Decisão do
STF promove clima de "liberou geral" no judiciário
Em
agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal liberou os magistrados para atuarem
em processos em que uma das partes fosse cliente de escritório de advocacia de
cônjuge, companheiro ou parente próximo (até terceiro grau) dele, desde que,
naquele processo específico, a pessoa estivesse representada por outro
escritório.
Depois
da decisão do STF, o clima é de liberou geral. Não sou só eu que penso isso.
Para Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Universidade
de São Paulo, o fim da proibição é um enorme prejuízo, porque sobraram apenas
normas genéricas de imparcialidade e suspeição.
"Isso
deixa os magistrados à vontade para atuarem em processos pelos quais seus
parentes, direta ou indiretamente, recebem honorários. Cabe ao juiz avaliar
quando deve abdicar de julgar um caso, de acordo com a sua consciência",
me disse o professor.
As
denúncias de corrupção, parcialidade e nepotismo que mapeei, contudo, reforçam:
não dá para confiar na consciência de certos magistrados.
Por
meio da Lei de Acesso à Informação e por pesquisas no site e em julgamentos
disponíveis no YouTube do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, encontrei 12
casos de juízes ou desembargadores denunciados desde 2010 por atuar diretamente
para favorecer familiares ou por praticar algum tipo de ilegalidade com eles.
Nove desses casos envolviam os filhos deles. Vou te contar três exemplos nessa
newsletter:
• 1) R$ 3,5 milhões a mais na renda
familiar
De
acordo com uma investigação da Polícia Federal, o advogado Ravik de Barros
Bello Ribeiro, filho do desembargador Cândido Ribeiro, do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, teria negociado por R$ 3,5 milhões o voto favorável do
pai no julgamento de um habeas corpus.
O
valor milionário se explica pelo porte do criminoso: o traficante internacional
Leonardo Nobre, membro da facção Primeiro Comando da Capital. Ele é acusado de
usar os portos brasileiros para enviar toneladas de cocaína para a Europa.
Ligações
telefônicas analisadas pela PF indicam que Ravik teria procurado parentes do
traficante e negociado o voto do desembargador para revogar a prisão e
substituí-la por monitoramento eletrônico.
Além
disso, 19 dias após ser solto, o criminoso teria se reunido com o filho do
magistrado. A suspeita da PF é de que o encontro tenha sido para acertar o
pagamento.
O
CNJ abriu uma reclamação disciplinar contra o desembargador Ribeiro três dias
após a operação da PF, chamada de Habeas Pater. Dois meses depois, em maio de
2023, o magistrado se aposentou por invalidez.
A
assessoria de imprensa do CNJ informou que "o processo não foi encerrado
em virtude da aposentadoria do desembargador" e que não forneceria mais
informações porque o caso está sob sigilo.
• 2) "Toga baby" não fica
preso
Em
dois casos que mapeei, magistrados usaram o cargo para favorecer os próprios
filhos presos, descumprindo regras basilares da magistratura de imparcialidade
e impessoalidade.
Em
julho de 2017, segundo a investigação do CNJ, a desembargadora do Mato Grosso
do Sul, Tânia Garcia de Freitas Borges, usou o veículo do tribunal e foi ao
presídio pressionar a direção pelo cumprimento do habeas corpus que autorizava
a remoção do seu filho, Breno Fernando Solon Borges, para uma clínica
psiquiátrica.
Ele
tinha sido acusado de tráfico de drogas e estava preso por ter transportado 130
quilos de maconha e 200 munições de fuzil. A investigação do CNJ apontou que
ele nunca solicitou atendimento médico, psiquiátrico ou psicológico durante os
três meses em que esteve na prisão.
O
diretor do presídio, Raul Augusto Aparecido Sá Ramalho, autorizou a
transferência de Breno apenas com uma cópia da decisão levada pelo advogado.
Por lei, cada estado organiza seus procedimentos de soltura, mas geralmente os
alvarás de soltura são cumpridos por oficial de Justiça. Em vez da Polícia
Militar, foi a própria desembargadora quem levou o filho da prisão para a
clínica. Antes, pararam em casa por algumas horas.
Ramalho,
relatou em uma mensagem para o juiz corregedor dos presídios que tudo "foi
bem tenso" na manhã em que a desembargadora esteve lá com policiais,
"ameaçando prisão por desobediência”.
Breno
foi preso novamente em fevereiro de 2024 em Atibaia, no interior de São Paulo.
Ele era considerado foragido da justiça desde maio de 2023, quando foi expedido
um novo mandado de prisão por tráfico de drogas. Sua mãe foi punida pelo CNJ
com aposentadoria compulsória em 2021.
• 3) Julgamento do CNJ
Já
no Piauí, o juiz Noé Pacheco concedeu liberdade ao próprio filho Lucas Pacheco,
preso em flagrante por dirigir bêbado, atropelar uma motociclista e fugir sem
prestar socorro. O magistrado sequer determinou pagamento de fiança.
Ele
era o juiz de plantão na comarca de Floriano na noite em que o crime ocorreu,
em março de 2021. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional e o artigo 144 do
Código de Processo Civil o impediam de atuar no caso.
Para
justificar sua decisão, Pacheco alegou que se tratava de caso urgente, porque o
filho corria risco de vida se fosse levado para a penitenciária. Lá, estavam
criminosos sentenciados pelo magistrado, que poderiam querer vingança.
Na
delegacia onde o rapaz ficou por algumas horas, contudo, só havia duas pessoas
detidas por determinação do juiz: um adolescente e um homem preso por lesões
corporais, ameaça e injúria. O filho do juiz sequer estava na cela junto com os
outros presos.
No
julgamento no CNJ, a conselheira Salise Sanchotene defendeu que o juiz Pacheco
deveria ser afastado de suas funções por, no mínimo, dois anos.
A
maioria dos conselheiros do CNJ, contudo, achou que a remoção compulsória seria
mais justa. Eles levaram em conta a "situação difícil que se encontrava o
magistrado" por ter um filho preso, como defendeu o conselheiro Luiz
Fernando Bandeira de Mello.
Ele
e o conselheiro Marcello Terto chegaram a admitir durante o julgamento que
talvez fizessem o mesmo. "Na situação dele, eu não sei se teria agido
diferente", disse Mello na sessão de 8 de agosto de 2023.
A
condescendência dos colegas no CNJ não passou despercebida pelo ministro Luiz
Philippe Vieira de Mello Filho. Para ele, a verdadeira vítima era a moça
"largada na avenida por um cidadão completamente embriagado", não o
magistrado e muito menos o seu herdeiro.
Se
não fosse o filho do juiz, questionou o ministro, "qual teria sido a
reação do sistema punitivo para um cidadão comum?".
Todos
sabemos qual é a resposta.
• Urgência ao projeto antidelação
mostra a total decadência da política brasileira. Por Mirian Leitão
A
Câmara aprovou a urgência da lei antidelação, isso significa que a proposta não
será debatida e pode ser aprovado diretamente no plenário, e esse movimento é
muito ruim para o país. A delação, ou colaboração premiada, foi aprovada em
2013, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, e permitiu avanços no combate
a todo tipo de criminalidade. Ao longo do tempo, eventuais erros já foram
corrigidos.
Hoje,
por exemplo, se sabe, e isso está estabelecido como prática e também na lei,
que só a delação não é prova, ela precisa ser corroborada por fatos que
comprovem o que o colaborador disse. Isso dá uma garantia de que a pessoa não
falará mentira para se proteger. A deleção só é levada adiante com a
comprovação por investigação.
O
que pretende o Congresso quando decide tirar um instrumento que é importante no
combate à corrupção? Quer que não sejam combatidos diversos crimes no Brasi. O
projeto surgiu no PT e agora tem apoio de todos os partidários do ex-presidente
Jair Bolsonaro para uma aprovação rápida. Uma aliança estranha com um objetivo
prejudicial às investigações.
• Projeto contra delação discutido na
Câmara ignora legislação existente
O
projeto de lei discutido na Câmara dos Deputados para proibir a delação de
presos ignora dispositivo presente na legislação em vigor e entendimento
consolidado do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o tema, apontam
especialistas.
Pautada
pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), a proposta fala em
"instrumentalização" da "privação cautelar da liberdade" ao
questionar a voluntariedade de pessoas presas na hora de aceitar a participação
em delações premiadas.
"A
privação de liberdade, por si só, constitui circunstância apta a provocar uma
redução do grau de autonomia no que concerne à livre manifestação da vontade
por parte das pessoas custodiadas", diz trecho da justificativa do
projeto.
O
tema, entretanto, já foi abordado no pacote anticrime (lei 13.964/2019),
posterior ao projeto sobre delação apresentado em 2016 e resgatado agora pela
Câmara. A lei em vigor há cinco anos enfatiza que a observância da
voluntariedade deve ser dada "especialmente nos casos em que o colaborador
está ou esteve sob efeito de medidas cautelares".
Na
quarta-feira (12), um requerimento de urgência da proposta foi aprovado pelo
plenário da Câmara dos Deputados em menos de dez minutos e de forma simbólica
--quando não há contabilização dos votos.
A
urgência acelera a tramitação de uma matéria, já que ela não precisa ser
analisada nas comissões temáticas da Casa e segue direto ao plenário. Os
deputados ainda precisarão votar o mérito do texto.
Em
sua fundamentação, o projeto traz considerações sobre as prisões brasileiras,
chamadas de "estruturas sucateadas e superlotadas", e cita histórico
como o da Operação Lava Jato, marcada pela "adoção de ilegítimas
estratégias processuais com a finalidade de forçar o investigado a, vendo-se
fragilizado, se pôr a colaborar com as apurações".
A
colaboração premiada é um acordo entre investigador e investigado, no qual o
segundo se compromete a ajudar na investigação em troca de benefícios
negociados, como a diminuição de pena.
Especialistas
ouvidos pela Folha de S.Paulo avaliam que o projeto ignora mudanças
legislativas que regulamentaram o instituto da delação premiada, notadamente o
pacote anticrime, e afirmam que o texto remete a um contexto anterior a
alterações ocorridas desde que os acordos da Lava Jato passaram a ser
questionados.
Além
disso, afirmam que a questão já está pacificada pelo Supremo. "O PL
[projeto de lei] vai de encontro à nova previsão legislativa sobre a
colaboração premiada. O ponto que mais me chamou a atenção foi o fato de não
terem sido mencionadas as alterações provocadas pelo pacote anticrime",
afirma Luísa Walter da Rosa, advogada criminalista e mestre em direito pela
UFPR (Universidade Federal do Paraná).
Segundo
ela, o debate sobre a voluntariedade de presos em casos de delação já foi feito
e o momento é de focar em novas reflexões que podem continuar a aperfeiçoar o
instituto. Como exemplo, cita a necessidade de discutir os efeitos da rescisão
dos acordos e a extensão dos benefícios entregues aos delatores.
A
aprovação do projeto, afirma, seria cenário negativo para o combate ao crime
organizado, intimamente ligado ao instituto das delações. "Além disso, o
projeto viola ainda mais os direitos de quem está encarcerado, porque propõe
limitar o direito de defesa de quem está preso de se valer de um benefício
processual."
Ricardo
Yamin, professor de processo civil da PUC-SP, concorda que o texto desconsidera
as mudanças ocorridas no país desde a época da Lava Jato e que o STF já
pacificou a questão. "O tribunal decidiu mais de uma vez que o importante
no caso de o réu delatar é a liberdade psíquica, não a física", afirma.
Apesar
disso, diz ser pessoalmente contra a delação de presos e que o debate da
questão no Parlamento, desde que despolitizado, é importante.
"O
dispositivo [presente no pacote anticrime] já é o suficiente do ponto de vista
jurídico para resolver quaisquer questões. Se amanhã ou depois o advogado de
quem quer que seja junta aos autos elementos demonstrando qualquer violação a
essa suposta voluntariedade, poderia haver a nulidade", afirma Jordan
Tomazelli, mestre em direito processual pela Ufes (Universidade Federal do
Espírito Santo).
O
que se pode fazer para continuar a aprimorar a lei é especificar de forma mais
objetiva que elementos devem ser trazidos aos autos para aferir a
voluntariedade do delator preso, diz.
Para
Tomazelli, a aprovação do projeto criaria novos problemas, pois tolhe o direito
de acessar o instituto, que funciona como um benefício para o investigado.
Gustavo
Sampaio, professor de direito constitucional da UFF (Universidade Federal
Fluminense), afirma que a colaboração de presos é válida desde que a prisão
ocorra de maneira regular.
Ele
afirma ser favorável à colaboração premiada com investigado preso quando a
prisão preventiva tenha ocorrido com base nos fundamentos do artigo 312 do
Código de Processo Penal. "Nunca se a prisão for decretada com a
finalidade de forçar alguém a delatar", diz.
Segundo
o artigo, a prisão preventiva pode ser decretada como "garantia da ordem
pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para
assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime
e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do
imputado".
Em
entrevista na última segunda-feira (10), o presidente do STF, ministro Luís
Roberto Barroso, disse que cabe ao Congresso deliberar sobre o tema, mas que as
delações têm funcionado, "com as adequações que o Supremo impôs, como uma
ferramenta positiva". "O fato de o réu estar preso não é em si um
problema."
• STF forma maioria para receber
queixa-crime de Jair Bolsonaro contra André Janones
O
Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria de votos para aceitar a
queixa-crime de Jair Bolsonaro (PL) contra o deputado federal André Janones
(Avante-MG) nesta sexta-feira, 14. Janones é acusado pelos crimes de calúnia e
injúria por ter chamado o ex-presidente da República de “ladrãozinho de joias,
bandido fujão, assassino”.
O
julgamento, que acontece em plenário virtual, teve início em 10 de maio com a
votação da ministra Cármen Lúcia para que a Corte recebesse a queixa-crime.
Após receber o pedido de vista - mais tempo para análise - do ministro Flávio
Dino, o caso voltou à pauta do Plenário na última sexta-feira, 7 e tem previsão
para ser encerrado ao fim desta sexta-feira, 14.
Em
postagem nas redes, o deputado alega que a aceitação da denúncia pelo STF “é a
confirmação cabal da hipocrisia de Bolsonaro”. “Quando é ele o autor das
acusações, defende a liberdade de expressão absoluta (especialmente para os
detentores de mandato, como eu, no gozo de suas imunidades por palavras e
votos), mas quando é acusado, recorre ao tribunal para calar seus adversários”,
afirmou Janones no X (antigo Twitter).
Até
o momento, os ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Gilmar Mendes, Edson
Fachin e Nunes Marques seguem o voto da relatora, Cármen Lúcia, enquanto
Cristiano Zanin, André Mendonça e Dias Toffoli são contrário à ação. Com a
maioria formada, o parlamentar será investigado.
Para
a relatora, parece haver “prova mínima da autoria e da materialidade do delito
de injúria”, entretanto ela avalia que não houve calúnia. “Dessa forma, não
havendo nessa afirmação nenhum fato determinado e específico como crime, não se
encontra configurado o crime de calúnia”, afirma.
Segundo
Zanin, que votou contra a abertura da queixa-crime, não aconteceu delito devido
a imunidade parlamentar. Ele também diz que o ambiente em que as declarações
foram feitas, as redes sociais, são locais em que há a troca de manifestações
“jocosa e irônica”.
De
acordo com o Código Penal, a injuria é a prática de proferir ofensas que firam
a dignidade ou decoro do outro; a pena é de um a seis meses. E, a calúnia
ocorre quando é atribuído à alguém um fato definido como crime, nesse caso a
pena é de seis meses a um ano.
Fonte:
Por Nayara Felizardo, em The Intercept/O Globo/FolhaPress/Agencia Estado
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