As arapucas do rentismo contra os idosos
Sopé da Serra da
Cantareira, entre ladeiras, escadarias e vielas: Vila Brasilândia, zona norte
de São Paulo. Naquele sopé vive dona Esperança com seus 76 anos bem vividos.
Figura conhecida, desde há muito participando de todas as lutas e movimentos
comunitários da região, acompanhou mutirões de moradia, a chegada do primeiro
posto de saúde, as escolas melhorando, a primeira creche da prefeitura, a água,
o esgoto, a horta comunitária… Sob a pandemia de covid juntou a sua gente em
rede para que pudessem se proteger contra o vírus que ceifou tantas vidas.
Sempre de vestido florido, chapéu de palha com laço vermelho, e um sorriso a
iluminar as ladeiras. Esperança é dessas mulheres valentes, sofridas e alegres,
como tantas que se vê pelas periferias do Brasil. Transforma cada caminhada em
um evento social, conversa com todos, distribui força e alegria.
Anos passados naquela
Vila cujo nome é homenagem ao Brasil, distrito da periferia de São Paulo com
população de cidade grande: quase 250.000 habitantes. O tempo trouxe a idade,
que trouxe sabedoria e também suas tantas vulnerabilidades. Foi assim que a violência,
insidiosa e silenciosa, encontrou morada na vida de dona Esperança. Não a
violência que estampa nas manchetes de jornais, em que idosos são assaltados à
luz do dia ou crianças são atingidas por balas perdidas, mesmo sabendo-se que
não existe bala perdida. Ela foi vítima da violência que se esconde nas
entrelinhas de contratos e extratos: a violência financeira.
Tudo começou com um
telefonema, aquele telefonema. A voz do outro lado do celular soava tão
prestativa, familiar e confiável. Havia um crédito à disposição dela, uma soma
que nunca fora capaz de juntar em vida. Era só fechar o contrato e o dinheiro
estaria na conta.
A despeito de uma vida
de privações, dona Esperança não necessitava do dinheiro para si; ela consegue
viver bem com a pensão do falecido marido que, somada à própria aposentadoria,
resulta em dois salários mínimos. Tem casa própria, humilde, mas dela, construída
em mutirão com apoio da prefeitura no período em que Luíza Erundina fora
prefeita da cidade. Pelas mãos dela, do esposo, da filha e do filho, ainda
crianças quando ajudaram na construção, ergueram a casa, carregando argamassa,
pedra, tijolo e areia.
Quando recebeu a
oferta do dinheiro rápido em sua conta, Dona Esperança pensou em resolver
problemas urgentes do filho, desempregado, e da filha que cria a filha, sua
neta, sem ajuda do pai. Com coração de mãe generosa assinou o empréstimo e
autorizou o desconto diretamente de sua aposentadoria.
O filho e a filha,
envolvidos em rotinas frenéticas em meio a tantas dificuldades, aceitaram de
bom grado aquele dinheiro chegado em tão boa hora. Mal perceberam as condições
para o pagamento futuro. Difícil imaginar que aquela mulher tão forte, mãe da família
e da comunidade, que a cada caminhada irradia esperança, iria entrar numa
enrascada.
Santo Agostinho
escreveu que a Esperança tem duas filhas lindas: a Indignação e a Coragem.
Indignação para não aceitar as injustiças e a Coragem para enfrentá-las. Assim
se fez Esperança pelas ladeiras da Vila. Todos sentiam sua força. Mas não
perceberam o que estava a acontecer. E as contas, antes pagas tão certinhas,
cabendo no orçamento da aposentadoria e pensão recebidas, agora não mais podiam
ser quitadas, acumulando-se a cada mês. Contas sendo acumuladas sob juros e
mais juros. Subindo e descendo como as ladeiras da Vila até virarem uma
enxurrada a arrebentar ladeiras e arrastar tudo à frente. Mãe do amparo, que
não compartilhou suas agruras com ninguém, por esteio durante toda uma vida.
Esperança encontrara-se só.
Felizmente a história
de dona Esperança não termina em desespero. Em momento de vulnerabilidade, ela
encontrou força e aprendizado matriculando-se em um curso de educação
financeira para idosos. Curso ministrado não em uma escola ou universidade, mas
na Associação do Bairro, lugar que ela e o marido haviam fundado muito tempo
atrás, quando nem luz elétrica havia chegado ao sopé da serra da Cantareira.
Com amigas e amigos,
todos com mais de sessenta anos, alguns com mais de oitenta, se dispôs a
aprender sobre juros, juros compostos, fraudes e golpes, planejamento
financeiro e sustentabilidade, incluindo ambiental. Aprendeu a usar o
aplicativo do banco, a conferir extratos e a não confiar cegamente em
telefonemas prometendo mundos e fundos, nem em mensagens de “zap”. Com o
aprendizado adquirido com o curso, e o tempo, conseguiu reorganizar as finanças
pessoais.
Entre uma aula e outra
alçou asas com a educação financeira. Descobriu que educação financeira não se
refere apenas a números e contas, mas a autonomia e dignidade. Sentiu-se
confiante, mais preparada para enfrentar as pequenas ciladas da vida. Naquele grupo
reforçou amizades, compartilhando histórias e aprendizados. Agora iniciou um
novo mutirão, não mais para construir casas, mas para auxiliar as pessoas a
proteger em união, juntos contra a violência financeira contra idosos.
Dona Esperança, que
antes via o dinheiro como algo distante, ainda mais nesses tempos em que tudo é
virtual e nem papel existe para o manuseio das notas, passou a usar a educação
financeira como uma ferramenta para viver melhor e mais segura. Mas antes disso
foram meses de desespero e solidão. Imaginem essa condição para uma
septuagenária lutadora do povo. Quantas e quantos como ela não estão sofrendo
dessa violência? Agora, nesse exato momento.
Dona Esperança é nome
fictício, tudo mais é verdadeiro. Apesar das violências de todo tipo que rondam
a velhice no Brasil, a educação financeira pode dar Asas à Longevidade,
transformando fragilidade em força, ingenuidade em sabedoria, solidão em
solidariedade. No caso da história de Esperança, o sorriso voltou e o chapéu
com fita vermelha ganhou uma flor.
Fonte: Por Célio
Turino, em Outras Palavras
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