Clã que se diz dono de Jericoacoara foi
condenado por fraude milionária em banco cearense
No mês passado, o
Conselho Comunitário de Jericoacoara realizou uma série de protestos contra um
acordo que vinha sendo costurado entre a Procuradoria Geral do Estado do Ceará
(PGE-CE) e a empresária Iracema Correia São Tiago. As negociações buscavam indenizar
Iracema e seus herdeiros para que abrissem mão de parte de um imóvel rural cuja
matrícula se sobrepõe a 83% da Vila de Jericoacoara, um dos destinos turísticos
mais procurados do país. Em troca, ela receberia 19 lotes desocupados na vila,
localizada a 16 km da sede do município de Jijoca de Jericoacoara.
Revelado em primeira
mão pelo jornalista Carlos Madeiro, do UOL, o caso ganhou projeção nacional,
sendo destaque na edição de 26 de outubro do Fantástico, da TV Globo. Com a
repercussão, o procurador-chefe da Procuradoria do Patrimônio e Meio Ambiente
(Propama), Marcus Claudius Saboia Rattacaso, suspendeu o acordo. Segundo a
decisão, de 29 de outubro, foram identificadas inconsistências na matrícula da
Fazenda Junco I. Segundo o Ministério Público do Ceará (MPCE), houve um aumento
de 483,45 hectares no tamanho da propriedade, lavrado em cartório em dezembro
de 2007 — cinco anos depois da criação do Parque Nacional de Jericoacoara, de
proteção integral.
Mas quem é a
empresária que se diz dona de Jeri? Em vídeo publicado ontem (7) no YouTube, De
Olho nos Ruralistas aborda o histórico da família do ex-marido de Iracema, José
Maria de Morais Machado, diretor do Bancesa, banco liquidado pelo Banco Central
em 1995 após uma série de fraudes contra a União. Adquirido pelo banqueiro em
1983, o imóvel foi transferido para o nome de Iracema na mesma semana em que a
Justiça confirmou a falência do Bancesa, em agosto de 2003. O congelamento dos
bens dos diretores havia sido decretado seis meses antes, em fevereiro.
A reportagem também
teve acesso a processos judiciais em que pequenos agricultores alegam terem
sido vítimas de intimidações promovidas pela família, que derrubou cercas a fim
de expulsar posseiros e consolidar o domínio territorial na costa cearense.
O caso de Jericoacoara
marca a estreia de uma nova editoria audiovisual deste observatório: De Olho no
Litoral explora a fome de empresários — do agronegócio, da energia, do setor
imobiliário — pelas praias brasileiras. Quem são esses senhores? Como eles
dobram o Estado sob o peso do capital? Do outro lado, a resistência de
pescadores, marisqueiras, indígenas e quilombolas para defender seus
territórios e proteger nossos ecossistemas marítimos.
Confira o primeiro
episódio:
DIVÓRCIO FOI AVERBADO
NA SEMANA QUE JUSTIÇA DECRETOU INDISPONIBILIDADE DE BENS
Na época da compra das
terras em Jericoacoara, José Maria de Morais Machado atuava como diretor do
Bancesa, antigo Banco de Crédito Popular de Sobral. A instituição foi fundado
por seu pai, Manoel Machado de Araújo.
Na matrícula da
Fazenda Junco I, o ex-marido de Iracema aparecia como dono até agosto de 2003.
A averbação do divórcio e a transmissão da propriedade ocorreu na mesma semana
em que o Bancesa teve sua falência confirmada, no dia 20 daquele mês, por
decisão do juiz João Luís Nogueira Matias. A sentença pedia a indisponibilidade
de bens dos administradores. Em 26 de agosto, Iracema São Tiago foi
oficializada como nova proprietária da fazenda, após a partilha dos bens do
casal.
O banco da família
Machado foi liquidado pelo Banco Central em 1995, após uma investigação
constatar que seus executivos burlaram o repasse de tributos federais e
contribuições previdenciárias ao Tesouro Nacional. Os diretores foram
denunciados por apropriação indébita, e José Maria foi condenado em 2004 pelo
Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5)
a oito anos de prisão em regime semi-aberto. Ele faleceu quatro anos
depois, em 2008.
Os recursos desviados
pelo banco entre 1994 e 1995 somavam R$ 134 milhões. Corrigido para os dias
atuais, o valor equivale a R$ 1,45 bilhão, conforme dados do Índice Geral de
Preços do Mercado (IGP-M), elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Apesar dos pagamentos
realizados pela massa falida do banco, o Bancesa ainda aparece na lista dos mil
maiores devedores da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), na
categoria de pessoa jurídica. Segundo a última atualização, os débitos
inscritos na Dívida Ativa da União somam R$ 429 milhões. Em 2017, eram de R$
1,4 bilhão.
O processo corre até
hoje na Justiça Federal no Ceará. Em 2023, após uma tentativa de saque de R$ 20
milhões da conta bancária da massa falida, o juiz George Marmelstein Lima
determinou um novo bloqueio, de R$ 286 milhões.
FAMÍLIA NEGA RELAÇÃO
ENTRE MATRÍCULA E FALÊNCIA DO BANCESA
A reportagem procurou
os representantes da família, que responderam através de sua assessoria de
imprensa. A nota afirma não haver relação entre Iracema São Tiago e a situação
do Bancesa na época em que a Fazenda Junco I foi transferida. “A sra. Iracema e
José Maria foram casados por 25 anos e se separaram de fato desde 1989”, diz o
texto. “Em 1995, o divórcio foi homologado na justiça e a partilha de bens foi
oficializada”.
A família afirma ainda
que, quando o Banco Central decretou a liquidação extrajudicial do Bancesa, em
1995, “a meação da esposa (isto é, os bens que cabia à esposa em razão da
separação e por conta do regime de casamento) não respondia pelas dívidas do marido”.
Sobre as matrículas em
negociação junto à PGE-CE, a nota afirma que as ações não tratam de
reintegração de posse e são processos diferentes relativos às fazendas Junco I,
Junco II e Caiçara. “Pelo acordo firmado com o Governo do Estado do Ceará, a
sra. Iracema Correia São Tiago receberia apenas as terras remanescentes, cerca
de 4% do total a que teria direito, que não estejam ocupadas”, informa a
família. “Ou seja, moradores, comerciantes e empresários não serão afetados.
Além disso, ela renuncia de forma expressa qualquer pedido indenizatório contra
o Governo do Estado do Ceará”.
Em relação à
sobreposição de 1.883 hectares ao Parque Nacional de Jericoacoara — 21% da área
total delimitada em 2002 —, a família diz que “existem pedidos de pagamento de
indenização para os imóveis, que deveriam ter sido desapropriados pelo Governo
Federal por conta da criação da mencionada Unidade de Conservação”. Conforme
revelado em reportagem do UOL, uma perícia judicial avaliou as três fazendas
pela quantia astronômica de R$ 624,7 milhões. Segundo o Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão do parque, o
valor indenizável é de 4,24 milhões, segundo tabela de preços de 2019.
Os pontos específicos
relativos ao aumento de 483,45 hectares na matrícula da Fazenda Junco serão
abordados em reportagem específica.
HISTÓRICO JUDICIAL
INCLUI INTIMIDAÇÕES, DESPEJO E CÃES ABANDONADOS
A negociação em torno
das terras de Jericoacoara não é a primeira ofensiva fundiária do clã Machado.
Relatos de agricultores dão conta de intimidações realizadas por José Maria e
seu filho, Estevan São Tiago Machado, fruto do casamento com Iracema. Os dados
foram obtidos a partir de documentos em processos judiciais em curso no
Tribunal de Justiça do Ceará.
Em um dos casos, uma
agricultora afirma que ela e sua família sofreram pressões para vender lotes a
José Maria Machado desde os anos 1980. Segundo seu relato, o banqueiro
costumava derrubar cercas e impor acordos para que pequenos proprietários
deixassem a região.
Trinta anos depois, em
2012, Estevan foi acusado por dois posseiros do município vizinho de Cruz, onde
está localizada parte da Fazenda Caiçara, uma das propriedades sobrepostas ao
Parque Nacional de Jericoacoara. Eles movem ações de reintegração de posse
contra Estevan, que teria derrubado cercas e intimado famílias instaladas na
região da Lagoa de Jijoca, acompanhado de força policial.
Em Fortaleza, capital
do estado, a ofensiva da família Machado para preservar o patrimônio incluiu um
episódio em que a Santa Elisa Ltda, empresa imobiliária administrada por
Iracema, demoliu a moradia de Manoel Messias Monteiro dos Santos em 2020. Manoel
afirma que, ao retornar para sua casa, encontrou parte do imóvel destruído e
seus animais de estimação soltos na rua. No espaço, ele mantinha uma escolinha
de futebol para a comunidade local.
A mesma empresa é alvo
de uma ação judicial movida em 2016 pela Associação Brasileira dos Defensores
dos Direitos e Bem-Estar dos Animais. A ONG alega que a Santa Elisa estaria
retirando cachorros de abrigos para utilizá-los como “guardas”. A peça diz que
os cães são deixados sem água ou comida, em estado de abandono.
A Eco Jeri
Participações, outra empresa de Iracema, é alvo do Ministério Público pelo
abandono de um prédio, sob risco de desabamento, no bairro Andreota, zona nobre
da capital.
‘NÃO HÁ ABANDONO DE
PATRIMÔNIO’, DIZ FAMÍLIA
Questionada sobre os
processos judiciais envolvendo a família São Tiago-Machado, a assessoria
informou que as acusações são “totalmente infundadas” e que não há nenhum
abandono da família quanto a seu patrimônio:
— José Maria Machado
era um empresário muito bem sucedido do setor de couro e de cera de carnaúba do
município de Sobral, de uma família muito tradicional. Ele começou a adquirir
as áreas no então município de Cruz na década de 80, acostando diversos contratos
de compra e venda bem como recibos que comprovam as compras, sendo estas
legítimas e válidas. Nunca houve denúncias em relação à sua conduta nesse
setor.
A família diz que o
autor da ação de reintegração de posse, Valdir Ferreira, após ter vendido a
área a José Maria — e após seu falecimento — resolveu se apossar indevidamente
e reivindicar a área, “em uma manobra de má-fé”. A nota prossegue: “Convém mencionar
que o autor (Valdir) já obteve título dominial fornecido pelo Idace [Instituto
do Desenvolvimento Agrário do Ceará] em outra área. Aguardamos a tramitação do
processo e espera-se a total improcedência da ação”.
Sobre o imóvel
abandonado em Aldeota, a assessoria informa que há uma ação judicial movida
pela Prefeitura Municipal de Fortaleza que visa anular a matrícula do imóvel,
de propriedade da Eco Jeri Participação Ltda, alegando a existência de um
loteamento de 1949 que previa a instalação de uma praça. “Há, assim, fundada dúvida quanto à
propriedade do imóvel, em que pese o interesse das empresas em dar destino
comercial ao bem, encontram-se impossibilitadas, dada a postura municipal”, diz
a nota.
Em relação aos
cachorros, a empresa Santa Elisa afirma que os cães estão em condições
adequadas, inclusive com as vacinas obrigatórias em dia e boa saúde. E
completa: “A Sra. Iracema foi administradora e não sócia da empresa Santa Elisa
entre os anos de 2019/2023, período posterior ao ocorrido, não tendo nenhuma
relação com os fatos”.
Fonte: Por Tonsk
Fialho, em De Olho nos Ruralistas
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