O que Brasil tem a ganhar ou perder nas eleições argentinas?
O segundo turno das eleições
presidenciais na Argentina será no dia 19 de novembro e vai
opor dois candidatos considerados totalmente antagônicos.
De um lado o atual ministro da Economia, Sergio Massa,
candidato do tradicional grupo peronista de centro-esquerda e que foi o mais
votado no primeiro turno - causando surpresa - com 36,68% dos votos.
Do outro lado, o economista libertário Javier Milei,
que ficou conhecido por propostas polêmicas como extinguir o Banco Central e
dolarizar a economia argentina. Apesar de liderar as principais pesquisas de
intenção de voto, Milei ficou em segundo, com 29,98%.
E de um outro lado da fronteira, no Brasil, o
processo eleitoral na Argentina é acompanhado com atenção, tanto por motivos
políticos quanto econômicos.
Apesar da crise econômica vivida pelo país nos
últimos anos, a Argentina ainda é um dos principais parceiros comerciais do
Brasil.
Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria,
Comércio e Serviços (MDIC) mostram que a Argentina é, há anos, o terceiro maior
parceiro comercial do Brasil, atrás apenas dos Estados Unidos (2º) e China
(1º).
Em 2022, por exemplo, o Brasil exportou US$ 15,3
bilhões em produtos. Isso é o equivalente a 4,5% de todas as exportações
brasileiras.
No mesmo ano, o Brasil importou US$ 13,09 bilhões,
o que gerou um saldo positivo para o Brasil de US$ 2,21 bilhões.
Além disso, a Argentina é um dos membros fundadores
do Mercosul, junto com Brasil, Uruguai e Paraguai.
Diante das incertezas sobre o resultado das
eleições no país, especialistas brasileiros e argentinos ouvidos pela BBC News
Brasil tentam apontar o que o Brasil teria a ganhar ou a perder no caso de uma
vitória tanto de Massa quanto de Milei.
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Propostas antagônicas
Analistas avaliam que a disputa eleitoral na Argentina
tem como pano de fundo um grande tema: a crise econômica vivida pelo país nos
últimos anos.
O país sofre com uma das piores taxas de inflação
do mundo: 138% ao ano.
A inflação fora de controle, por sua vez, é
apontada como um dos elementos responsáveis pela taxa de pobreza no país.
De acordo com os dados mais recentes, divulgados em
setembro deste ano pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec),
vinculado ao governo argentino, 40% da população do país vive em situação de
pobreza.
A título de comparação, um estudo produzido pela
Universidade de São Paulo (USP) estima que, no Brasil, 21% da
população viva na pobreza. Nesse cenário, parte importante do
debate em torno das eleições se travou no campo econômico. Os dois candidatos
prometem recuperar a economia argentina, mas usando caminhos diferentes.
Sergio Massa é um político ligado à corrente
política peronista, fundada pelo ex-presidente Juan Domingo Perón nos anos
1940. O peronismo é, ainda hoje, considerada a principal força política
argentina.
Ao longo de sua trajetória, ele chegou a ser
próximo da família dos ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner, que também
fazem parte do campo peronista. Nos últimos anos, porém, Massa se afastou do
chamado "kirchenrismo" e se aproximou do atual presidente Alberto
Fernández, também peronista.
Em 2022, ele assumiu o comando do Ministério da
Economia.
Durante as eleições, Massa prometeu combater o
avanço da inflação, gerar empregos, usar o estado como uma das forças de
indução para o crescimento econômico, obter superávits fiscais (gastar menos
recursos públicos do que arrecadar) e implementar políticas de assistência à
população mais pobre.
No campo da política externa, Massa é visto como
alguém próximo ao presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com
quem já se encontrou. Essa proximidade, aliás, já foi alvo de críticas de Milei
depois que uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo indicou
que o governo brasileiro teria usado sua influência para liberar um empréstimo
à Argentina e ajudar a candidatura de Massa.
O governo brasileiro, no entanto, negou que tivesse
feito isso.
Do outro lado da disputa, Javier Milei se apresenta
como representante do "anarcocapitalismo", uma filosofia política e
econômica que busca reduzir o papel do estado na economia e em outros aspectos
da sociedade.
Ele defende, por exemplo, que as pessoas poderiam
ter o direito de vender seus próprios órgãos.
Ele se formou em Economia na Universidade de
Belgrano,e fez mestrado no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social
(IDES) e na Universidade Torcuato Di Tella (UTDT).
O economista, que teve passagens pela iniciativa
privada, ficou famoso nos últimos anos ao defender propostas para resolver a
crise econômica do país consideradas "extremas" por analistas.
Entre elas, estariam a de dolarizar a economia
argentina, de reduzir drasticamente a participação do estado na economia e até
mesmo a de extinguir o Banco Central.
No campo externo, Milei já fez críticas aos
governos da China e do Brasil, dois dos principais parceiros comerciais do
país. Durante as eleições de 2022, Milei declarou seu apoio ao então candidato
Jair Bolsonaro (PL) e chamou Lula de "presidiário".
"Javier Milei aos brasileiros: votem em
Bolsonaro e não deixem avançar o presidiário Lula", disse Milei em uma
postagem no X, antigo Twitter.
Ele também prometeu que, caso vencesse as eleições,
não "faria negócios" com a China ou outros países
"comunistas".
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Perdas e ganhos com
'anarcocapitalista' na presidência
As declarações de Milei sobre como seriam as
relações entre Argentina e Brasil caso ele vença as eleições são vistas com
ceticismo e preocupação por analistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Em agosto, Milei disse em entrevista à plataforma
Bloomberg Linea que acredita ser necessário "eliminar" o Mercosul.
"De fato, acho que temos que eliminar o
Mercosul porque é uma união aduaneira defeituosa que prejudica os argentinos de
bem. É um comércio administrado por estados para favorecer empresários",
disse Milei.
Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam
que é importante não levar ao pé da letra algumas das declarações de Milei e
que ele, na presidência, se veria obrigado a adotar alguma dose de pragmatismo.
"Todos sabemos que nas campanhas muito
polarizadas [...] os candidatos tendem a ir aos extremos. No segundo turno
[...] a tendência do candidato passa a ser tentar ir para o centro para
capturar os votos necessários para ser eleito. O que se fala na campanha não é
necessariamente o que será efetivamente implementado", disse o
diretor-presidente da Câmara de Comércio Brasil-Argentina, Federico Servideo, à
BBC News Brasil.
Para Silvio Campos Neto, economista e sócio da
consultoria Tendências, apesar da retórica de Milei, o Brasil pode obter ganhos
com a sua eventual vitória nas eleições de novembro.
"Um ponto positivo talvez seja a possibilidade
deles (argentinos) experimentarem uma mudança nos rumos na condução da economia
que, ao longo de várias décadas, na verdade tem seguido uma linha na direção de
um uso muito grande de mecanismos de estado para dar impulso econômico",
disse Campos Neto à BBC News Brasil.
A tese é de que se o receituário de Milei der certo
e a Argentina superar a crise econômica, isso poderá ter efeitos positivos na
economia brasileira, já que o Brasil é um grande exportador de produtos para o
país.
"Se a macroeconomia Argentina se estabiliza, o
Brasil ganha um mercado importante para as exportações de produtos
industrializados. Lembremos que a Argentina é e tem sido o principal
destinatário de produtos industrializados exportados pelo Brasil",
complementou Federico Servideo.
Os especialistas apontam que até mesmo uma das
propostas consideradas mais radicais de Milei, a dolarização total da economia
argentina, poderia ter efeitos positivos para o Brasil, se implementada com
sucesso. Eles ponderam, no entanto, que a medida é complexa e dificilmente
poderia ser feita de forma imediata porque, atualmente, a Argentina não teria
reservas em dólares em volume suficiente.
"Se essa implementação for bem sucedida, isso
seria algo bem-vindo porque facilitaria as transações comerciais da Argentina
com o resto do mundo, uma vez que ela passaria a utilizar uma moeda
mundialmente aceita", disse Silvio Campos Neto.
"Se houvesse a dolarização, teríamos só uma
cotação (do dólar) e isso facilitaria tremendamente a relação comercial entre
os países", disse Federico Servideo.
Os analistas, no entanto, avaliam que uma eventual
eleição de Milei também poderia resultar em perdas para o Brasil.
A maior parte delas, eles ressaltam, seriam no
campo político.
Eles temem que o desalinhamento ideológico entre
Milei, que é de direita, e Lula, de esquerda, possa atrapalhar planos do
governo brasileiro.
Um dos planos brasileiros que Milei pode atrapalhar
seria o ingresso da Argentina nos Brics, grupo inicialmente formado por Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul. Em agosto deste ano, o grupo anunciou o
ingresso de seis novos membros, entre eles a Argentina, em um movimento que
teve o Brasil como principal articulador.
Em declarações à imprensa, no entanto, Milei e a
candidata que ficou em terceiro no primeiro turno, Patrícia Bullrich, disseram
que retirariam a Argentina dos Brics caso fossem eleitos. Ela declarou apoio a
Milei no segundo turno das eleições.
Para o professor de Política da América Latina na
Universidade de Buenos Aires Ariel Goldstein, a incorporação da Argentina aos
Brics é uma parte central da estratégia do presidente brasileiro para a sua
liderança na América do Sul e na América Latina, e, por isso, "Lula também
está tão preocupado pelas eleições na Argentina".
Outra possível perda do Brasil em uma eventual
vitória de Milei é uma demora ou até mesmo a inviabilidade do acordo comercial
entre Mercosul e União Europeia, negociado desde 1999. Em 2019, o acordo foi
fechado entre os dois blocos, mas ainda precisava passar por um processo de
revisão jurídica.
Neste ano, o bloco europeu enviou uma carta com
exigências na esfera ambiental ao Mercosul que bloquearam o andamento dessa
etapa. Como o acordo vem sendo negociado pelos quatro países do Mercosul em
conjunto, se Milei retirar a Argentina do bloco, como prometeu, isso poderia
ter impactos no seu andamento.
"O acordo está com muitas dificuldades [...]
Mas é fato é que uma fragilização do Mercosul colocaria em xeque esse acordo.
Poderia atrasar ou mesmo eliminar qualquer possibilidade nesse sentido",
disse Silvio Campos Neto.
"Minha principal preocupação é que esse
desalinhamento ideológico prejudique o relacionamento comercial e que,
inclusive, possa vir a prejudicar a convalidação do acordo entre Mercosul e
União Europeia e isso pode vir a acontecer", disse Federico Servideo.
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Peronista no governo e
perspectivas para o Brasil
Os analistas consultados pela BBC News Brasil vêem
possíveis ganhos econômicos e políticos no caso de uma eventual vitória de
Sergio Massa.
No campo econômico, as possíveis vantagens para o
Brasil seriam: aumento do fluxo comercial entre os dois países (caso Massa
estabilize a economia), fortalecimento do Mercosul e apoio para finalizar o
acordo comercial entre o bloco e a União Europeia.
Para Federico Servideo, o governo Lula estaria
apoiando direta ou indiretamente a candidatura de Massa e, caso o peronista
vença as eleições, esse apoio seria retribuído.
"Esse apoio institucional e político
claramente vai permitir um fluxo maior de comércio entre os dois países porque,
de alguma forma, o governo do presidente Lula tenderá, obviamente dentro dos
limites apropriados, a favorecer a Argentina e dará um certo grau de prioridade
a essa relação", disse Servideo.
"Até pela proximidade ideológica entre os
grupos políticos que hoje comandam o Brasil com o grupo peronista ligado à
Massa, isso facilitaria as relações bilaterais e as agendas focadas no âmbito
do Mercosul. Um destaque seria a tentativa de avançar as negociações do acordo
com a União Europeia", disse Sílvio Campos Neto.
O economista diz que a indústria automotiva
brasileira seria um dos setores que poderiam se beneficiar com uma eventual
vitória de Massa, especialmente se ele estabilizar a política cambial do país.
Isso, segundo ele, facilitaria as vendas do Brasil para a Argentina.
"Massa, a princípio, representa uma
continuidade das políticas que têm sido mantidas nos últimos anos e que geraram
boa parte dessas dificuldades. Mas também há expectativa de alguma correção de
rumos. É tudo uma questão de ajuste da política cambial [...] Isso favorece
alguns setores como o automotivo", disse.
No campo político, Federico Servideo diz que Mass
poderá retribuir "o apoio direto e indireto que o presidente Lula tem dado
à sua candidatura". "E esse agradecimento, imagino, vai se manifestar
numa relação cordial ao apoiar o presidente Lula nas suas iniciativas
estratégicas e geopolíticas."
Entre esses projetos políticos, segundo Ariel
Goldstein, estariam o apoio ao aumento da influência dos Brics e a suposta
consolidação do projeto liderado pelo Brasil de promover uma maior integração
da América do Sul. Um exemplo dessa iniciativa foi uma cúpula de líderes da
América do Sul realizada em Brasília, em maio deste ano, a pedido de Lula.
Os especialistas dizem, no entanto, que o Brasil
também enfrentaria riscos com uma eventual vitória de Massa.
Eles afirmam que há desconfiança sobre a capacidade
que Massa tem de implementar medidas que retirem a Argentina da crise
econômica, uma vez que ele já é o ministro da Economia do país e pertence a um
grupo político ao qual é atribuído parte da responsabilidade pelo atual
cenário.
"Massa representa a continuidade do peronismo.
Isso significa a manutenção de um governo e de uma visão econômica que tem sido
a principal causa de todo esse quadro de colapso da economia argentina [...]
Isso é um risco para a economia brasileira, considerando que a Argentina ainda
é um parceiro econômico importante, mesmo que tenha perdido relevância ao longo
dos últimos anos", disse Silvio Campos Neto, da Tendências Consultoria.
"(Se Massa não tirar a Argentina da crise) o
Brasil talvez perca o seu principal parceiro da América do Sul. O Brasil
perderia um sócio estratégico para a sua jornada", disse Federico
Servideo.
Ariel Goldstein indica que uma eventual vitória de
Massa não significa que a entrada da Argentina nos Brics poderia ser dada como
certa.
Pelo contrário. Segundo ele, a suposta proximidade
entre Massa e o governo dos Estados Unidos e divergências dentro do peronismo
poderiam impedir a adesão da Argentina ao bloco. O argumento é de que, em tese,
os Estados Unidos seriam contra o aumento da influência dos Brics, uma vez que
o grupo inclui dois rivais geopolíticos do país: Rússia e China.
"Ele (Massa) é uma pessoa que diz que é
representante dos interesses dos Estados Unidos na Argentina. Isso pode levar a
uma tensão dentro da própria estrutura do peronismo, entre aqueles que defendem
a incorporação do país aos Brics e aqueles que estão mais alinhados com os
Estados Unidos", disse Goldstein.
Para Silvio Campos Neto, independente de quem vença
as eleições, o ganhador terá um enorme desafio em suas mãos.
"Seja qual for o vencedor [...] a economia
argentina está sob um risco enorme de um problema muito sério em 2024.
Naturalmente, o Brasil e suas empresas, que tem relações com a Argentina, vão
sentir esses efeitos. Claro que as agendas dos candidatos são diferentes, mas
os dois vão se defrontar com um quadro bastante grave", disse.
Fonte: BBC News Brasil
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