quinta-feira, 27 de março de 2025

Depois de 12 anos, Câmara deve votar nesta semana projeto que cria a Lei do Mar

Após 12 anos de tramitação no Congresso, deve ser finalmente votado nesta semana no plenário da Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL 6.969/2013) que cria a Política Nacional para a Gestão Integrada, a Conservação e o Uso Sustentável do Sistema Costeiro-Marinho – mais conhecida como Lei do Mar. O relator do texto, deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE), acredita que conseguiu chegar a um consenso na Casa para obter a aprovação.

Em meio a intensa disputa de interesses econômicos pelo uso da nossa costa – da exploração de petróleo à mineração em alto-mar; da pesca industrial às eólicas offshore –, ao mesmo tempo que os oceanos batem recordes de temperatura e de elevação por causa do aquecimento global e sofrem com poluição, o projeto cria um arcabouço de medidas para orientar a gestão e a governança do mar de modo a aliá-las com sua conservação.

O PL institui, por exemplo, a ferramenta do Planejamento Espacial Marinho (PEM), que organiza os setores de forma integrada, levando em conta o que a lei chama de “abordagem ecossistêmica”, de modo a gerir os recursos considerando-se as múltiplas interações entre eles e o ambiente e assegurando a durabilidade dos ecossistemas.

Proposto inicialmente em 2013 pelos então deputados Sarney Filho e Alessandro Molon, o projeto enfrentou resistências de setores econômicos, como o da pesca industrial, e quase foi engavetado. Em 2021, Gadêlha assumiu a relatoria da proposta e iniciou uma série de conversas e adaptações do texto a fim de alcançar um acordo.

Em entrevista à Agência Pública, Gadêlha explica a importância da lei e o que pode mudar na gestão do mar se o projeto for aprovado.

  • Diante das regras que a gente já tem para o uso marinho, o que vai mudar com a Lei do Mar?

A primeira coisa que é importante entender é que se trata de um arcabouço. Não é uma lei apenas, mas um conjunto normativo amplo, que estabelece uma série de princípios para gestão do sistema costeiro que nós temos e para que a gente possa continuar utilizando ele de maneira sustentável. Então, essa lei constrói instrumentos de gestão, trazendo como premissa principal o compartilhamento dessa gestão. Não deixando na mão apenas do ente público, mas também trazendo a sociedade civil, a iniciativa privada, outros atores para fazer a gestão desse sistema costeiro marinho. É uma lei que harmoniza as diversas leis, municipais, estaduais e federais, que temos sobre o mar e estimula a gestão compartilhada desse bioma, integrando as pessoas, as comunidades locais, valorizando os pequenos pescadores, as pessoas que sobrevivem desse ecossistema.

  • De que modo a lei vai possibilitar essa harmonia? Ela cria novas regras para esses usos?

Mais importante do que regras, esse projeto estabelece princípios que ajudam a nortear as regras, né? Os princípios têm mais força do que a lei em si. É o caso, por exemplo, do princípio de poluidor-pagador. Se a pessoa polui, ela precisa compensar esse dano causado. Outro princípio é o do protetor-recebedor. Se ela protege esse ecossistema, se o que ela faz, de certa forma, resguarda para que aquilo continue existindo e se fortalecendo, ela precisa receber por isso. Além de outros princípios, como da prevenção, da precaução, da integração, do desenvolvimento sustentável, todos que consideramos necessários, principalmente, diante da crise climática. A gente precisa ter essas regiões de costa protegidas para proteger as populações. Assim como quando a gente protege o leito de um rio com sua mata ciliar, evitamos erosão, desmoronamento, assoreamento do rio. Ao proteger um bioma marinho, como os recifes de corais, estamos protegendo a vida no fundo do mar, mas também a vida nas regiões costeiras. Então, essa lei vai nortear outras, como se fosse uma espinha dorsal da legislação sobre o mar. 

  • O projeto, desde sua primeira versão, já tramita há 12 anos. Por que tanto tempo?

Ele enfrentou, nesses últimos anos, muitos entraves, muito pela falta de compreensão da importância da lei. E também por medo de outros entes de perderem suas competências ou ter prejuízos financeiros. Por exemplo, a Marinha tinha muita preocupação com relação a perder a gestão que ela sempre teve sobre os oceanos e o mar, sobre a costa brasileira. E a gente teve muito cuidado em sentar com os almirantes e ajustar o texto para que ele estivesse alinhado às legislações internacionais e também para que não retirasse competência de uma instituição tão importante pro Brasil. Hoje a Marinha é uma aliada do projeto, pois entendeu a importância de a gente levar a educação ambiental para as comunidades, de a gente compreender melhor o fluxo da poluição e envolver a comunidade para evitar que o lixo seja jogado nos oceanos.

  • Houve outras resistências?

Também tivemos resistência, em determinado momento, da pesca industrial, que imaginou que nós fôssemos proibir alguma coisa, impedir que eles pudessem continuar exercendo a função deles de gerar emprego, de gerar impostos, de produzir alimentos. De maneira alguma a lei prejudica. Muito pelo contrário. Quando a gente conseguiu provar para o setor que a lei vai dar mais segurança jurídica para que eles continuem a atividade de exploração, mas de forma sustentável, que com isso eles vão conseguir alcançar outros mercados que eles não conseguiriam vender seus produtos, a pesca industrial, hoje até a Frente Parlamentar da Agropecuária, a FPA, que abraça esse setor, está declarando apoio à lei. Então, a demora que nós tivemos foi para explicar melhor o intuito do projeto e fazer os ajustes em determinados setores e segmentos da sociedade que têm muita influência no Parlamento. Hoje eu diria que há ainda uma resistência, mas de 10% do que eu percebia no início quando comecei a relatar o projeto.

  • E qual é a posição de setores de energia que hoje têm muito interesse em explorar o mar, como, por exemplo, a Petrobras e o setor de eólicas offshore, além da mineração em alto-mar?

A gente recebeu com alguma preocupação alguns pedidos desses setores. Mas, na verdade, era por falta de compreensão do que a gente trazia ali no texto. Para dar mais segurança jurídica, a gente fez alguns ajustes para poder mostrar a eles que nosso intuito era que nenhuma atividade econômica fosse prejudicada, mas que a gente trouxesse uma série de seguranças para que eventuais acidentes não ocorressem.

  • E o que muda na prática? Se já houvesse essa lei quando ocorreu aquele derramamento de petróleo na costa brasileira em 2019, como a resposta teria sido diferente? O que mudaria na atuação do país frente a um desastre como aquele se essa lei for aprovada?

A gente saberia o que o município deveria fazer naquele momento, saberia o que seria a competência do Estado fazer, saberia a forma correta de descartar aquele material, saberia como a comunidade poderia se envolver. A lei traz que é preciso construir um plano de emergência, um plano de área, é preciso discutir o plano nacional de contingência e adaptar ele a cada realidade de cada comunidade. A gente dá as diretrizes e cria obrigações para que cada um se envolva. Então, a lei é um instrumento maior de direcionamento, de criação de instrumentos, de princípios com objetivos claros. É uma espinha dorsal para a gente construir uma série de outras legislações e regulamentações a partir dela.

  • O Brasil está hoje passando por um processo em que tanto o governo quanto a Petrobras querem aumentar a produção de petróleo, e boa parte disso vai se dar na forma de exploração no mar, como mostram os planos para a Margem Equatorial, que inclui a Foz do Amazonas, o que traz uma série de riscos de acidentes. A lei prevê algum tipo de ordenamento para isso?

Em primeiro lugar, é importante entender que ela não proíbe nem autoriza. Mas traz a necessidade de envolvimento da comunidade na discussão sobre aquele empreendimento. E traz uma série de estudos necessários para a realização de qualquer tipo de intervenção à natureza, uma série de políticas de contingenciamento em caso de algum acidente, por exemplo. Traz esses instrumentos que vão servir para que a gente consiga proteger os nossos oceanos. 

A gente compreende que a realidade que nós vivemos ainda impõe a utilização de certos combustíveis. No que dependesse da vontade deste legislador, a gente não avançaria mais avançado nesse aspecto de combustíveis fósseis no país. Mas a gente vê algum avanço da produção de hidrogênio verde por parte do presidente Lula. Ainda é um pouco tímido, na minha opinião, mas ele tem sinalizado nesse sentido. O presidente e a Petrobras não vão abrir mão de explorar determinados campos de petróleo a serem descobertos. E, se isso for feito, que seja feito com cuidado devido, com precaução. O que a lei traz é isso. É o envolvimento das comunidades, é o cuidado, é o investimento na ciência para que a gente possa prevenir e mitigar danos.

  • Mas, apesar de não proibir, se levados a cabo todos esses processos, ela poderia restringir ou orientar um uso diferente? Porque hoje, se forem instalados todos os muitos projetos que existem para o mar, todas as plataformas de petróleo, as eólicas, toda a pesca, é de se imaginar que não vai ser possível comportar tudo. A lei prevê um reequilíbrio de todas essas forças?

Isso ela poderia. Teria que rearranjar essas forças. Porque ela não proíbe, mas envolve o setor público, o setor privado, a sociedade civil. Ela constrói programas de educação ambiental. Ela educa. O que deixa o texto muito rico é que ele é atemporal. Quando a gente fala de regras simples de distanciamento mínimo da linha do mar para construção de uma plataforma de petróleo, por exemplo, isso é algo que, com o passar de poucos anos, pode não fazer mais sentido. A importância dessa lei é que ela não tem regras simples para proibir ou incentivar alguma coisa. Mas princípios que vão nortear as futuras atividades que podem surgir no mar e aquelas que, naturalmente, as comunidades podem não mais querer. Um dos pontos importantes dessa lei para o Brasil é a criação de uma consciência oceânica da população. Ter princípios para que a gente possa se relacionar com esse ecossistema marinho de forma que não o prejudique e que possamos usufruir dele no futuro é um outro caminho. A gente só quer proteger esse ecossistema e proteger todos aqueles que vivem desse ecossistema.

 

Fonte: Por Giovana Girardi, da Agencia Pública

 

Nenhum comentário: