o mercado. Quem administra território, controla
população e regula mercado governo é.”
• Auxílio-Gás
destina quase R$ 15 milhões por mês ao Rio
O gás de botijão é um insumo crítico para as
favelas e bairros mais distantes das áreas centrais do Rio. Esses locais não
têm conexão com a rede de gás natural canalizado.
Uma família com quatro pessoas pode consumir
aproximadamente um botijão de 13 kg a cada dois meses, mas isso pode variar e o
gasto ser maior. O valor médio, atualmente, fica em torno dos R$ 100 a cada
compra. O salário mínimo é de R$ 1320 desde 1º de maio.
Para aliviar essas despesas, as famílias mais
pobres têm direito ao Auxílio Gás operado pelo governo federal. O “Vale Gás”,
como é popularmente conhecido, é um benefício repassado pelo Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS) a famílias inscritas no Cadastro Único, com renda
familiar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo.
Desde o ano passado, passou a cobrir o valor total
de um botijão por mês (antes, era metade), calculado pela Agência Nacional do
Petróleo. Essencial para subsidiar a renda dos mais desfavorecidos, o benefício
torna o comércio de gás em áreas mais pobres ainda mais atrativo.
O benefício é pago em dinheiro e não está vinculado
diretamente à compra de GLP, podendo ser gasto em outras mercadorias. Ainda
assim, ao menos parte deste valor deve ir efetivamente para a compra do
botijão, uma despesa básica que pesa na conta dos mais pobres.
No município do Rio, 137.359 famílias receberam os
R$ 14.834.772,00 pelo Vale Gás em agosto de 2023 ( número mais recente
disponível). As milícias controlam cerca de 60% do território do Rio de Janeiro
sob domínio do crime organizado, de acordo com estudo de um conjunto de
entidades que inclui o Geni-UFF.
O território total dominado pelo crime, por sua
vez, representa cerca de 20% da área total da região metropolitana do Rio,
segundo levantamento da ONG Fogo Cruzado.
O coronel da reserva da PM, doutor em Ciências
Sociais e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Robson Rodrigues alerta para a possibilidade de
o dinheiro do Auxílio Gás ser apropriado pelas quadrilhas que dominam esse
comércio.
“Entendo ser extremamente positivo esse fluxo de
dinheiro para os mais vulnerabilizados socialmente”, diz.
“Isso tende a minimizar esses impactos e melhorar a
situação dessas pessoas. No entanto, quando esse aumento de recursos chega a um
local de que o Estado não tem um domínio, e esses grupos criminosos estão à
frente, dominando, observando e vigiando a vida local, evidentemente a chance
de que eles obriguem a usar esses já parcos recursos vai ocorrer. Isso é sempre
negócio, Negócio observa oportunidade de se expandir e de ganhar mais. Então, é
evidente que para que essa política fosse ainda mais efetiva e eficaz, seria
necessária a presença do Estado para vigiar, olhar, cuidar.”
Ex-coordenador das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs), Rodrigues lembra que, quando o processo de pacificação estava “com
bastante força, com fôlego, com recurso, com legitimidade”, a vida, segundo
ele, ficou “mais próxima da normalidade” em comunidades pacificadas. O mesmo,
porém, não ocorreu nas demais favelas.
“Como um contraponto, naquelas comunidades onde não
havia UPP, mas mesmo assim o governo federal colocou recursos, com obras do
PAC, com alguns recursos de transferência de renda para essa população mais
pobre, esses criminosos, sobretudo os traficantes, ainda sem a presença do
Estado, aparelhavam a associação de moradores e acabavam aparelhando toda a
destinação desses recursos”, conta.
“Eles é que orientavam quem ia receber, como ia
fazer. Isso mostrou que obras sociais são de imensa importância, mas se não
tiver um mínimo de segurança antes, para que isso possa funcionar de uma forma
mais próxima de uma normalidade civilizatória, evidentemente que o Estado não
vai conseguir fazer, mesmo com toda a boa vontade e todo o aspecto positivo de
uma política de transferência de renda.”
• Gás,
água e carvão de churrasco
Pedro, morador da favela da zona sul, explica que o
controle vigente em sua comunidade, dominada por traficantes, é rígido. “Não
pode ter concorrente de fora”, conta ele, que nunca tentou comprar gás em outro
local que não a vizinhança. “Se tivesse carro, talvez pensasse nisso, mas
sempre é um risco.”
Morador de um complexo de favelas na zona norte
também dominado por traficantes, Jonas (nome fictício), um desempregado que
vive de biscates que lhe rendem cerca de R$ 2 mil por mês, faz um relato
parecido com o de Pedro. Mas há algumas diferenças, aparentemente ligadas a
relações de vizinhança - afinal, “todo mundo é amigo”, diz.
“O botijão de gás é vendido, na revenda oficial,
por 80 reais. Mas nas comunidades (do complexo) é revendido a R$ 115 no
dinheiro e R$120 no cartão. Isto não ocorre somente com o gás. Também com o
carvão e o galão da água mineral. A pessoa tem um depósito e combina com o
tráfico: “Vou te dar tanto (dinheiro) para (poder) vender meu produto na tua
comunidade ou favela. Então só ele vende”, relata.
Nesse caso, porém, a compra de botijões em outros
locais, fora das favelas, é tolerada. “Ninguém vai revistar o teu carro”, conta
Jonas. Mas há uma condição: o gás deve ser para consumo do morador e não pode
ser revendido a preço mais barato do que o tabelado pelos criminosos.
No Complexo, há cinco distribuidoras de GLP, com
divisão territorial. Um depósito não pode entregar o produto na “área” de
outro, diz Jonas.
“Mesmo os proprietários sendo amigos”, relata.
Jonas afirma que o domínio do tráfico sobre o
comércio de gás na região começou “há dez, doze anos”, copiando prática de
milicianos. Com relação a água e carvão, já tem duas décadas. Ele sente as
consequências desse domínio. Paga R$ 10 por galão de água que, fora do
complexo, custa R$ 5. Também usa transporte por vans, carros de aplicativo,
mototáxis que pagam “pedágio” aos criminosos.
“Logo, pagamos”, diz.
Por nota, a Polícia Civil do Rio afirmou ter
“investigações em andamento” e realizar “trabalhos de inteligência e
diligências para identificar traficantes e milicianos envolvidos na
comercialização ilegal” de gás de botijão. Sem ser específica, a corporação
afirmou que já interditou “dezenas de estabelecimentos irregulares” e
apreendido “centenas de botijas de gás (...) durante as ações”. Também declara
que essas iniciativas “resultaram em prisões de criminosos”.
“A instituição reforça a importância da população
registrar as ocorrências e apresentar informações que auxiliem nas
investigações para identificação e prisão dos envolvidos na prática criminosa”,
diz o texto. “Os registros também podem ser feitos pela internet, por meio da
Delegacia On-line.”
Fonte: BBC News Brasil
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