Por que os brasileiros estão morrendo mais?
A partir de 2016, o capitalismo brasileiro
ingressou em uma nova etapa histórica: a da consolidação do Estado neoliberal.
Essa fase se caracteriza pela intensificação da produção destrutiva da força de
trabalho, fenômeno que denomino “superexploração destrutiva”. O capitalismo
brasileiro está alinhado ao capitalismo global e à crise estrutural do capital.
As tendências destrutivas assumem proporções ampliadas devido à nossa condição
de capitalismo dependente e subalterno à ordem do capital.
O Brasil é o cenário privilegiado para a
explosão das contradições metabólicas do capital. Na etapa superior da crise
estrutural do capital, a natureza – que é a natureza do capital – implode em
razão de suas contradições internas, sendo a principal delas a contradição
entre capital e trabalho. A fratura metabólica é, de fato, um movimento interno
de implosão das contradições cumulativas do sistema.
Esse novo metabolismo do capital em países
capitalistas dependentes, como o Brasil, expõe o que chamamos de “capitalismo
da morte” e o “Estado necrófilo”, características do Estado neoliberal voltado
para a produção destrutiva do trabalho vivo das classes subalternas miseráveis.
Trata-se de uma população pobre e envelhecida, com condições de saúde
precárias, exposta ao novo regime demográfico do capital, às mudanças
epidemiológicas e ao colapso ambiental.
É essa nova realidade histórica que explica,
de certo modo, os dados apresentados sobre a evolução do número de óbitos no
Brasil entre 2015 e 2025 (conforme gráfico abaixo, elaborado por nós com base
no site da Transparência Brasil). Em números frios, revela-se a produção
destrutiva do trabalho vivo.
Embora não tenhamos o recorte dos dados de
óbitos por classe social, é muito provável que a maior parte das mortes ocorra
entre trabalhadores, idosos e pessoas em situação de precariedade social. Ainda
que não haja dados específicos por classe social, supomos que isso seja
evidente, uma vez que é a classe subalterna que mais sofre os efeitos da
catástrofe sanitária e da degradação da saúde decorrente do envelhecimento
populacional.
Analisemos os dados:
O número de óbitos apresenta um crescimento
gradual de 2015 até 2019. Em 2020 e 2021, há um aumento acentuado no número de
mortes, indicando um evento excepcional. Após o pico de 2021, há uma redução em
2022 e uma leve tendência de estabilização em 2023 e 2024. Como explicar o
aumento gradual até 2019?
O crescimento pode ser atribuído ao
envelhecimento populacional e ao aumento de doenças crônicas (como diabetes e
hipertensão), que são comuns em populações que envelhecem. Possíveis fatores
estruturais como a crise econômica e a precarização do sistema de saúde também
podem ter contribuído para um aumento na mortalidade.
O pico em 2020 e 2021, o forte aumento no
número de óbitos coincide com a pandemia da Covid-19, que teve seus momentos
mais críticos nesses anos. Em 2021, o Brasil enfrentou uma segunda onda
devastadora com o surgimento da variante Gama, a demora na vacinação e o
colapso de hospitais, o que pode explicar o aumento recorde.
A partir de 2022 a mortalidade teve uma
queda. A redução do número de óbitos pode estar relacionada à vacinação em
massa contra a Covid-19, que reduziu drasticamente os casos graves e as mortes.
A normalização do sistema de saúde e a retomada dos atendimentos para outras
doenças também podem ter contribuído para a redução.
Existe uma estabilização da mortalidade em
2023 e 2024 num patamar elevado. Os valores para 2023 e 2024 sugerem um novo
patamar de mortalidade, possivelmente influenciado pelo impacto de longo prazo
da pandemia na saúde da população (sequelas da Covid-19). O aumento de doenças
cardiovasculares e respiratórias devido à piora das condições ambientais e
sociais. O efeito da crise econômica sobre o acesso a serviços de saúde.
Portanto, a pandemia de Covid-19 foi o
principal fator de distorção na série histórica, levando a um pico anormal de
óbitos em 2020 e 2021. O retorno a níveis mais baixos em 2022 sugere a eficácia
da vacinação e do controle da pandemia. No entanto, o número de óbitos parece
ter se estabilizado em um patamar superior ao de 2019, o que pode indicar
mudanças estruturais no perfil epidemiológico e demográfico do Brasil.
Mas o mais importante é reconhecer que a
estabilização da mortalidade observada em 2023 e 2024 ocorre em um patamar
elevado em comparação com os anos anteriores a 2020. Ou seja, embora os óbitos
tenham caído em relação ao pico da pandemia, o total de mortes não retornou aos
níveis pré-pandemia. Isso indica que há fatores estruturais e conjunturais que
mantêm a mortalidade em um nível superior ao observado antes da crise
sanitária.
Existem algumas explicações para esse
fenômeno:
Em primeiro lugar, temos os efeitos de longo
prazo da Covid-19 (sequelas e doenças associadas). Muitos sobreviventes da
Covid-19 desenvolveram sequelas graves que aumentam o risco de morte nos anos
seguintes, incluindo problemas respiratórios crônicos, doenças
cardiovasculares, danos renais e neurológicos. Estudos indicam que a síndrome
pós-Covid pode elevar a incidência de infartos, AVCs e tromboses, aumentando a
mortalidade geral.
A persistência da Covid-19 e a redução da
eficácia das vacinas ao longo do tempo são fatores relevantes, mas não os
únicos, para explicar por que o total de óbitos no Brasil continua elevado após
a pandemia. A relação entre esses elementos e a mortalidade pode ser analisada
em três frentes principais:
(i) a Covid-19 ainda mata, mas em um novo
padrão. Embora a fase aguda da pandemia tenha passado, a Covid-19 continua
circulando, causando hospitalizações e mortes, especialmente entre idosos e
grupos de risco. As novas variantes do vírus tendem a ser mais transmissíveis,
escapando parcialmente da imunidade adquirida. No entanto, a letalidade
diminuiu devido à imunização prévia (vacinação e infecção anterior), e os casos
graves hoje são mais comuns entre pessoas com comorbidades ou imunossuprimidas.
(ii) Redução da eficácia das vacinas ao longo
do tempo. As vacinas contra a Covid-19 são altamente eficazes em reduzir casos
graves e mortes, mas sua proteção diminui com o tempo, especialmente contra
novas variantes. Muitos países adotaram campanhas frequentes de reforço, mas no
Brasil a adesão às doses de reforço caiu consideravelmente, o que pode ter
contribuído para o número ainda expressivo de óbitos relacionados à Covid-19.
Grupos mais vulneráveis, como idosos e imunossuprimidos, dependem dessas doses
adicionais para manter a proteção elevada.
(iii) A Covid-19 como “doença gatilho” para
outras mortes. Mesmo entre aqueles que sobreviveram à infecção, há um aumento
do risco de morte meses ou anos depois por causas cardiovasculares,
respiratórias e neurológicas. Estudos mostram que a Covid-19 eleva a
probabilidade de infartos, AVCs, tromboses e falência de órgãos em pessoas que
já tinham predisposição a essas condições. Portanto, mesmo que a Covid-19 não
seja listada como causa direta de muitos óbitos recentes, seu efeito prolongado
na saúde da população pode estar contribuindo para a mortalidade elevada.
Assim, a Covid-19 ainda é um fator importante
para o patamar elevado de mortes, mas agora de forma indireta:
(a) Ainda mata diretamente, principalmente
entre grupos vulneráveis.
(b) A perda de eficácia das vacinas e a queda
na adesão aos reforços aumentam a vulnerabilidade da população.
(c) Deixa sequelas duradouras, aumentando a
mortalidade por outras causas.
Porém, como vimos antes, essa estabilização
num patamar alto também está ligada a fatores mais amplos, como o
envelhecimento populacional, a precarização do sistema de saúde e o crescimento
de doenças crônicas. A Covid-19 pode ter sido o catalisador de uma crise de
saúde mais profunda, que agora se manifesta de forma persistente mesmo após o
fim da pandemia.
Depois temos o envelhecimento populacional. O
Brasil está passando por um envelhecimento demográfico acelerado, com uma
parcela crescente da população acima de 60 anos. Isso significa um aumento de
mortes naturais e doenças crônicas, como câncer, diabetes, hipertensão e
Alzheimer, elevando a mortalidade mesmo sem eventos excepcionais como a
pandemia.
Mas os dados frios do novo patamar de óbitos
no Brasil expõem a presença de um Estado necrófilo, o Estado neoliberal
consolidado que exclui os pobres do orçamento em prol da transferência de renda
para a oligarquia financeira.
O Estado neoliberal levou ao colapso e a
precarização do Sistema de Saúde. Durante a pandemia, muitos tratamentos foram
adiados, levando a diagnósticos tardios de câncer, doenças cardiovasculares e
outras enfermidades graves. A precarização do SUS e a redução de investimentos
em saúde podem estar dificultando a recuperação plena do atendimento médico,
mantendo as taxas de mortalidade elevadas.
Não podemos esquecer o aumento de doenças
crônicas e epidemias não-Covid. O Brasil tem visto um aumento preocupante de
doenças como diabetes, obesidade e hipertensão, que são fatores de risco para
mortes prematuras. Além disso, há surtos frequentes de dengue, gripe e doenças
respiratórias, agravados por fatores ambientais.
O empobrecimento da população, a precarização
do trabalho e a fome aumentam a vulnerabilidade das pessoas a doenças e reduzem
o acesso a tratamentos médicos adequados. Isto tem sido a marca do Estado
neoliberal, inclusive administrado pelo governo Lula 3. A crise social
pós-pandemia também elevou problemas como o estresse, o uso de drogas etc.
Em síntese: O total de óbitos permanece
elevado porque a pandemia deixou um “legado estrutural de fragilização da saúde
coletiva”, além de coincidir com tendências demográficas e socioeconômicas que
já vinham pressionando a mortalidade. Esse “novo patamar” reflete não apenas a
ressaca da Covid-19, mas também um Brasil que envelhece, enfrenta crises na
saúde pública e vê um aumento de doenças crônicas e desigualdades sociais.
Até fevereiro de 2025, o Brasil registrou um
aumento significativo nos casos e internações por Covid-19. Nas primeiras sete
semanas epidemiológicas de 2025 (1º de janeiro a 15 de fevereiro), foram
notificados 108.410 novos casos da doença, representando um aumento de 52% em
relação às últimas sete semanas de 2024, que contabilizaram 71.479 casos. Em
relação às hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), até a
sétima semana epidemiológica de 2025, foram registradas 3.980 internações, das
quais 48% foram atribuídas à Covid-19.
Além disso, a Covid-19 foi responsável por
87% dos óbitos por SRAG no mesmo período. Desde o início da pandemia, em
fevereiro de 2020, o Brasil acumulou mais de 39 milhões de casos confirmados e
ultrapassou 715 mil mortes relacionadas ao coronavírus. A subnotificação de
casos e óbitos por Covid-19 tem sido uma preocupação constante no Brasil.
Estudos indicam que os números oficiais podem não refletir a real dimensão da
pandemia devido a fatores como a capacidade limitada de testagem, especialmente
no início da pandemia, a falta de testes disponíveis levou à subnotificação de
casos leves ou assintomáticos.
Temos problemas na notificação e registro:
dificuldades logísticas e administrativas podem ter resultado em atrasos ou
falhas na contabilização de casos e óbitos. É importante salientar que óbitos
fora do ambiente hospitalar ou mortes ocorridas em domicílios ou locais sem
assistência médica adequada podem não ter sido registradas como relacionadas à
Covid-19.
Um estudo publicado na Revista
Brasileira de Terapia Intensiva estimou que, até abril de 2020, as
notificações de casos confirmados no Brasil representavam apenas 9,2% dos
números reais, sugerindo que o número real de casos poderia ser cerca de 11
vezes maior do que o oficialmente reportado.
Outro levantamento, realizado pela
organização global de saúde Vital Strategies, apontou que houve
subnotificação em 24,6% das mortes por Covid-19 no Brasil entre 19 de abril de
2020 e 27 de setembro de 2021. De acordo com os pesquisadores, contabilizando
esses óbitos, o país estaria na marca de 712.858 vítimas pela doença naquele período.
Esses dados ressaltam a necessidade de aprimorar os sistemas de vigilância
epidemiológica e a capacidade de testagem para obter uma compreensão mais
precisa do impacto da COVID-19 no Brasil.
A explosão das contradições metabólicas do
capital deve se agravar. Há fortes indícios de que o patamar de óbitos pode
continuar subindo ou, no mínimo, se manter elevado nos próximos anos, devido a
três fatores principais que se combinam: colapso climático (ondas de calor
extremas), epidemias de dengue e a deterioração estrutural do sistema de saúde.
Cada um desses elementos tem impacto direto na mortalidade, e juntos podem
formar um cenário de agravamento.
Impacto do calor extremo na mortalidade: O
aumento das temperaturas, impulsionado pelas mudanças climáticas, já tem
efeitos concretos na mortalidade no Brasil e no mundo.
Entre os impactos principais, destacam-se:
(i)
Aumento das mortes por doenças
cardiovasculares e respiratórias: O calor extremo sobrecarrega o sistema
circulatório, aumentando riscos de infartos e AVCs, especialmente em idosos.
(ii)
Desidratação severa e complicações renais:
Populações vulneráveis, como idosos, crianças e trabalhadores ao ar livre,
estão mais suscetíveis à desidratação, podendo levar à insuficiência renal
aguda.
(iii)
Expansão de doenças infecciosas: O calor e a
umidade favorecem a proliferação de vetores de doenças (mosquitos, bactérias e
vírus), ampliando surtos epidêmicos.
Impacto do aumento da mortalidade sobre o
sistema de saúde: Hospitais já sobrecarregados enfrentam picos de demanda
durante ondas de calor, levando ao colapso de emergências. Exemplo recente: Em
2023, São Paulo registrou um aumento de 17% nas mortes por causas
cardiovasculares durante ondas de calor, segundo estudos da USP.
Epidemia de dengue e outras doenças
tropicais. O Brasil está enfrentando uma das piores epidemias de dengue da
história, e o cenário pode se repetir ou até piorar nos próximos anos com o
aumento exponencial de casos e óbitos: O ano de 2024 já registrou recordes de
infecções e mortes por dengue. Se a tendência continuar, isso se refletirá em
um maior número de óbitos gerais. A expansão do Aedes aegypti, o
mosquito transmissor está cada vez mais presente em áreas antes menos afetadas,
incluindo regiões do Sul do Brasil, devido ao aquecimento global.
Temos o risco de coinfecções, isto é, os
casos simultâneos de dengue, chikungunya e até Covid-19 podem sobrecarregar o
organismo e aumentar a mortalidade. Dados recentes: Em 2024, o Brasil já
registrou mais de 1 milhão de casos de dengue até março, com estados como Minas
Gerais e São Paulo em situação de emergência.
O Estado capitalista neoliberal é incapaz de
garantir o futuro para a classe subalterna. O Estado neoliberal destruiu o SUS.
AS politicas de austeridade fiscal fizeram com que o Sistema de Saúde esteja se
tornando incapaz de responder. Mesmo que a Covid-19 não seja mais um fator
dominante, o sistema de saúde brasileiro continua fragilizado. Isso significa
que o aumento de óbitos pode ocorrer simplesmente porque os hospitais não
conseguirão absorver a demanda.
Alguns pontos críticos são:
(a) baixo investimento no SUS: A
política de austeridade fiscal limita os recursos para o atendimento de
emergências de saúde pública.
(b) Déficit de profissionais da saúde: A
pandemia levou ao esgotamento físico e psicológico de médicos e enfermeiros,
resultando em aumento de afastamentos e menor capacidade de atendimento;
(c) Fila reprimida de atendimentos eletivos:
Muitas cirurgias e tratamentos foram adiados na pandemia, e os impactos ainda
se refletem na saúde da população. Consequência: Mais mortes por doenças
evitáveis, como infartos e complicações de diabetes, que poderiam ser tratadas
precocemente.
Portanto, há fortes razões para acreditar que
a mortalidade de pobres no Brasil pode continuar aumentando, mesmo sem novas
pandemias, devido à combinação de:
(iv)
Crise climática (calor extremo, impactos
cardiovasculares e maior disseminação de doenças).
(v)
Epidemias sazonais, como dengue, chikungunya
e até gripes mais severas.
(vi)
Colapso estrutural do SUS, limitando a
capacidade de resposta do sistema de saúde.
Se nenhuma medida for tomada para mitigar
esses riscos, o Brasil pode entrar em uma nova fase de mortalidade elevada,
possivelmente acima do patamar observado nos anos pré-pandemia. Isso reforça a
necessidade de políticas públicas robustas, incluindo investimentos no sistema
de saúde, ampliação de campanhas de vacinação e ações para mitigar os impactos
das mudanças climáticas (o que é improvável que ocorra com o Estado neoliberal
no Brasil).
Fonte: Por Giovanni Alves, em A Terra é
Redonda
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