Françoise Vergès: “o museu ocidental se baseia em crimes”
O museu ocidental sempre foi pensado pela sociedade
enquanto espaço neutro de preservação de tesouros da humanidade e refinamento
de nossas sensibilidades artísticas. Nos últimos anos, no entanto, países cuja
dominação colonial os negou tal privilégio e lhes pilhou de seus tesouros
nacionais vêm questionando o cânone. Em seu novo livro, lançado pela editora
Ubu, Françoise Vergès analisa as desigualdades estruturais de raça, classe e
gênero sobre as quais o museu ocidental se constrói, com base no seu primeiro
grande exemplo, o Louvre.
“A destruição de palácios e o embargo de suas
riquezas, as pilhagens e os roubos sistemáticos e a narrativa de uma história
da arte centrada na Europa contribuíram para dar recursos e uma aura
inigualáveis ao museu.” Ao reconhecer essas expropriações, devastações e
explorações, Vergès propõe decolonizar o museu com base na teoria de Frantz
Fanon: “a descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo, é um programa
de desordem absoluta.”
Para a autora, não basta expor obras “decoloniais”
(quais seriam os critérios e quem os definiria?) e diversificar o que é
pendurado nas paredes, pois os programas institucionais que se declaram
decoloniais são uma tentativa de sequestrar a teoria e a prática decoloniais
para neutralizá-las. É preciso pensar no que ela define como “pós-museu”, uma
nova instituição que se desprenda completamente das estruturas do colonialismo
e do capitalismo financeiro em direção a uma “utopia emancipadora que
despertaria sentidos, que deixaria sonho e imaginação voarem, e onde poderíamos
nos entusiasmar com criações coletivas ou individuais, gestos e rituais que
oferecem maneiras diferentes de apreender o mundo.”
Mas e o Brasil com isso? Em entrevista ao Le Monde
Diplomatique Brasil, Françoise Vergès explica como os laços de dependência e as
desigualdades herdadas do processo colonial fazem do museu do sul global um
espelho do museu europeu. Analisando as relações de raça, classe e gênero
dentre os trabalhadores do museu e também no que diz respeito ao público,
diferenciando aquele que é feito confortável ou não naquele espaço, a autora
vai além da ideia de devolução de obras roubadas para pensar os diversos
problemas do museu, e suas possibilidades de reformulação. Confira a entrevista
completa:
• De
que forma o museu reflete as desigualdades estruturais de raça, classe e gênero
que existem fora dele?
A invenção do que hoje chamamos de museu foi
concebida no século XVIII na Europa, durante um período de expansão e conquista
imperialista. Os primeiros grandes passos nesse sentido ocorreram na França,
que liderou esse movimento. Embora sempre tenha havido guerras e pilhagem de
artefatos, agora isso estava sendo feito em nome da civilização: os
revolucionários franceses afirmavam “somos o país da liberdade, e a França deve
guardar os tesouros da humanidade, porque somente ela pode fazê-lo.” Em
seguida, outros países europeus seguiram a mesma ideia: “Somos a Europa. Somos
a civilização. Portanto, cabe aos civilizados guardar os tesouros da
humanidade, e temos todo o direito de coletá-los, mesmo através de pilhagens em
larga escala.”
Portanto, o museu, desde sua origem, é uma
estrutura colonial e hierárquica. Ela vê o restante do mundo além do Ocidente
como incivilizado, o que permite a apropriação de objetos, baseando-se na
crença de que outras culturas não sabem preservá-los, nem entendem o valor dos
seus tesouros. O museu é uma instituição baseada na ideia de superioridade, na
redefinição da arte e na transformação de objetos comuns em arte, retirando-os
de seu contexto original. Os museus europeus ocidentais e norte-americanos
acumularam uma quantidade massiva de objetos, inimaginável em escala, com
dezenas de milhares de itens roubados.
• No
livro, você diz que “desejar a abolição desse mundo não quer dizer desejar o
fim do mundo, mas sim desejar um mundo habitável e respirável”. Indo na direção
oposta, uma frase atribuída a Slavoj Zizek define que “é mais fácil imaginar o
fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Como você enxerga isso à luz do
conceito que você empresta de Frantz Fanon de “desordem absoluta”?
Emprestei essa frase de Frantz Fanon, que diz que
“a colonização é um programa de desordem absoluta”, porque se trata de mudar a
ordem do mundo estabelecida pelo colonizador. Havia várias razões para isso: em
primeiro lugar, o termo “decolonial” estava sendo usado por muitas instituições
para se referirem a tudo. Estava se tornando uma moda, uma peça de publicidade,
senti que o termo estava perdendo seu significado. Eu quis enfatizar que a
decolonização é uma questão séria. As primeiras formas de decolonização, as
lutas pela independência, custaram muitas vidas. Pessoas morreram e foram
torturadas, não foi um processo fácil. Não se trata apenas de retórica, a decolonização
é uma prática que envolve riscos reais.
O segundo argumento é que eu não quero o fim do
mundo, mas sim o fim do mundo que o capitalismo e o racismo construíram, e vejo
isso como uma aspiração. Então, é mais fácil visualizar o fim do mundo do que o
fim do capitalismo? Sim, mas o fim do capitalismo significa o fim desse mundo
que se tornou inabitável e irrespirável para bilhões de pessoas.
E isso não é apenas uma metáfora, é importante se
afastar da ideia de que isso são apenas discursos. São realidades concretas, há
pessoas que sofrem com a falta de água, que respiram ar poluído, são situações
reais. Portanto, a luta decolonial precisa ser tratada com seriedade e retirada
do campo das palavras vazias, para que recupere sua verdadeira força. De fato, é
um processo que envolve riscos, não se trata apenas de mudar as coisas
superficialmente.
• A
decolonização do museu ocidental é possível? O que seria um “pós-museu”?
A decolonização completa dos museus ocidentais não
é possível. Primeiro, porque não vejo como uma instituição pode ser
decolonizada quando a sociedade ao seu redor não o é, permanecendo como uma
pequena fortaleza isolada. Porque, se realmente houvesse uma mudança e o museu
fosse decolonizado, isso representaria uma revolução.
Será que o Estado e as forças permitiriam uma
revolução nesse lugar? Até o momento, não, porque uma revolução significaria
uma profunda transformação na instituição. Será que as mulheres que fazem a
limpeza serão remuneradas tão bem quanto os historiadores de arte? Qual é a
formação dos historiadores de arte? Por que existe uma diferença salarial tão
grande? Por que a mulher que faz a limpeza recebe tão pouco em comparação aos
outros? Há uma hierarquia racial, de gênero e de classe muito forte nos museus.
Se tudo isso for alterado, será uma revolução.
A segunda coisa é que o museu ocidental se baseia
em crimes. Como esses crimes serão reparados? Como o museu ocidental realmente
abrirá suas portas e dirá: “Aqui está o que temos, venham ver”? “Vamos abrir
nossas coleções. Vamos abrir nossos arquivos. Vamos abrir nossos documentos e
vocês verão e encontrarão objetos que foram roubados.” Muitas vezes pensamos em
objetos históricos que apenas conhecemos porque eles foram saqueados. Enquanto
isso, pode haver comunidades que nem sabem que suas propriedades estão em
museus na Itália ou na Alemanha. Como faremos todo esse trabalho? Portanto,
sim, acredito que não seja possível decolonizá-los completamente, mas os museus
ocidentais têm muito a fazer para reparar seus crimes.
É absolutamente necessário exigir transformações
profundas, mas isso não significa que eles serão totalmente decolonizados,
porque o pós-museu é precisamente o que devemos inventar, o que devemos
imaginar. Ou seja, pensar no que significa conservar, preservar, como não
transformar coisas que eram parte da vida em objetos mortos, que só podemos
olhar e não tocar. Todas essas questões precisam ser consideradas. Qual é a
arquitetura que queremos dar, como podemos nos sentir à vontade, tudo está
pensado para nossas necessidades enquanto seres humanos ou apenas para
impressionar? Há muitas perguntas que o pós-museu deve considerar, dadas todas
as questões dos museus ocidentais. O que poderíamos fazer que fosse
completamente diferente e não seguisse nenhum desses modelos? Ao repensar isso,
talvez haja aspectos do museu ocidental que não eram tão ruins, afinal, e que
podemos aproveitar, mas isso precisa ser cuidadosamente considerado.
• Você
também fala sobre como o papel dos multimilionários no mundo da arte cria um
terreno de lutas duras e difíceis. Como pensar a decolonização do museu no
contexto da financeirização da arte?
Você está certa, é uma questão muito importante.
Hoje em dia, os multimilionários têm uma capacidade que nenhum museu público
possui. Eles têm o poder de elevar os preços, transformar artistas em estrelas,
enquanto do nosso lado não temos as mesmas armas, não temos multimilionários.
De qualquer forma, se houver multimilionários no Sul, eles pensam da mesma
forma que os do Norte.
É verdade que a financeirização é um problema, por
isso precisamos pensar no pós-museu. Nele, talvez precisemos renunciar a coisas
que só podem sobreviver devido a esse dinheiro, devido a essa dependência.
Talvez, se um museu não puder comprar uma obra de arte devido ao mercado, simplesmente
não a compraremos, e isso não será um problema. Para nós, o que é importante é
o conteúdo. É o que faremos para que as pessoas se sintam confortáveis, se
divirtam, fiquem felizes e tenham vontade de aprender mais, e isso não
necessariamente envolve grandes obras. Não quer dizer que ele não possa ser
bonito, mas talvez uma beleza diferente. Estamos muito dependentes do dinheiro
desses bilionários que hoje têm recursos gigantescos e especulam muito com a
arte. A arte se tornou realmente um espaço de especulação. Por exemplo, como
tem havido um interesse crescente na arte africana nos últimos anos, os preços
aumentaram drasticamente, o que significa que há povos que nem mesmo conseguem
comprar de volta sua própria arte. Portanto, sim, o pós-museu não será um museu
do capitalismo financeiro.
• Uma
questão que sempre me incomodou muito aqui no Brasil é quem frequenta esses
museus que expõem obras ditas “decoloniais” e diversificam o que é pendurado
nas paredes mas não fazem nada para abaixar os preços ou incentivar uma
diversificação do público. Como o pós-museu resolve essa faceta do problema do
museu ocidental?
É realmente necessário tomar o caminho oposto. Por
exemplo, se quisermos contar a história da ditadura contemporânea no Brasil.
Quem detém o poder neste país? Como contamos essa história? Devemos usar
imagens, sons, depoimentos? Como mostrar os conflitos dos trabalhadores? Como
mostrar como as forças atuaram? O que precisou ser resistido? Qual foi o papel
do tribunal? Como oferecer narrativas que nos ajudem a entender como tudo
aconteceu? Como explicar o poder em um museu?
O “como explicar”, essa é uma das questões, e
talvez não haja uma única resposta no pós-museu, talvez seja necessário dar voz
a várias perspectivas. Também é importante entender, por exemplo, se estamos
falando sobre lutas, por que uma pessoa específica chegou ao poder. Porque
muitas vezes olhamos e pensamos que não é possível, mas é, e precisamos ser
capazes de explicar isso. Portanto, para mim, o museu também deve nos ajudar a
entender como o mundo ao nosso redor funciona. O pós-museu estaria mais
relacionado ao que vivemos, depois podemos falar sobre arte e tudo mais.
Os museus ocidentais estão aí, mas eu não quero
assumir seus problemas, eles são responsáveis por crimes, cabe a eles ver como
vão reparar esses crimes. Cabe a nós dizer a eles: vocês vão repará-los. Não
vamos permitir que saiam impunes. Em nosso programa, devemos nos concentrar no
que podemos fazer para não repetir essas coisas, porque o que pensamos agora
pode parecer correto, mas talvez daqui a 20 anos as pessoas nos digam que é
errado. Também é importante manter um museu que esteja aberto às transformações
inevitáveis, porque o museu tem a missão de mostrar imagens do mundo.
• Apesar
de ter sido uma colônia de exploração, as instituições culturais no Brasil
funcionam de forma muito similar às europeias e americanas, mesmo quando fazem
esforços pela “diversificação”. Como pensar a decolonização do museu em um país
do sul global como o Brasil?
Os museus do sul global frequentemente seguiram o
modelo dos museus ocidentais. Ainda há um modelo que persiste porque não
sabemos como fazer de outra forma. Houve tentativas. Em geral, vi isso em
comunidades pobres, porque é nessas comunidades que é preciso inventar algo
diferente. É necessário imaginar algo diferente, com uma economia que possam
controlar. Eles não precisarão recorrer a fundações privadas; eles tentarão se
virar por conta própria.
No entanto, existem questões, como: que tipo de
economia queremos que seja viável a longo prazo, que possa durar 10, 20, 50
anos? Isso levanta muitos problemas. Além disso, nos países do Sul, precisamos
considerar a questão do desastre climático. Qual museu construiremos?
O museu estimula a curiosidade, o desejo de
aprender mais, não apenas admirar. Portanto, em 2023, já temos conhecimento
suficiente para pensar o pós-museu. Houve muitos livros sobre colonização, a
situação das mulheres, escravidão, lutas pela liberdade e muitos estudos sobre
esses temas para que hoje possamos ver as limitações do museu ocidental. É hora
de dizermos: “Vamos começar a trabalhar na imaginação de como poderia ser
diferente.” Isso também é o que proponho e repito, temos tudo o que precisamos
para começar a pensar. Não estou dizendo que temos todas as respostas. Além
disso, a solução que pode funcionar em um bairro de São Paulo não será
necessariamente a mesma em Dakar, ou em uma cidade italiana. Portanto, será
necessário levar tudo isso em consideração, é realmente um trabalho para sair
do modelo hegemônico.
Fonte: Por Carolina Azevedo, em Le Monde
Diplomatique Brasil
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