Como a França está desprivatizando suas
águas
Nos últimos anos a
França, berço de duas grandes multinacionais dos serviços de água, Veolia e
Suez, vem assistindo uma onda de retorno à prestação pública, que teve início
com a remunicipalização em Paris em 2010. Entre os grandes serviços de água
urbana que se seguiram, incluímos as metrópoles de Nice em 2015, Montpellier em
2016, de Lyon e de Bordeaux em 2020.
Em 2020, a prestação
pública representava entre 41,1% e 45,2% da população servida com água potável,
e entre 59,0% e 63,4% da atendida com esgotamento sanitário um aumento de 22%
na água potável em 10 anos, e um aumento entre 15% e 12,4% no esgotamento sanitário.
• A reforma territorial facilita a mudança
para a prestação pública
Essa mudança se
relaciona com a grande reforma territorial introduzida pela Lei NOTRe (Nouvelle
Organisation Territoriale de la République), de 2015. O principal objetivo da
lei foi descentralizar e fortalecer o papel das regiões e intercomunidades
(agrupamentos de municípios), buscando maior eficiência na gestão pública e na
distribuição de competências entre os diferentes níveis de governo.
A lei reduziu o número
de regiões metropolitanas da França de 22 para 13 (a partir de 1º de janeiro de
2016), buscando criar regiões mais fortes, tanto em termos populacionais quanto
econômicos, para que tivessem mais peso no cenário europeu.
A Lei NOTRe reforçou e
clarificou as competências dos diferentes níveis administrativos,
particularmente das regiões e departamentos, além de reforçar as
intercomunidades (agrupamentos de municípios). Isso resultou em uma
redistribuição de funções administrativas entre os seguintes níveis: Regiões,
Departamentos e Intercomunidades (EPCI)1. As Intercomunidades ganharam maior
importância, com competências ampliadas em áreas como desenvolvimento econômico
local, urbanismo, gestão de resíduos, abastecimento de água e esgotamento
sanitário. A lei aumentou a obrigatoriedade de participação dos municípios em
intercomunidades e elevou o limite mínimo de população para a formação de uma
intercomunidade. O objetivo foi promover uma maior coerência entre as ações e facilitar
a gestão de serviços públicos de maneira mais integrada. A reforma procurou
evitar a duplicidade de ações e funções entre os diferentes níveis, atribuindo
competências claras a cada nível de governo, de forma que cada um atuasse em
áreas específicas. A lei também reforçou o papel das metrópoles (grandes áreas
urbanas), como Paris, Lyon, e Marselha, dando a elas status especial com
competências ampliadas em desenvolvimento econômico, urbanismo e transporte.
A Lei NOTRE previa a
transferência de competências dos municípios em água potável e esgotamento
sanitário (esgotamento sanitário coletivo, não coletivo e águas pluviais) para
os EPCI-FP (Estabelecimentos Públicos de Cooperação Intermunicipal com Tributação
Adequada: comunidades de municípios, aglomerações urbanas, e regiões
metropolitanas.) a partir de 1º de janeiro de 2020.
Ela também incidiu
sobre Região Metropolitana do Grande Paris, criada em 2016, que passou a ser
formada por 12 aglomerações (denominadas territórios) de pelo menos 300.000
habitantes. Ver mapa aqui.
A Metrópole do Grande
Paris tem a maioria das comunidades (equivalente aos municípios brasileiros)
atendida em abastecimento de água pelo Syndicat des Eaux d’Ile-de-France
(SEDIF), um estabelecimento público de cooperação intermunicipal criado em
1923, responsável pelo serviço público de água potável em nome dos municípios
ou das intercomunidades (EPT/CA) da Região de Ile-de-France. O SEDIF abastece 4
milhões de usuários, espalhados por 7 departamentos da Região de Ile-de-France.
Historicamente o SEDIF tem mantido a delegação dos serviços à Veolia, com
sucessivas renovações de contrato há 126 anos. A estrutura territorial pode ser
vista no mapa disponibilizado em relatório anual da Sedif2 (página 11).
O mapa é de 2017.
Apenas dois territórios haviam optado pela prestação pública: Paris, que criou
a empresa pública Eau de Paris em 2010, e Viry-Châtillon, uma comuna francesa,
localizada vinte e um quilômetros ao sul de Paris, no departamento de Essonne.
Contudo, recentemente esse cenário de hegemonia do SEDIF vem mudando e novos
serviços públicos intercomunais vem sendo criados, a partir da possibilidade de
não renovar a delegação dos serviços possibilitada pela Lei NOTRe. É neste
quadro que foram criados: EAU Publique Est Ensemble e Eau Publique Seine
Bièvre.
• Depois de Paris, Nice, Lyon e Bordeaux,
novos prestadores públicos entram em cena
Eau Publique Est
Ensemble atende nove comunas/municípios (Bobiny, Bagnolet, Bondy, Le Lilas, Le
Prés Sain Gervais, Montreuil, Noisi le Sec, Pantin et Romainville) onde vivem
435.000 habitantes. Em 2016 a lei “NOTRe”, que criou territórios de associação
de municípios na metrópole de Paris (Établissement Public Territorial- EPT),
que passaram a assumir a competência pelos serviços de água, desfez a base
territorial do SEDIF. As novas unidades territoriais deveriam, a partir de
então, optar por aderir ao SEDIF ou não. Em 2018 esta questão se coloca para
EPT Est Ensemble. Debatendo os problemas da prestação privada, os municípios
optaram por um contrato provisório com o SEDIF. A ideia era pensar novas
possibilidades para a prestação dos serviços e aguardar o que seria adotado
pelo SEDIF que estava em fase de renegociação do contrato com a Veolia. Foi um
longo processo, iniciado em 2019, e, em 2023, o SEDIF optou por renovar mais
uma vez o contrato com a empresa Veolia. Diante dessa decisão os nove
municípios optaram por não mais delegar a gestão dos serviços de água ao SEDIF
e criar a Eau Publique Est Ensemble. O novo serviço público Est Ensemble
iniciou as operações em 1 de janeiro de 2024, assumindo também a prestação do
esgotamento sanitário.
Já a aglomeração Grand
Orly Seine Bièvre é formada por 24 comunas/municípios. Em setembro de 2021 os
prefeitos dos nove municípios (Arcueil, Cachan, Chevilly-Larue, Fresnes,
Gentilly, Ivry-sur-Seine, Le Kremlin-Bicêtre, Orly e Vitry-sur-Seine)
organizaram um plebiscito sobre a questão “Você está em a favor da criação de
uma autoridade pública de águas no seu município?”. A prestação pública obteve
95% de votos favoráveis. Os nove municípios que realizaram o plebiscito
resolveram não aderir ao SEDIF e se preparar para a retomada da prestação direta
no final do contrato de delegação de serviço público, em 31 de dezembro de
2023. Em 2022 se deu a constituição efetiva do serviço público Eau
Seine&Bièvre para a distribuição de água, com a nomeação de um diretor
geral e de uma equipe operacional. Foi celebrado um acordo de retirada do
SEDIF. Este último prevê a partilha de redes e um período de cooperação até
2029, durante o qual a autoridade comprará água no atacado ao SEDIF, bem como
um trabalho co-financiado de 60 milhões de euros, para efetuar a separação dos
sistemas.
Ainda no território
dessa aglomeração quatro municípios que estão em fase de encerramento de suas
delegações de serviço público com a outra grande empresa francesa, SUEZ,
formaram um serviço público intercomunal (Morangis, Paray-Vieille-Poste,
Savigny-sur-Orge e Villeneuve-Saint-Georges) criaram a Régie des eaux de la
Seine et de l’Orge (RESO) no início de 2023. A retomada do serviço de
distribuição de água potável se deu em janeiro de 2024 para Morangis,
Paray-Vieille-Poste e Villeneuve-Saint-Georges e está prevista para 1º de
janeiro de 2025 para Savigny-sur-Orge após o fim da delegação de serviço
público em curso.
• As razões da mudanças explicadas pelos
dirigentes dos novos prestadores públicos
Em entrevistas
realizadas em setembro de 2024 por Ana Lucia Britto, professora do Programa de
Pós-graduação em Urbanismo e membro do Conselho de Orientação do ONDAS, os
diretores dos dois novos serviços públicos, Jean Claude Oliva do Eau Publique
Est Ensemble, e Fatah Aggoune, Presidente do Eau Seine&Bièvre e prefeito de
Gentilly explicam as razões que levaram a ruptura com o SEDIF e com a delegação
dos serviços a Veolia.
Jean Claude Oliva
também é diretor da associação Coordenação EAU Ile-de-France que reúne
cidadãos, associações e comunidades em torno do tema da água na Île-de-France.
A Coordenação tem como papel sensibilizar os cidadãos usuários dos serviços
fornecendo as informações para intervir nos debates e influenciar as decisões
relativas à gestão da água, afirmando a água com um recurso comum, público e
natural, ao qual todos os habitantes do planeta têm direito de acesso e que não
pode ser objeto de apropriação privada.
Para Oliva, uma
questão central que levou ao retorno à prestação pública é a tarifa, porque ela
é sempre mais cara quando ela é confiada a uma empresa privada. Oliva afirma
que contrato com o SEDIF é um dos mais importantes da empresa Veolia, do qual
ela obtém seus maiores lucros. “O que nós entendemos é que o que é arrecadado
através das tarifas deve ser usado em benefício dos usuários, para
investimentos relacionados à qualidade da água como recurso e não para
enriquecer os acionistas da Veolia”. Esse era o aspecto principal, mas havia
também questões de manutenção das redes e de estrutura tarifária. Tendo
assumido recentemente os serviços, Oliva enfrenta problemas de vazamentos e
válvulas quebradas. Já no que diz respeito à estrutura tarifária adotada pelo
SEDIF, ele afirma que ela não se adaptava às caraterísticas demográficas e
sociais da maior parte do território de Est Ensemble, onde existe muitas
famílias de baixa renda, fazendo com que quem consumisse pouca água pagasse uma
tarifa mais alta. O modelo foi reestruturado suprimindo a tarifa mínima de
disponibilidade de rede e introduzindo uma estrutura de tarifa progressiva com
um volume gratuito para uma primeira faixa de consumo, referente a um volume
mínimo de sobrevivência (10m3/ano). Segundo Oliva, o valor pago pelos usuários
a partir da nova estrutura tarifária é menor do que seria cobrado se a
delegação ao SEDIF estivesse sido mantida e é também mais baixo que o valor
pago no ano de 2023 ainda sob a estrutura de delegação.
Fatah Aggoune da Régie
Publique Eau Seine & Bièvre afirma que o postulado que deu origem a mudança
adotada pelas nove comunas/municípios da aglomeração Grand Orly Seine Bièvre é
que a água deve ser tratada como bem comum e não como uma mercadoria. Aggoune
considera que havia na prestação do SEDIF, com os serviços delegados à Veolia,
um distanciamento dos usuários e uma ausência de transparência. Ele destaca
também a nova opção técnicas para o tratamento da água para abastecimento
imposta pela Veolia, um processo de filtração por membrana de alto desempenho,
de alto custo, que tornaria a tarifa de água bem mais cara. A nova tecnologia
também é criticada por Oliva, tanto em relação aos custos que seriam repassados
para as tarifas, quanto em relação aos impactos ambientais dos rejeitos desse
tipo de tratamento nos corpos de água.
• A importância da participação cidadã na
gestão dos serviços
Um outro elemento
chave da prestação dos dois novos serviços públicos é a participação cidadã na
gestão dos serviços. Na Regie Eau Seine Bièvre o Conselho de Administração foi
aberto à participação deliberativa dos trabalhadores do serviço público e de associações
da sociedade civil; uma sendo a associação que reúne os locatários de imóveis e
a segunda a Coordenação Eau île de France. Aggoune afirmou que também está
sendo criado um Comitê de Cidadãos, englobando o perímetro dos nove municípios,
composto de 80 habitantes, a ser criado até dezembro desse ano e que terá dois
assentos deliberativos no Conselho de Administração.
A questão da
participação social também é central para Eau Publique Est Ensemble. No
Conselho de Administração a representação deliberativa da sociedade civil é
feita pela ONG France Liberté, por uma associação de locatários de imóveis,
pela Coordination Eau île de France, por três pessoas sorteadas entre 12 que
participaram de uma convenção climática e se voluntariaram para serem membros
do Conselho, e duas pessoas consideradas especialistas no tema (duas
pesquisadoras). No total são oito representantes da sociedade civil. Existe
também um Fórum Popular da Água em Est Ensemble, independente de Eau Publique,
que é um espaço de debate sobre diferentes temas relacionados à gestão da água,
como o novo modelo tarifário, que foi submetido aos membros desse fórum antes
de ser adotado.
O novo contrato do
SEDIF com a empresa Veolia, definido em dezembro de 2023, terá duração de 12
anos, de 1º de janeiro de 2025 a 31 de dezembro de 2036. Os novos dois serviços
públicos criados em função da discordância com a prestação dos serviços de água
por empresa privada podem influenciar outras comunas/munícipios e aglomerações
urbanas, dentro do movimento maior que se desenvolve na França de retorno à
prestação pública. Para os gestores públicos brasileiros, pressionados pela
onda de privatização que vem acontecendo no país, o exemplo do que está
acontecendo na França, país das duas maiores empresas privadas do mundo, pode
trazer uma importante lição: a prestação pública pode ser a melhor escolha.
Fonte: Por Ana Lúcia
Brito, em Outras Palavras
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