O
marxismo, a terra e a classe trabalhadora global
Quando
se trata de política ecológica e anticolonial contemporânea, talvez não haja
fator mais central do que a terra. As pessoas mais oprimidas do mundo continuam
a ser expulsas de seus territórios, e da mesma forma os movimentos sociais há
muito tentam expropriar terras controladas por capitalistas e Estados
poderosos. A história da
revolução do século XX e dos movimentos anticoloniais dependeu amplamente
da terra e da reforma agrária.
Portanto,
é vital para os socialistas entenderem a relação específica entre o capitalismo
e a terra. Para começar, o capitalismo surgiu historicamente ao violentamente
arrancar a vasta maioria da humanidade da dependência direta da terra para
sobrevivência. Como nenhum outro sistema econômico na história, é isso que o
capitalismo faz. E para a maior parte da humanidade, esse é um
desenvolvimento relativamente recente. Desde a Segunda Guerra Mundial, o êxodo
massivo de pessoas dos meios de subsistência agrícolas rurais — o que os
estudiosos chamam de “descampesinização” — tem sido nada menos que surpreendente.
Como Eric Hobsbawm descreveu:
A
mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da segunda metade
deste século [XX], e que nos isola para sempre do mundo do passado, é a morte
do campesinato. Pois desde a era neolítica a maioria dos seres humanos vivia da
terra e seu gado ou recorria ao mar para a pesca. Com exceção da Grã-Bretanha,
camponeses e agricultores continuaram sendo uma parte maciça da população
empregada, mesmo em países industrializados, até bem adiantado o século XX.
Em
países industrializados como os Estados Unidos, esse processo está quase
completo: na ratificação da Constituição dos EUA, cerca de 90% da população
trabalhava na agricultura; em 1910, era 35%; hoje, é apenas 1%.
Mas globalmente, o processo se acelerou durante o período neoliberal, pois os
agricultores em todo o mundo estavam sujeitos à competição internacional devido
aos regimes de “livre comércio” e às políticas de ajuste estrutural. De acordo
com dados do Banco
Mundial,
em 1991, 43% da força de trabalho global ainda trabalhava na agricultura, mas
em 2022 esse número caiu para 26%.
Basicamente,
todos os países do planeta têm visto uma porcentagem de trabalho envolvido na
agricultura despencando. Apenas 9% dos brasileiros trabalhavam em fazendas em
2022. Na transformação mais impressionante — o local do que alguns chamam
de maior migração
humana em massa da história mundial — a China passou de 60% trabalhando na
agricultura em 1991 para 23% em 2022. A Bolívia passou de 43% para 27%. O único
lugar no planeta onde o registro de descampesinização é desigual é a África
Subsaariana: Angola viu sua força de trabalho agrícola aumentar de
40% para 56%. Em outros países, como Burkina Faso, o campesinato declinou, mas
ainda continua sendo a grande maioria da força de trabalho, tendo caído de 89%
para 74%. O Quênia viu um declínio modesto de 48% para 33%.
O que
devemos fazer com essa transformação global? E o que ela nos diz sobre as
perspectivas para a política ecológica hoje?
·
Os
proletários não têm terra
Os
marxistas têm um conceito para descrever esse processo: proletarização.
Esse é um processo de expropriação dos produtores diretos da terra e de
quaisquer outros “meios de produção” para que eles tenham que vender sua força
de trabalho no mercado por um salário para sobreviver. Como argumento em Climate Change as Class War [As
Mudanças Climáticas como Luta de Classes], esse é um processo profundamente
“ecológico” de troca de um modo de vida em que as pessoas dependem diretamente
da terra para sobreviver por um em que devem confiar nos caprichos incertos do
mercado. Não é surpresa que os camponeses do mundo todo tenham resistido a esse processo
como uma ameaça à sua segurança material baseada na terra.
Para o
capital, a proletarização cria uma classe trabalhadora massiva para explorar —
o trabalho assalariado era a principal fonte de
lucros,
de acordo com Karl Marx. Além da classe trabalhadora e da classe capitalista,
esse processo também entrincheira uma “terceira classe” de proprietários
privados que controlam a terra e extraem “aluguel” de trabalhadores e
capitalistas que precisam de acesso a ela. Muitos movimentos de esquerda pelo
direito à moradia se deparam com
a classe dos proprietários como a principal barreira para atingir seus
objetivos políticos, e as lutas ambientais têm visto proprietários de ambos os lados da luta.
Por
mais violenta e traumatizante que seja a desapropriação de terras, os marxistas
historicamente acreditaram que ela tinha o resultado libertador de criar “os coveiros do capitalismo” na classe
trabalhadora. Friedrich Engels, em particular, argumentou que separar os
trabalhadores da terra transformava sua perspectiva local ou paroquial na de
uma classe universal pronta para
alcançar a emancipação humana: “Para criar a classe revolucionária moderna do
proletariado, era absolutamente necessário cortar o cordão umbilical que ainda
prendia o trabalhador do passado à terra.” Ao reunir um grande número de trabalhadores
em cidades e fábricas, o capitalismo criava uma grande massa de pessoas com um
senso de interesses compartilhados e uma capacidade de se organizar para tomar
ações coletivas contra os empregadores e o sistema como um todo.
Tradicionalmente,
o marxismo não defendia a mera preservação de regimes de terras camponesas de
pequena escala, nem a criação de comunas socialistas agrárias (Marx e Engels
notoriamente chamavam tais experimentos de “utópicos”). Apesar de alguns
esforços para afirmar que o estudo tardio de Marx sobre as comunas camponesas
russas significava que ele havia se tornado um “comunista do
decrescimento”,
no primeiro rascunho de sua carta à
populista russa Vera Zasulich, ele foi claro: “A comuna pode gradualmente
substituir a agricultura fragmentada por uma agricultura auxiliada por máquinas
em larga escala, particularmente adequada à configuração física da Rússia.”
Os
marxistas, em vez disso, propuseram que a maioria proletarizada se apoderaria
dos “meios de produção” no total, incluindo a terra. Vladimir Lênin, por
exemplo, criticou os populistas
russos “Narodniks” que argumentavam que o socialismo seria fundado no
controle camponês sobre a terra em pequena escala. Em contraste, ele argumentou que a terra deve
ser nacionalizada — ou, melhor, socializada, para que os próprios trabalhadores
a controlem em vez de apenas o Estado — de uma forma a racionalizar a
agricultura, empregando os métodos modernos e eficientes desenvolvidos sob o
capitalismo.
O
problema, claro, é que a Revolução Russa ocorreu em um país camponês
majoritariamente rural, onde a descampesinização mal havia começado, e a
assistência com o desenvolvimento econômico que Lênin e os bolcheviques
originalmente esperavam que viesse de revoluções no rico mundo capitalista
nunca chegou. A questão de como industrializar e o que fazer com o campesinato
assombrou a liderança bolchevique ao longo da década de 1920 até que Joseph
Stalin escolheu um caminho particularmente coercitivo de coletivização forçada.
Podemos esperar, mas apenas especular, que um caminho menos violento e
destrutivo para a industrialização poderia ter sido seguido (chame-o de uma
“transição justa” para o campesinato).
Marx e
Engels previram a proletarização gradual de todo o campesinato global, bem como
de pequenos produtores artesanais. Por muito tempo, os analistas poderiam
plausivelmente argumentar que estavam errados, pois o campesinato persistiu
profundamente no século XX, mas não mais: vivemos em um planeta quase
totalmente proletarizado. Isso também significa que a vasta maioria da
humanidade — a classe trabalhadora — está profundamente alienada das condições
ecológicas de nossa existência coletiva.
·
Política
de terras e crise ecológica global
Essa
alienação frequentemente leva a projetos políticos de ecoesquerda de reunificação com
a terra na forma de experimentos localistas com agricultura alternativa ou
cooperativas comunitárias de energia. A esquerda também se apegou a um “ambientalismo de
subsistência”,
onde a política ecológica se resume a alinhar-se com movimentos camponeses ou
indígenas defendendo regimes de terras existentes da desapropriação. Tais
movimentos clamam por “soberania” alimentar ou energética em termos diferentes
do capital, onde comunidades locais controlam suas próprias terras e recursos
para um fornecimento mais localizado.
Esses
esforços para defender as terras e meios de subsistência tradicionais das
pessoas são justos e devem ser apoiados. No entanto, essa orientação não é
particularmente marxista (no máximo, o ecossocialismo contemporâneo tem muito mais em comum com o programa
dos Narodniks). Nunca ficou claro como esses movimentos localistas ou de
soberania fundiária podem se relacionar aos interesses da maioria
proletarizada, cuja sobrevivência agora depende do acesso a dinheiro e
mercadorias em vez de terra. Sob o capitalismo, a dependência de mercadorias
significa que a classe trabalhadora depende de redes globais de trabalho
socializado: cada mercadoria que consumimos é o produto de milhares de
trabalhadores ao redor do mundo cooperando para torná-la possível. O
significado de socialismo para os marxistas é a abolição da propriedade privada
e a socialização total do controle sobre um sistema de
produção já socializado.
Como
Lênin sustentou (exceto quando entregar terras aos camponeses se tornou
uma necessidade política em meio às
condições de emergência após a Revolução Russa), o ponto da política fundiária
não era simplesmente manter relações localistas ou não alienadas com a terra,
mas sim socializar a terra planejando coletivamente o que a sociedade como um
todo precisa. Esse tipo de planejamento socialista do uso da terra não se
concentraria apenas nos interesses das comunidades locais que vivem na terra,
mas também levaria em conta as necessidades da sociedade mais ampla por
alimentos, energia, minerais, produtos florestais e muito mais. Portanto, a
produtividade do trabalho ou a eficiência da agricultura é de importância
crucial, porque a agricultura de pequena escala e intensiva em mão de obra não
é base para a emancipação social.
Claro,
diferentemente do capitalismo, que submete a terra a imperativos destrutivos de
maximização do lucro capitalista e à anarquia do mercado, o planejamento
socialista do uso da terra teria que permanecer cuidadosamente sintonizado com
as restrições ecológicas e os requisitos de sustentabilidade. E aqueles que
vivem em ou perto de terras designadas para uso social deveriam ter mais peso
democrático nas decisões coletivas. Comunidades indígenas e camponesas poderiam
manter o controle sobre suas próprias terras e recursos e definir os termos de
engajamento e comércio com sistemas de produção global de maior escala.
As
implicações dessa perspectiva para a crise ecológica são profundas. O que o
marxismo propõe é uma classe global — o proletariado global — com o poder de
arrancar um sistema de produção já global e socializado do capital e
redirecioná-lo para as necessidades de toda a humanidade. Não é isso que a
crise ecológica realmente requer? Precisamos de uma espécie ou
escala planetária de controle social sobre a produção para que
possamos atender às necessidades humanas e manter um planeta habitável.
A
típica política de esquerda localista tem pouca capacidade de resolver esse
problema de escala- espécie. É fácil ver como pequenos grupos militantes locais
poderiam tomar a terra e os meios de subsistência ao redor do mundo em pequenos
bolsões, enquanto a organização capitalista da produção global permanece
amplamente intacta. (Pequenas bolhas de soberania alimentar, por exemplo,
enquanto o planeta queima.) Precisamos de uma teoria planetária do poder — e o
marxismo nos dá uma.
·
“Não
somos donos da Terra”
No
volume 3 de O Capital, Marx fez uma de suas raras observações sobre
como seria uma sociedade “superior” (ou seja, o socialismo):
Do
ponto de vista de uma formação socioeconômica superior, a propriedade privada
individual da terra parecerá tão absurda quanto a propriedade privada de um
homem sobre outros homens. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação ou todas as
sociedades simultaneamente existentes, tomadas em conjunto, não são donas da
terra. Elas são simplesmente suas possuidoras, suas beneficiárias, e precisam
legá-la em um estado melhorado para as gerações seguintes, como [bons chefes de
família].
O
socialismo requer a superação da propriedade privada da terra — seja na forma
capitalista ou da família do pequeno agricultor — para construir uma relação
verdadeiramente socializada com a terra. O capitalismo cria uma classe — a
classe trabalhadora — com a capacidade não apenas de libertar a humanidade da
exploração e da privação desnecessária, mas também de administrar nossa relação
coletiva com a natureza em uma escala
planetária.
A esquerda ecológica hoje precisa urgentemente desse tipo de visão
internacionalista baseada em uma administração ecológica global.
Fonte: Por Matt
Huber – Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil
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