segunda-feira, 17 de junho de 2024

Decisão do STF promove clima de "liberou geral" no judiciário

Em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal liberou os magistrados para atuarem em processos em que uma das partes fosse cliente de escritório de advocacia de cônjuge, companheiro ou parente próximo (até terceiro grau) dele, desde que, naquele processo específico, a pessoa estivesse representada por outro escritório.

Depois da decisão do STF, o clima é de liberou geral. Não sou só eu que penso isso. Para Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo, o fim da proibição é um enorme prejuízo, porque sobraram apenas normas genéricas de imparcialidade e suspeição.

"Isso deixa os magistrados à vontade para atuarem em processos pelos quais seus parentes, direta ou indiretamente, recebem honorários. Cabe ao juiz avaliar quando deve abdicar de julgar um caso, de acordo com a sua consciência", me disse o professor.

As denúncias de corrupção, parcialidade e nepotismo que mapeei, contudo, reforçam: não dá para confiar na consciência de certos magistrados.

Por meio da Lei de Acesso à Informação e por pesquisas no site e em julgamentos disponíveis no YouTube do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, encontrei 12 casos de juízes ou desembargadores denunciados desde 2010 por atuar diretamente para favorecer familiares ou por praticar algum tipo de ilegalidade com eles. Nove desses casos envolviam os filhos deles. Vou te contar três exemplos nessa newsletter:

•           1) R$ 3,5 milhões a mais na renda familiar

De acordo com uma investigação da Polícia Federal, o advogado Ravik de Barros Bello Ribeiro, filho do desembargador Cândido Ribeiro, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, teria negociado por R$ 3,5 milhões o voto favorável do pai no julgamento de um habeas corpus.

O valor milionário se explica pelo porte do criminoso: o traficante internacional Leonardo Nobre, membro da facção Primeiro Comando da Capital. Ele é acusado de usar os portos brasileiros para enviar toneladas de cocaína para a Europa.

Ligações telefônicas analisadas pela PF indicam que Ravik teria procurado parentes do traficante e negociado o voto do desembargador para revogar a prisão e substituí-la por monitoramento eletrônico.

Além disso, 19 dias após ser solto, o criminoso teria se reunido com o filho do magistrado. A suspeita da PF é de que o encontro tenha sido para acertar o pagamento.

O CNJ abriu uma reclamação disciplinar contra o desembargador Ribeiro três dias após a operação da PF, chamada de Habeas Pater. Dois meses depois, em maio de 2023, o magistrado se aposentou por invalidez.

A assessoria de imprensa do CNJ informou que "o processo não foi encerrado em virtude da aposentadoria do desembargador" e que não forneceria mais informações porque o caso está sob sigilo.

•           2) "Toga baby" não fica preso

Em dois casos que mapeei, magistrados usaram o cargo para favorecer os próprios filhos presos, descumprindo regras basilares da magistratura de imparcialidade e impessoalidade.

Em julho de 2017, segundo a investigação do CNJ, a desembargadora do Mato Grosso do Sul, Tânia Garcia de Freitas Borges, usou o veículo do tribunal e foi ao presídio pressionar a direção pelo cumprimento do habeas corpus que autorizava a remoção do seu filho, Breno Fernando Solon Borges, para uma clínica psiquiátrica.

Ele tinha sido acusado de tráfico de drogas e estava preso por ter transportado 130 quilos de maconha e 200 munições de fuzil. A investigação do CNJ apontou que ele nunca solicitou atendimento médico, psiquiátrico ou psicológico durante os três meses em que esteve na prisão.

O diretor do presídio, Raul Augusto Aparecido Sá Ramalho, autorizou a transferência de Breno apenas com uma cópia da decisão levada pelo advogado. Por lei, cada estado organiza seus procedimentos de soltura, mas geralmente os alvarás de soltura são cumpridos por oficial de Justiça. Em vez da Polícia Militar, foi a própria desembargadora quem levou o filho da prisão para a clínica. Antes, pararam em casa por algumas horas.

Ramalho, relatou em uma mensagem para o juiz corregedor dos presídios que tudo "foi bem tenso" na manhã em que a desembargadora esteve lá com policiais, "ameaçando prisão por desobediência”.

Breno foi preso novamente em fevereiro de 2024 em Atibaia, no interior de São Paulo. Ele era considerado foragido da justiça desde maio de 2023, quando foi expedido um novo mandado de prisão por tráfico de drogas. Sua mãe foi punida pelo CNJ com aposentadoria compulsória em 2021.

•           3) Julgamento do CNJ

Já no Piauí, o juiz Noé Pacheco concedeu liberdade ao próprio filho Lucas Pacheco, preso em flagrante por dirigir bêbado, atropelar uma motociclista e fugir sem prestar socorro. O magistrado sequer determinou pagamento de fiança.

Ele era o juiz de plantão na comarca de Floriano na noite em que o crime ocorreu, em março de 2021. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional e o artigo 144 do Código de Processo Civil o impediam de atuar no caso.

Para justificar sua decisão, Pacheco alegou que se tratava de caso urgente, porque o filho corria risco de vida se fosse levado para a penitenciária. Lá, estavam criminosos sentenciados pelo magistrado, que poderiam querer vingança.

Na delegacia onde o rapaz ficou por algumas horas, contudo, só havia duas pessoas detidas por determinação do juiz: um adolescente e um homem preso por lesões corporais, ameaça e injúria. O filho do juiz sequer estava na cela junto com os outros presos.

No julgamento no CNJ, a conselheira Salise Sanchotene defendeu que o juiz Pacheco deveria ser afastado de suas funções por, no mínimo, dois anos.

A maioria dos conselheiros do CNJ, contudo, achou que a remoção compulsória seria mais justa. Eles levaram em conta a "situação difícil que se encontrava o magistrado" por ter um filho preso, como defendeu o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Ele e o conselheiro Marcello Terto chegaram a admitir durante o julgamento que talvez fizessem o mesmo. "Na situação dele, eu não sei se teria agido diferente", disse Mello na sessão de 8 de agosto de 2023.

A condescendência dos colegas no CNJ não passou despercebida pelo ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. Para ele, a verdadeira vítima era a moça "largada na avenida por um cidadão completamente embriagado", não o magistrado e muito menos o seu herdeiro.

Se não fosse o filho do juiz, questionou o ministro, "qual teria sido a reação do sistema punitivo para um cidadão comum?".

Todos sabemos qual é a resposta.

 

•           Urgência ao projeto antidelação mostra a total decadência da política brasileira. Por Mirian Leitão

A Câmara aprovou a urgência da lei antidelação, isso significa que a proposta não será debatida e pode ser aprovado diretamente no plenário, e esse movimento é muito ruim para o país. A delação, ou colaboração premiada, foi aprovada em 2013, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, e permitiu avanços no combate a todo tipo de criminalidade. Ao longo do tempo, eventuais erros já foram corrigidos.

Hoje, por exemplo, se sabe, e isso está estabelecido como prática e também na lei, que só a delação não é prova, ela precisa ser corroborada por fatos que comprovem o que o colaborador disse. Isso dá uma garantia de que a pessoa não falará mentira para se proteger. A deleção só é levada adiante com a comprovação por investigação.

O que pretende o Congresso quando decide tirar um instrumento que é importante no combate à corrupção? Quer que não sejam combatidos diversos crimes no Brasi. O projeto surgiu no PT e agora tem apoio de todos os partidários do ex-presidente Jair Bolsonaro para uma aprovação rápida. Uma aliança estranha com um objetivo prejudicial às investigações.

 

•          Projeto contra delação discutido na Câmara ignora legislação existente

O projeto de lei discutido na Câmara dos Deputados para proibir a delação de presos ignora dispositivo presente na legislação em vigor e entendimento consolidado do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o tema, apontam especialistas.

Pautada pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), a proposta fala em "instrumentalização" da "privação cautelar da liberdade" ao questionar a voluntariedade de pessoas presas na hora de aceitar a participação em delações premiadas.

"A privação de liberdade, por si só, constitui circunstância apta a provocar uma redução do grau de autonomia no que concerne à livre manifestação da vontade por parte das pessoas custodiadas", diz trecho da justificativa do projeto.

O tema, entretanto, já foi abordado no pacote anticrime (lei 13.964/2019), posterior ao projeto sobre delação apresentado em 2016 e resgatado agora pela Câmara. A lei em vigor há cinco anos enfatiza que a observância da voluntariedade deve ser dada "especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares".

Na quarta-feira (12), um requerimento de urgência da proposta foi aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados em menos de dez minutos e de forma simbólica --quando não há contabilização dos votos.

A urgência acelera a tramitação de uma matéria, já que ela não precisa ser analisada nas comissões temáticas da Casa e segue direto ao plenário. Os deputados ainda precisarão votar o mérito do texto.

Em sua fundamentação, o projeto traz considerações sobre as prisões brasileiras, chamadas de "estruturas sucateadas e superlotadas", e cita histórico como o da Operação Lava Jato, marcada pela "adoção de ilegítimas estratégias processuais com a finalidade de forçar o investigado a, vendo-se fragilizado, se pôr a colaborar com as apurações".

A colaboração premiada é um acordo entre investigador e investigado, no qual o segundo se compromete a ajudar na investigação em troca de benefícios negociados, como a diminuição de pena.

Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo avaliam que o projeto ignora mudanças legislativas que regulamentaram o instituto da delação premiada, notadamente o pacote anticrime, e afirmam que o texto remete a um contexto anterior a alterações ocorridas desde que os acordos da Lava Jato passaram a ser questionados.

Além disso, afirmam que a questão já está pacificada pelo Supremo. "O PL [projeto de lei] vai de encontro à nova previsão legislativa sobre a colaboração premiada. O ponto que mais me chamou a atenção foi o fato de não terem sido mencionadas as alterações provocadas pelo pacote anticrime", afirma Luísa Walter da Rosa, advogada criminalista e mestre em direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Segundo ela, o debate sobre a voluntariedade de presos em casos de delação já foi feito e o momento é de focar em novas reflexões que podem continuar a aperfeiçoar o instituto. Como exemplo, cita a necessidade de discutir os efeitos da rescisão dos acordos e a extensão dos benefícios entregues aos delatores.

A aprovação do projeto, afirma, seria cenário negativo para o combate ao crime organizado, intimamente ligado ao instituto das delações. "Além disso, o projeto viola ainda mais os direitos de quem está encarcerado, porque propõe limitar o direito de defesa de quem está preso de se valer de um benefício processual."

Ricardo Yamin, professor de processo civil da PUC-SP, concorda que o texto desconsidera as mudanças ocorridas no país desde a época da Lava Jato e que o STF já pacificou a questão. "O tribunal decidiu mais de uma vez que o importante no caso de o réu delatar é a liberdade psíquica, não a física", afirma.

Apesar disso, diz ser pessoalmente contra a delação de presos e que o debate da questão no Parlamento, desde que despolitizado, é importante.

"O dispositivo [presente no pacote anticrime] já é o suficiente do ponto de vista jurídico para resolver quaisquer questões. Se amanhã ou depois o advogado de quem quer que seja junta aos autos elementos demonstrando qualquer violação a essa suposta voluntariedade, poderia haver a nulidade", afirma Jordan Tomazelli, mestre em direito processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo).

O que se pode fazer para continuar a aprimorar a lei é especificar de forma mais objetiva que elementos devem ser trazidos aos autos para aferir a voluntariedade do delator preso, diz.

Para Tomazelli, a aprovação do projeto criaria novos problemas, pois tolhe o direito de acessar o instituto, que funciona como um benefício para o investigado.

Gustavo Sampaio, professor de direito constitucional da UFF (Universidade Federal Fluminense), afirma que a colaboração de presos é válida desde que a prisão ocorra de maneira regular.

Ele afirma ser favorável à colaboração premiada com investigado preso quando a prisão preventiva tenha ocorrido com base nos fundamentos do artigo 312 do Código de Processo Penal. "Nunca se a prisão for decretada com a finalidade de forçar alguém a delatar", diz.

Segundo o artigo, a prisão preventiva pode ser decretada como "garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado".

Em entrevista na última segunda-feira (10), o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, disse que cabe ao Congresso deliberar sobre o tema, mas que as delações têm funcionado, "com as adequações que o Supremo impôs, como uma ferramenta positiva". "O fato de o réu estar preso não é em si um problema."

 

•          STF forma maioria para receber queixa-crime de Jair Bolsonaro contra André Janones

O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria de votos para aceitar a queixa-crime de Jair Bolsonaro (PL) contra o deputado federal André Janones (Avante-MG) nesta sexta-feira, 14. Janones é acusado pelos crimes de calúnia e injúria por ter chamado o ex-presidente da República de “ladrãozinho de joias, bandido fujão, assassino”.

O julgamento, que acontece em plenário virtual, teve início em 10 de maio com a votação da ministra Cármen Lúcia para que a Corte recebesse a queixa-crime. Após receber o pedido de vista - mais tempo para análise - do ministro Flávio Dino, o caso voltou à pauta do Plenário na última sexta-feira, 7 e tem previsão para ser encerrado ao fim desta sexta-feira, 14.

Em postagem nas redes, o deputado alega que a aceitação da denúncia pelo STF “é a confirmação cabal da hipocrisia de Bolsonaro”. “Quando é ele o autor das acusações, defende a liberdade de expressão absoluta (especialmente para os detentores de mandato, como eu, no gozo de suas imunidades por palavras e votos), mas quando é acusado, recorre ao tribunal para calar seus adversários”, afirmou Janones no X (antigo Twitter).

Até o momento, os ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Gilmar Mendes, Edson Fachin e Nunes Marques seguem o voto da relatora, Cármen Lúcia, enquanto Cristiano Zanin, André Mendonça e Dias Toffoli são contrário à ação. Com a maioria formada, o parlamentar será investigado.

Para a relatora, parece haver “prova mínima da autoria e da materialidade do delito de injúria”, entretanto ela avalia que não houve calúnia. “Dessa forma, não havendo nessa afirmação nenhum fato determinado e específico como crime, não se encontra configurado o crime de calúnia”, afirma.

Segundo Zanin, que votou contra a abertura da queixa-crime, não aconteceu delito devido a imunidade parlamentar. Ele também diz que o ambiente em que as declarações foram feitas, as redes sociais, são locais em que há a troca de manifestações “jocosa e irônica”.

De acordo com o Código Penal, a injuria é a prática de proferir ofensas que firam a dignidade ou decoro do outro; a pena é de um a seis meses. E, a calúnia ocorre quando é atribuído à alguém um fato definido como crime, nesse caso a pena é de seis meses a um ano.

 

Fonte: Por Nayara Felizardo, em The Intercept/O Globo/FolhaPress/Agencia Estado

 

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