O
novo apelo da China ao campo
Com uma
tradição agrícola milenar, a China sempre valorizou a agricultura como uma
atividade fundamental para a sua economia, a sua sociedade e a sua cultura. O
país foi um dos primeiros lugares do mundo a cultivar plantas e animais e a
desenvolver sistemas de irrigação, cultivo e colheita, além de experimentar e
difundir culturas como o arroz, o trigo e o milho.
Durante milênios na China, a segurança alimentar esteve inextricavelmente
ligada à estabilidade social. A escassez de alimentos e a fome frequentemente
desempenharam um papel central no desencadeamento de revoltas violentas. O
último governo imperial chinês — a Dinastia Qing (1644–1911) — viu grandes
fomes entre 1810 e 1907 que resultaram na morte de dezenas de milhões. Esses
períodos de fome foram frequentemente seguidos por ou serviram como
catalisadores para grandes rebeliões e conflitos mortais que enfraqueceram o
controle imperial e pioraram as condições socioeconômicas no império, o que
contribuiu para o colapso da dinastia.
Com o
estabelecimento da República Popular da China (RPC) em 1949, o governo
comunista do país enfrentou vários desafios imediatos para garantir um
suprimento de alimentos estável e suficiente. Após décadas de invasão
estrangeira e guerra civil, os cidadãos chineses estavam entre os mais pobres
do mundo. A força de trabalho agrícola do país mal estava se recuperando de
anos de recrutamento em massa e movimentos do campo para escapar da guerra.
Além disso, a população de cerca de 550 milhões de pessoas estava crescendo
rapidamente. Sob o presidente Mao Zedong, a RPC realizou reformas agrárias no
campo, eliminou a propriedade privada de terras e estabeleceu coletivos
agrícolas em linhas semelhantes à abordagem coletivizada controlada pelo estado
da União Soviética. A China viu o sucesso inicial no aumento da produção
agrícola em quase 4% ao ano de 1952 a 1958. O aumento da irrigação em todo o
país também melhorou os rendimentos das fazendas coletivizadas.
No
entanto, diante do isolamento internacional, sob a tentativa de Mao de alcançar
uma rápida industrialização por meio das políticas do Grande Salto Adiante
(1958–1962), os fazendeiros foram designados para fabricar aço em fornos de
quintal em vez de cultivar safras — o que, dada sua inexperiência,
frequentemente resultava em produção ineficiente que gerava ferro
comercialmente inutilizável. Os quadros tinham fazendeiros seguindo diretrizes
mal planejadas, como o abandono de técnicas agrícolas tradicionais chinesas em
favor de ideias influenciadas pelo agrônomo soviético Trofim Lysenko. O setor
agrícola foi ainda mais pressionado por uma série de desastres naturais,
incluindo as inundações de 1958 em grandes partes do norte da China e as secas
em 1960-1961. Essas falhas contribuíram para a crise de segurança alimentar
conhecida como os “Três Anos da Grande Fome”. Depois deste período, o Partido
Comunista retornou a um conjunto de práticas agrícolas mais baseadas na
ciência.
A
ascensão de Deng Xiaoping, em 1978, levou a reformas econômicas graduais
orientadas para o mercado. No campo, isso significou a eliminação gradual das
fazendas coletivas em favor da propriedade familiar. As famílias foram
autorizadas a vender safras que foram cultivadas além das cotas do governo,
incentivando assim o aumento da produtividade. A produção agrícola aumentou de
2,7% ao ano em 1978 para 7,1% ao ano durante os cinco anos seguintes às
reformas. Além disso, cientistas chineses desempenharam um papel fundamental no
alívio da fome. O renomado agrônomo Yuan Longping rejeitou as teorias de
Lysenko e descobriu um tipo de arroz híbrido na década de 1960 que poderia
aumentar a produtividade das colheitas em mais de 20%. No final da década de
1990, esse arroz híbrido alimentaria mais 100 milhões de cidadãos chineses. Em
2017, o arroz híbrido de Yuan representaria mais de 60% da produção de arroz do
país e seria cultivado em mais de 60 países em todo o mundo. Isso contribuiu
para uma redução significativa na subnutrição, isso é, o consumo alimentar
habitual insuficiente para fornecer os níveis de energia dietética necessários
para manter uma vida normal ativa e saudável. Ainda em 2001, cerca de 10% da
população da China enfrentava subnutrição, um número que caiu para menos de
2,5% por volta de 2010 e 1% em 2024.
A
segurança alimentar de qualquer nação é essencial para a prosperidade e saúde
de seu povo. Por isso, alimentar a vasta população da China é uma questão
prioritária para Pequim. No entanto, a tarefa é vasta: a China deve alimentar
quase 20% da população global, mas abriga menos de 10% das terras aráveis do mundo e 6% dos
recursos hídricos do mundo. Isso se traduz em apenas 0,08 hectares
per capita de terra arável para o povo da China, muito abaixo dos 0,48 hectares
de terra arável per capita nos Estados Unidos.
A
produção de grãos é uma pedra angular da estratégia de segurança alimentar da
China, com ênfase em garantir estabilidade “absoluta”na produção de trigo e arroz, grãos que são
vistos como essenciais para a segurança alimentar da China, fornecendo a base
para uma estrutura agrícola autossuficiente. Em 2006, o governo introduziu um
preço de suporte para o trigo: quando os preços de mercado caem abaixo do preço
mínimo estabelecido anualmente, o governo se compromete a comprar trigo dos
agricultores pelo preço de suporte, garantindo um nível de renda para os
agricultores e incentivando o cultivo contínuo desta cultura básica específica.
De 2003 a 2013, a produção doméstica de grãos aumentou de 430 milhões de
toneladas métricas para mais de 600 milhões de toneladas
métricas,
especialmente em regiões-chave como o Rio Yangtze, Nordeste e Planícies do
Norte. Em 2024, a produção de grãos do país atingiu um recorde de 706 milhões de toneladas. A meta para 2030 é
aumentar a produção de grãos em 55 milhões de toneladas. Em linha com essa
meta, o atual Plano Agrícola Quinquenal da China
pretende manter aproximadamente 117 milhões de hectares de terras agrícolas de
grãos, atingir uma produção anual de grãos superior a 770 milhões de toneladas,
inclusive com um esforço para aumentar a produção doméstica de soja para 23
milhões de toneladas em 2025.
Com Xi
Jinping, a partir de 2013, a segurança alimentar foi elevada como prioridade
nacional, com a China trabalhando para salvaguardar seu suprimento de alimentos
de longo prazo em meio à crescente instabilidade global. Além disso,
diagnosticando um ambiente internacional mais contencioso, existe maior ênfase
à autossuficiência agrícola e ao fornecimento diversificado de insumos,
alimentos, tecnologia e know-how essenciais. Desde então, estão sendo feitos
investimentos cada vez mais significativos em pesquisa e desenvolvimento
(P&D), particularmente em tecnologias de sementes híbridas para culturas
como arroz e trigo. Esse compromisso com a inovação é ainda mais evidente no
14º Plano Agrícola Quinquenal (2021-2025) que, vinculado ao Plano Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico de Médio e Longo Prazo (2021-2035) e
ao 14º Plano Quinquenal para Promover a
Modernização Agrícola e Rural , enfatiza influxos financeiros
substanciais foram direcionados para tecnologias de sementes híbridas,
particularmente no domínio do arroz híbrido, milho, soja e trigo, e a “criação de alimentos do
futuro”, como ovos de origem vegetal. Além disso, designa áreas-chave para a produção
de culturas básicas, como batatas no sudeste da China, arroz de dupla safra e
trigo de alta qualidade no Cinturão Econômico do Rio Yangtze. Em 2021, emendas
à Lei de Sementes da China fortaleceram a proteção dos direitos e interesses
legais dos proprietários de novas variedades de plantas, incentivando a P&D
de sementes. Com progressivos investimentos neste período, os gastos do setor
público da China em P&D agrícola chegou a 8 bilhões de dólares em 2024,
maiores do que os da Índia, Estados Unidos e Brasil juntos.
Para
atingir suas metas ambiciosas, a China está investindo pesadamente em inovação
agrícola, particularmente por meio da biotecnologia e tecnologias digitais. A
paisagem agrícola da China é caracterizada exclusivamente pela prevalência de
pequenas fazendas familiares dispersas por todo o país, em vez dos grandes
modelos de fazendas industriais de muitos países desenvolvidos. Embora esse
modelo seja uma pedra angular da economia chinesa, fornecendo emprego a
milhões, a natureza fragmentada das fazendas complica a disseminação de novas
tecnologias agrícolas e dificulta a coordenação entre os agricultores e a
padronização de práticas. Essas questões dificultam a produtividade e impedem
os avanços em tecnologia e biotecnologia necessários para atender às crescentes
demandas por alimentos. Embora os investimentos tecnológicos sejam essenciais,
a China também deve fazer a transição dessa estrutura agrícola fragmentada para
um setor mais eficiente e impulsionado pela tecnologia — uma transformação
ainda em seus estágios iniciais e que deve ser alvo de atenção especial no
próximo plano quinquenal.
Em
2023, foi lançado um plano emitido pelo Comitê Central do Partido Comunista da
China e pelo Conselho de Estado para alcançar progressos substanciais na
revitalização rural geral e promover a modernização da agricultura e das áreas
rurais para um novo estágio até 2027. Este plano também o aumento de renda dos
agricultores uma prioridade para o desenvolvimento agrícola do país. O país
está intensificando os esforços para impulsionar a demanda doméstica, e os
agricultores também são os principais impulsionadores do consumo. Nessa linha,
em 2023, foi instituído um subsídio anual de 10 bilhões de
yuans (US$ 1,38 bilhão) para aumentar a renda dos agricultores.
Outra
estratégia para a manutenção da renda das zonas rurais é conferir papel
fundamental às indústrias rurais, que possibilitam o alargamento da geração de
empregos. O intuito principal das ações é que as indústrias rurais aproveitem
os recursos regionais e as vantagens locais para a construção de parques
industriais agrícolas modernos, cidades industriais agrícolas robustas,
aglomerados industriais com vantagens características e parques de demonstração
de tecnologia para o desenvolvimento integrado de indústrias rurais primária,
secundária e terciária. Além de apoiar os pequenos produtores rurais, que
representam mais de 90% dos produtores agrícolas do país, oferecendo crédito,
subsídios, seguros e assistência técnica, a China também vem incentivando os
agricultores a participar de cooperativas e associações, que facilitam o acesso
a recursos, serviços e mercados. Existem mais de um milhão de cooperativas
agrícolas na China, que envolvem cerca de 40% dos agricultores familiares.
Essas cooperativas fornecem aos seus membros benefícios como economias de
escala, redução de custos, aumento da renda, melhoria da qualidade dos produtos
e fortalecimento da capacidade de negociação. As cooperativas também promovem a
integração vertical da cadeia produtiva agrícola, estimulando atividades de
processamento, armazenamento, transporte e comercialização dos seus produtos.
Essa estratégia visa aumentar o valor agregado da produção agrícola, reduzir as
perdas pós-colheita e melhorar a competitividade dos agricultores no mercado
interno e externo.
Para
adotar a digitalização para modernizar a agricultura, o Plano Nacional de Implementação da
Agricultura Inteligente (2024-2028) primeiro inclui a construção de “vilas digitais” e parques
agrícolas modernos com o objetivo de aumentar a produtividade por meio da
inovação tecnológica. No início de 2025, foi lançada a Plataforma Nacional de
Tecnologia Agrícola e Educação em Nuvem. Esta plataforma digital promove a
partilha de conhecimentos e a aprendizagem independente entre os trabalhadores
agrícolas. As medidas incluem a construção de redes óticas e 5G com boa
infraestrutura de informação e comunicação, agregando-os para a transformação
da agricultura inteligente e estabelecimento de big data agrícola para auxiliar
na produção. Os agricultores fornecem dados sobre culturas, pragas e condições
no terreno e, em troca, podem aceder a cursos de formação online, IA de
diagnóstico e linhas de apoio. As start-ups de tecnologias de IA estratégicas
podem dizer aos agricultores que insetos estão a observar com apenas uma imagem
e que pesticidas devem utilizar para proteger as suas culturas. O governo
central também envia equipes de peritos especializados para províncias afetadas
por desastres naturais ou que estejam a ficar para trás na produção agrícola
para fornecer apoio no terreno e promover a popularização da tecnologia
agrícola avançada.
No
entanto, a busca pela autossuficiência absoluta em segurança alimentar é cheia
de desafios que demandarão a elaboração de políticas específicas no próximo
plano quinquenal.
A
enorme escala da população da China em comparação com sua parcela de terra
arável continuará a representar um problema significativo, agravado por
restrições ambientais. Mesmo com tecnologias avançadas, há limites naturais
para a quantidade de alimentos que podem ser produzidos de forma sustentável.
Entre 2013 e 2019, a China registrou um declínio de mais de 5% das suas terras
aráveis, em grande parte atribuído às práticas agrícolas destrutivas e aos
governos locais que redirecionaram as terras agrícolas para infraestruturas e
imobiliário. Para neutralizar essa diminuição, a China embarcou em algumas
estratégias essenciais, incluindo o Plano Nacional de Construção de Terras
Agrícolas de Alto Padrão (2021–2030), um plano nacional para melhorar a
qualidade das terras agrícolas. O plano define metas para a criação e
atualização de terras agrícolas até 2025, 2030 e 2035. Ele especifica de onde
vem o financiamento (uma combinação de orçamento público geral, títulos,
transferências de terras, etc.), fornece medidas anuais e lista maneiras de
incentivar entidades privadas a investir no desenvolvimento de terras agrícolas
de alta qualidade. E estabelece uma “linha vermelha” para terras aráveis: nada
menos que 120 milhões de hectares nacionalmente. Em busca desse objetivo, a
China introduziu medidas de restauração de terras agrícolas e práticas de
rotação de culturas. Além disso, as autoridades chinesas criaram uma estratégia
para “recuperar” terras agrícolas revertendo terras agrícolas que haviam sido
reaproveitadas para indústria, imóveis e infraestrutura. De 2021 a 2023, as
autoridades chinesas recuperaram mais de 170.000 hectares (420.000 acres) de
terras agrícolas. A realização completa deste plano deve ser central na
política agrícola do próximo plano quinquenal.
A China
enfrenta um grande desafio demográfico, que inclui taxas de fertilidade e uma
força de trabalho rural em declínio. Em 2022, aproximadamente 176 milhões de
pessoas estavam empregadas na agricultura, pesca e indústrias relacionadas.
Isso é 24% da força de trabalho. A grande maioria são pequenos agricultores,
com uma idade média de 53 anos, com mais de um quarto com 60 anos ou mais.
Projeções apontam que a proporção da força de trabalho agrícola pode cair para
menos de 35 milhões. Esses desafios da força de trabalho vão além da
agricultura, impactando setores como transporte e logística, que são vitais
para a cadeia de suprimentos agrícolas. Em 2021, a China enfrentou uma escassez
de 4 milhões de motoristas de caminhão, um problema que provavelmente piorará à
medida que a população em idade ativa diminui e os mais jovens buscam melhores oportunidades nas cidades.
Essa mudança demográfica significa que a China em breve enfrentará não apenas
uma redução na força de trabalho agrícola , mas também
menos trabalhadores rurais disponíveis para setores críticos, como transporte e
logística, essenciais para manter as cadeias de fornecimento de alimentos. Para
lidar com esta questão, vem sendo implantação diversas políticas de mecanização
do campo, que buscam assegurar uma produtividade maior num cenário de menor
força de trabalho disponível.
Outro
desafio emerge pelas mudanças nas preferências e demandas alimentares da
população, especialmente da classe média urbana em rápida expansão. Acredita-se
que o país até 2030 terá cerca de 1 bilhão de pessoas pertencentes à classe
média. Com o aumento da renda disponível e da exposição às culturas globais, há
uma demanda crescente por opções alimentares seguras, variadas e de maior
qualidade. A dieta tradicional chinesa é baseada em grãos básicos, rica em
vegetais e pobre em produtos de origem animal. Mas, à medida que as rendas
aumentaram, também aumentou o consumo de grãos refinados, carnes, óleos e
açúcares. A cada ano, mais milhões de chineses buscam itens especiais, como
produtos orgânicos, alternativas lácteas e carnes importadas. Dessa forma, a procura
de produtos de carne por parte da população cada vez mais abastada aumentará de
forma constante, correspondendo à crescente procura de insumos de soja e
cereais para alimentar o gado. Esta questão exigirá uma estratégia ousada a ser
elaborada para o próximo plano quinquenal.
A China
empreende uma estratégia multifacetada para buscar a autossuficiência em
segurança alimentar, concentrando-se na recuperação de áreas degradadas,
aceleração do uso de variedades de alto rendimento, na mecanização geral e
ampliação do seu orçamento para estocar grãos e óleos comestíveis (visando
maior controle dos preços internacionais). Seus desafios são cada vez mais
difíceis, envolvendo aumentar e diversificar a produção agrícola com restrições
pela escassez de mão de obra, pelo envelhecimento da força de trabalho
agrícola, pela falta de terras aráveis, pela pequena escala das unidades de
produção e pela falta de disseminação de tecnologia agrícola. Lidar com estes
desafios e avançar nos diversos planos que estão sendo realizados devem estar
no centro das políticas agrícolas chinesas a serem desenvolvidas no próximo
plano quinquenal.
Fonte:
Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário