quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Verticalização no Brasil: há um limite na corrida ao céu?

Nos últimos anos, o cenário urbano brasileiro assistiu a uma reconfiguração acelerada. Em diversas cidades, surgiram empreendimentos que não apenas ocupam o solo, mas desafiam os limites do céu. A corrida para construir torres altíssimas, como o One Tower em Balneário Camboriú, o Kingdom Park Residence em Goiânia e o Platina 220 em São Paulo, tornou-se uma constante. Inspirada por esse crescimento vertical, o Balneário Camboriú planeja inaugurar o Senna Tower, que se destaca não só pela altura, mas também pela ambição de ser o edifício residencial mais alto do mundo. Mas até onde vão os limites dessa escalada de altura, e qual é o impacto sobre o espaço que pertence a todos?

A arquitetura sempre refletiu a identidade, os valores e os desejos de cada era. Desde os templos antigos até os arranha-céus contemporâneos, cada construção fala sobre quem somos como sociedade, sobre o que valorizamos e sobre a forma como queremos ser vistos. A urbanização no Brasil segue essa lógica e, assim como a corrida espacial simbolizou conquista e expansão, essa nova corrida vertical reflete uma projeção de poder, status e inovação. No entanto, diferentemente do espaço sideral, o céu das nossas cidades possui limites que, embora invisíveis, afetam diretamente quem vive ao redor.

A ampliação das construções verticais traz reflexões sobre o impacto na qualidade de vida. À medida que essas estruturas sobem, elas impõem novas sombras nas ruas, alteram a circulação do ar e influenciam a distribuição da luz solar. Em um país de clima majoritariamente quente como o Brasil, a alteração desses elementos pode transformar bairros inteiros, criando microclimas que afetam diretamente quem transita e reside nas proximidades. O Balneário Camboriú, com seus edifícios imponentes na orla, viu suas praias ficarem na sombra durante partes do dia, um fenômeno que simboliza essa ocupação do céu e seus impactos na vida urbana.

Além do aspecto físico, essa escalada vertical afeta também o espaço simbólico das cidades. Uma torre não é apenas um prédio, mas um marco visível e duradouro que muda a paisagem, interfere na linha do horizonte e redefine o visual da cidade. Em um ambiente onde o espaço já é escasso, os “gigantes de concreto” se apropriam de uma vista que, teoricamente, pertence a todos. Há uma certa ironia nesse movimento: enquanto a construção desses edifícios sugere progresso e desenvolvimento, ela também evidencia uma forma de segregação. Afinal, quem realmente pode usufruir dessas vistas deslumbrantes e exclusivas?

Do ponto de vista do mercado imobiliário, a verticalização traz benefícios claros. A demanda por imóveis em localizações privilegiadas cresce, investidores se interessam, e o ciclo de valorização do solo se retroalimenta. O valor simbólico de residir em uma torre que domina o skyline de cidades como São Paulo ou Balneário Camboriú é poderoso. Porém, o preço dessa exclusividade é, muitas vezes, uma contrapartida silenciosa para aqueles que vivem ao redor e, em alguns casos, para toda a comunidade. Questões como mobilidade urbana e infraestrutura pública desafiam o crescimento desmedido. Sem uma reflexão cuidadosa, os espigões podem se transformar em “ilhas” que reforçam desigualdades e limitam o acesso aos benefícios que esses empreendimentos prometem.

Outro aspecto que merece atenção é a memória urbana e a preservação do patrimônio cultural e natural das cidades. Quando uma torre ocupa um espaço, ela transforma não apenas o presente, mas também o legado do lugar. A cidade perde, nesse processo, parte de sua história, que poderia ser preservada ou adaptada de formas mais harmoniosas com a modernidade. Em um ritmo acelerado de construções, muitos dos marcos históricos e espaços da memória coletiva acabam soterrados por estruturas que, embora imponentes, são efêmeras em essência. Esse conflito entre passado e futuro é um ponto importante para quem se preocupa com a identidade urbana.

As transformações legislativas nas cidades brasileiras acompanham o ritmo acelerado da verticalização urbana. Nos últimos anos, diversas prefeituras têm revisado normas de uso e ocupação do solo, autorizando construções cada vez mais altas e liberando áreas antes preservadas ou restritas para novos empreendimentos. Essa flexibilização das legislações municipais é, em parte, uma resposta à demanda do mercado imobiliário e à crescente valorização de áreas urbanas centrais. No entanto, as implicações futuras dessas permissões vão além do crescimento econômico. Ao modificar a paisagem urbana, esses arranha-céus alteram a leitura do espaço público e a relação das comunidades com o entorno, impactando a identidade visual e dificultando a preservação de marcos culturais e históricos. A flexibilização contínua dessas leis pode criar um ambiente de rápida obsolescência dos patrimônios, comprometendo o entendimento e a convivência das futuras gerações com o passado urbano que constrói a essência das cidades.

Além disso, surge a questão sobre o propósito da arquitetura e da construção civil hoje. Qual é o objetivo de erguer estruturas tão altas? Em muitas ocasiões, essas construções são símbolos de poder, sem necessariamente atender às reais necessidades de uma cidade. Em vez de priorizar soluções para habitação e ocupação urbana, cria-se um mercado de luxo que serve a uma pequena parcela da população, da qual muitos sonham em se aproximar um dia. E, ao fazer isso, há o risco de que a cidade perca sua conexão com as pessoas que, de fato, a habitam. A arquitetura deveria ser uma expressão coletiva, mas quando a construção se torna uma disputa por altura, ela se desconecta de sua função social.

Conhecida por suas praias e torres que recortam o horizonte, Balneário Camboriú será palco para um novo empreendimento que promete impactar o mercado imobiliário e o imaginário coletivo: o Senna Tower. Com previsão de mais de 500 metros de altura, esta construção da FG Empreendimentos em parceria com a marca Ayrton Senna posicionará o Brasil sob os holofotes mundiais, apresentando uma estrutura que combina inovação, luxo e exclusividade, projetada para estar entre os edifícios mais altos do país e do mundo.

O Senna Tower demandará um investimento em torno de R$ 3 bilhões e integrará espaços de lazer e gastronomia abertos ao público, distribuídos em uma área de mais de 6 mil m². Além disso, a estrutura buscará a certificação LEED Platinum, um dos mais altos padrões de sustentabilidade do mercado, garantindo uma construção alinhada às práticas de eficiência energética e impacto ambiental mínimo. Serão 228 unidades de alto padrão: 18 mansões suspensas que variam entre 420 e 563 m², 204 apartamentos de até 400 m², quatro coberturas duplex de 600 m² e duas mega coberturas triplex de 903 m².

Apesar de seu esplendor arquitetônico e da promessa de tecnologia de ponta, o lançamento do Senna Tower levanta reflexões sobre o papel do mercado imobiliário e suas contribuições para a vida urbana. Em uma cidade onde o metro quadrado da orla pode ultrapassar R$ 75 mil, segundo o índice Fipe/Zap, a comercialização de imóveis a preços comparáveis a cidades como Nova York, Barcelona e Milão marca um abismo financeiro que beneficia uma pequena elite, ao passo que exclui a maioria da população do acesso a espaços centrais e de infraestrutura completa.

Essa busca incessante pela altura recorde pode ser interpretada de duas formas: como uma façanha que engrandece a capacidade técnica e arquitetônica do país ou como um sinal de que as cidades podem estar se distanciando cada vez mais da inclusão e da diversidade. Afinal, quem realmente se beneficia da verticalização extrema? Para além das vistas impressionantes e do impacto visual, resta a reflexão sobre o tipo de legado urbano que esses empreendimentos deixam para as futuras gerações.

Em última análise, o crescimento vertical das cidades brasileiras representa um reflexo de nossa época. É um símbolo do desejo de ascensão e conquista, mas também das tensões da sociedade contemporânea. É necessário refletir sobre o papel das construções verticais na promoção de uma cidade mais inclusiva e acessível. Se o espaço urbano é limitado e precioso, não seria mais adequado direcionar os recursos e a criatividade para desenvolver projetos que beneficiem a todos?

 

Fonte: Por Lucas Silva Pamio, no Le Monde

 

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