Guilherme Preger: ‘Os outros do capital’
A história do
capitalismo é a de seus cercamentos. Tudo começa, segundo Karl Marx, com a
acumulação primitiva dos cercamentos da terra. Aquilo que era um bem comum
(commons) e garantia a soberania alimentar de milhares de camponeses foi
cercado (enclosure) e deu-se início à privação dos bens naturais. É nesta
época, em meados do século XVI, que o problema da pobreza começa a ficar
evidente e é retratado no clássico de Thomas More, Utopia (1516). O pobre, ou o
Pedinte, aparece então como aquele que foi privado de sua subsistência.
A terra se tornou
então a primeira “mercadoria fictícia” no dizer de Karl Polanyi, em seu
clássico A grande transformação (1948). Ela é fictícia porque na realidade não
tem valor de troca. Trocar terra por dinheiro só se torna possível depois que a
ficção de sua propriedade se torna legal, como direito jurídico.
Assim, o capitalismo
se inicia pela expropriação das terras. Uma multidão de camponeses se torna
“livre”, ou seja, pobre, e migra para as cidades para se tornar mão de obra da
indústria (estamos já no século XVIII). E, de fato, agora com o trabalhador assalariado
começa a segunda onda de cercamentos, criando nova “mercadoria fictícia”, que
vem a ser justamente o trabalho. Assim como a terra, ninguém vende realmente,
“força de trabalho”. O trabalhador que vende a sua força existencial por um
salário vai junto com ela, não sendo efetivamente uma troca justa, nem sequer
uma troca em qualquer acepção da palavra.
Observe-se que nesta
época importante era criar um espaço segregado para a produção social em
fábricas e escritórios. Estes são os novos cercamentos capitalistas, onde se dá
a “exploração capitalista”, que significa, segundo Karl Marx, que uma parte do
trabalho do trabalhador, ou do seu tempo de dedicação ao patrão, não é
remunerada.
A terceira mercadoria
fictícia é o dinheiro. É verdade que se troca dinheiro, mas é sempre dinheiro
por dinheiro. Mais do que fictícia, é uma falsa troca. Pode-se trocar uma nota
de 100 por duas de cinquenta, mas isso é, no dizer coloquial, “trocar seis por
meia dúzia”. Com isso se cria o modo de acumulação denominado de “especulação
financeira”. Os bancos são os cercamentos do dinheiro, são instituições
financeiras que magicamente fazem o dinheiro se multiplicar.
A observação de que o
capitalismo se torna financeiro já faz parte da análise de Vladimir Lênin em
seu clássico Imperialismo, estágio superior do capitalismo (1916). Lênin
observa a associação entre bancos e empresas e que estas passam a ser dirigidas
pelas finalidades daqueles. Isto acirra a competição inter-imperialista,
levando à guerra.
No entanto, podemos
dizer que, na vigência do fordismo, o capitalismo industrial ainda dá as
cartas, e a especulação financeira é um “amplificador” do capital produtivo. O
grande problema, que gera a crise de 1929, ainda é o problema da superprodução,
o excesso de mercadorias que não consegue ser “realizado” pelas vendas nos
mercados.
Assim, a partir do
modelo das vitrines parisienses do século XIX, se desenvolveu no século XX uma
indústria da publicidade que criou outra figura para o “outro do capital”, além
daquela figura do trabalhador livre: o consumidor. É preciso incentivar o consumo
para aliviar as crises de superprodução. Se o pedinte era antes um pobre, o
consumidor é primeiro um trabalhador. O consumidor, que vive nas esferas
existenciais extraeconômicas, é o outro do cercamento fabril da produção.
A especulação como
novo regime de acumulação toma a dianteira mesmo a partir do modo pós-fordista
de regulação econômica, em meados dos anos de 1970, com o surgimento do
programa do neoliberalismo. Trata-se de um estágio “superior” de
financeirização: não apenas os bancos tomam a dianteira do sistema, mas
fundem-se com as próprias empresas. As empresas “produtivas” se tornam agora
rentistas, entidades financeiras.
É a partir do
neoliberalismo que começa a ser criada nova figura do outro do capitalismo: o
homo economicus, que em nossos dias é chamado de “empreendedor”. Essa figura,
cujo principal criador foi o teórico Joseph Schumpeter, mas também figura
ficcionalmente na obra da escritora russa-americana Ayn Rand, é o empresário
individualizado que deve abrir seu próprio negócio. Por que a figura do
empreendedor se torna tão importante para o capitalismo? Porque com o
neoliberalismo há uma passagem do capital a lucro para o capital a juro.
Esta passagem, crucial
para o que é chamado hoje de capital rentista, já estava descrita na obra magna
de Marx. Empreendedor será aquele que justamente irá se endividar para
“consumir” capital a juros, ou capital acionário. O dinheiro se torna assim
mercadoria por excelência, sendo consumida pelos novos “empreendedores de si”,
ou seja, os novos endividados, que são trabalhadores disfarçados de
empreendedores. Assim, não espanta que a dívida privada tenha explodido no
final do século XX. Sinal de que o sistema trocou o lucro (capital produtivo)
pela dívida (capital improdutivo).
O cercamento do setor
financeiro que se “autonomiza” se torna viável pelo surgimento de uma nova
mercadoria fictícia, não prevista por Karl Polanyi: a informação. Assim como as
demais mercadorias fictícias, a informação não tem valor de troca. Quem tem informação,
ao vendê-la, continua com a informação, não precisa “repor o estoque”. Com os
antigos bens comuns, a informação também é abundante, mas pode se tornar rara
por novo cercamento. O primeiro modo de cercamento foi através da chamada
“sociedade do espetáculo”.
Podemos observar que o
espetáculo é um cercamento da informação, transformando-a em imagem condensada.
No tratamento clássico de Guy Debord (1968), o espetáculo é uma imagem cuja
produção foi alienada de seu produtor (o homem comum) e apresentada a ele como
algo distante, na qual ele não se reconhece como produtor. Todo o tema da
indústria cultural, levantado inicialmente pela Escola de Frankfurt, foi
trabalhado para elucidar essa passagem de cercamento sobre a informação que
produziu o fetichismo cultural, inicialmente com fins estéticos. Nessa época
foram consolidadas as leis de propriedade intelectual.
Mas com o surgimento
da internet e a digitalização das comunicações, um fenômeno típico do século
XXI, surge outro cercamento da informação, a saber, as plataformas, que são
verdadeiros “jardins murados” da informação. Por causa desses novos muros e
fortalezas comunicativas, obtidas graças a algoritmos proprietários e opacos
como novas “fórmulas da coca-cola”, alguns teóricos vêm falando de
“tecnofeudalismo” para caracterizar a nova fase do capitalismo, ou mesmo de
pós-capitalismo. Eles se referem ao caráter sobretudo rentista da exploração
econômica das tecnologias da informação e comunicação. Mas no próprio movimento
histórico do capital já estava inscrita desde sempre a lógica social dos
cercamentos. Não há novidade real nesse movimento.
As plataformas
absorveram o espetáculo e criaram mais uma figura do outro exterior aos
cercamentos: o influenciador. Em particular, uma figura que combina as figuras
do empreendedor e do influenciador numa só: o coach. Por que a figura do
influenciador se tornou crítica para esta nova fase do capitalismo e de seu
cercamento? Basicamente, porque esse novo regime de acumulação, a especulação,
é uma atividade de “segunda ordem”, formada pela observação dos fluxos de
informação na sociedade mais abrangente.
A exploração econômica
pelo lucro é de “primeira ordem”, pois baseia-se em operações diretas
(imediatas) de feedback: se houve lucro, há acumulação; se houve prejuízo,
perdeu-se dinheiro (capital). Mas a especulação, por sua vez, joga com
expectativas futuras dos investidores, isto é, joga com variáveis temporais. A
especulação precisa lidar com as incertezas do mercado. Ora é sabido que
precisamente a informação serve para reduzir a incerteza (ou é aquilo que mede
a incerteza).
Daí certo paradoxo: o
cercamento significa traçar de forma clara um limite entre um espaço interior
ao capital, onde se dá a valorização, e mesmo a autovalorização, e um espaço
exterior, onde se dá o consumo, o desgaste das mercadorias, ou seja, a desvalorização.
Quanto mais rígido é o cercamento, mais “fechado” (vedado) informacionalmente é
o espaço interior do capital. Mas a especulação precisa saber “o que acontece
lá fora” do cercamento, pois lida com as incertezas dos negócios.
Afinal, há sempre um
mundo além da economia, que Marx denominou de esfera do valor de uso. Se o
capital tende a vê-lo como espaço de desvalor, de “trabalho improdutivo”, é um
problema seu. O uso dos objetos e das informações pelos habitantes do “mundo da
vida” é algo que tem valores próprios aos seus usuários.
Os influenciadores
procuram então “dirigir” esses usos, e prover o sistema de informações sobre o
“mundo lá fora”, isto é, sobre o ambiente do sistema capitalista. Assim como a
publicidade procurava dirigir e acelerar o consumo das mercadorias produzidas e
assim acelerar a “rotação do capital”, hoje são os influenciadores que tentam
induzir as ondas especulativas de valorização ou desvalorização dos mercados
acionários através de todo tipo de expediente ficcional (“narrativas”) ou
falacioso (as famosas fake news).
Expropriação,
exploração, especulação e espetacularização dão nome a quatro regimes de
acumulação do capital, todos movidos por cercamentos que criam “mercadorias
fictícias”. É através dessas mercadorias-chave que o capitalismo cria sua
ilusão de um mundo fechado e autônomo, com leis próprias, relegando a seu
exterior, o ambiente social, as demais verdades e mentiras da vida, que não
têm, na sua perspectiva, “valor”, são, portanto, improdutivas. Também lhe
compete criar os personagens de sua ficção: o pedinte, o consumidor, o
empreendedor e o influenciador.
Mas aqui é preciso
tomar o devido cuidado: esses personagens são projeções, heterorreferencias de
sua própria imagem autorreferente. São alter egos, enquanto o ego capitalista
é, nas palavras de Karl Marx, um sujeito automático. Portanto, menos autônomo do que automático.
Enquanto projeções
fantasmáticas, esses personagens estão inseridos dentro do roteiro e da
dinâmica ficcional do sistema. São esses fantasmas que garantem sua rotação
livre e surda às objeções, o giro incessante e incansável do capital. É sabido
que ele não pode ficar parado, pois à sua espreita está sempre a
desvalorização. O capital roda sempre mais rápido, expulsando de si esta
entropia (desgaste), para a sociedade “lá fora” onde circulam os viventes
desprovidos de propriedades, incapazes de construir seus próprios abrigos de
defesa.
Por causa disso, não
há espanto que esta rotação infrene e automática de um sistema globalizado e
alimentado por combustíveis fósseis acabe por despejar uma quantidade imensa de
entropia em seu ambiente, que vem a ser precisamente o planeta que serve de
cenário a tais insanas e miseráveis ficções: a Terra e sua biosfera. O nome
desta entropia expulsa pelo sistema em grandes quantidades é “aquecimento
global”. Como sabemos pela termodinâmica, a entropia é uma tendência
irreversível. As mercadorias podem ser fictícias, mas as mudanças climáticas
são reais.
Fonte: A Terra é
Redonda
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