sábado, 30 de novembro de 2024

'Isenção de IR até R$ 5 mil é medida eleitoreira de Lula', afirma economista Samuel Pessôa

A decisão do governo de aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda para até R$ 5 mil, em meio a uma crise fiscal, é uma "medida eleitoreira", de olho na disputa presidencial de 2026, critica o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Family Office.

Na sua leitura, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mira o eleitorado de classe média, com renda de R$ 3 mil a R$ 5 mil, para fortalecer sua tentativa de reeleição.

A expectativa do Ministério da Fazenda é aprovar o aumento da isenção, hoje limitada a dois salários-mínimos (R$ 2.824), no Congresso no próximo ano, para que ela entre em vigor em 2026.

O problema, diz Pessôa, é que a medida está sendo proposta num momento de desequilíbrio das contas públicas e tende a agravar esse quadro, provocando aumento de inflação no país.

Após o anúncio da proposta, o dólar disparou e chegou a valer mais de R$ 6 nesta quinta-feira (28/11), o que deve encarecer produtos importados ou produzidos no Brasil, mas cotados internacionalmente, o que inclui alimentos.

"A pior coisa, para os pobres, é bagunça macroeconômica", afirma Pessôa.

"Uma crise fiscal contrata inflação, desorganização de emprego, outras coisas que são muito ruins. Ou ninguém se lembra de 2014 e 2016? A crise não aconteceu, foi uma invenção nossa?", questiona em outra trecho da entrevista.

A proposta de aumentar a isenção veio junto com outras medidas de cortes de gastos e a previsão de criar um imposto mínimo de 10% sobre rendas mensais de mais de R$ 50 mil. A projeção da Fazenda é economizar R$ 70 bilhões em dois anos.

Para o economista, os cortes anunciados são positivos, mas insuficientes para evitar a explosão da dívida pública, devido à tendência de crescimento de despesas obrigatórias, como aposentadorias, acima da expansão econômica do país.

A reação negativa do mercado financeiro veio justamente com a disparada do dólar, que gerou reação da presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann. " É impressionante a especulação contra o Brasil", escreveu na rede social X.

Para Pessôa, o dólar poderia estar a R$ 4,50, não fosse o aumento da percepção de risco que está provocando saída de investidores.

"É difícil a esquerda entender o problema porque a esquerda adora uma teoria conspiratória. [...] Se o mundo todo não está vindo investir aqui, é porque o mundo está vendo um risco que tem que ser encaminhado. Porque desequilíbrio fiscal não é uma coisa pequena", reforça.

<><> Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

·        O governo surpreendeu ao anunciar o esperado pacote de corte de gastos com medidas tributárias. Como avalia esse anúncio conjunto?

Samuel Pessôa - Acho que ter misturado controle de gasto com reforma da tributação da renda, uma medida que tem claro caráter eleitoral, foi ruim. Essa medida de aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil por mês é uma decisão do Lula pensando na disputa eleitoral de 2026.

Ele avalia que quem ganha abaixo de R$ 2 mil, R$ 3 mil por mês vota nele e quem ganha acima de R$ 5 mil vota na direita, e aí essa é a turma [renda entre R$ 3 mil e R$ 5 mil] que ele está disputando.

Então, é uma medida que tem um caráter eleitoral e é contra os problemas que nós temos porque a gente tem um problema fiscal [desequilíbrio entre receitas e despesas].

Inclusive, uma das medidas que está no pacote, é a previsão de que, se as metas de superávit primário não forem atendidas, a partir de 2027 serão acionados gatilhos [para conter gastos]. E um deles é que não pode dar nenhuma desoneração adicional. Então, ele começa um pacote aumentando a desoneração, percebe a inconsistência?

Agora, as medidas em si de controle de gastos são bem-vindas. São insuficientes para o tamanho do problema, mas são todas bem-vindas.

·        Os defensores da proposta de isentar a renda até R$ 5 mil e tributar mais o que ganham acima de R$ 50 mil dizem que é uma medida progressiva, positiva para a distribuição de renda. Discorda?

Samuel Pessôa - Eu acho que a medida é progressiva, ela reduz a desigualdade de renda. A gente sabe que o Brasil é um país muito desigual. Agora, qual é o foco? O foco é atacar o problema fiscal, porque o problema fiscal está gerando inflação e inflação é muito ruim para os mais pobres também. Então, o problema é resolver o fiscal ou reduzir a desigualdade do país hoje?

A questão de desigualdade é uma questão estrutural. O ministro tem dito que tem como objetivo fazer uma grande reformulação dos impostos de renda, com vistas a reduzir o grau de regressividade e talvez tornar os impostos de renda brasileiros mais progressivos. O ministro está absolutamente correto. Agora, isso demandaria uma revisão mais ampla de todos os impostos de renda. Não é isso que foi feito.

O que foi feito é uma medida que, no momento, no meu entender, é eleitoreira para que o presidente consiga que uma parte da população, cuja maioria não votaria com ele, passe a votar com ele em 2026 e um esparadrapo [a tributação dos mais ricos] para tirar [obter] uma fonte de receita.

Mas, tudo bem, vamos esperar a tramitação. Espero que o Congresso aprove tudo, porque o grande medo que fica é o Congresso aprovar a isenção, o aumento da tabela do Imposto de Renda, e não aprovar o imposto sobre os ricos. Aí cria um desequilíbrio fiscal, agrava o problema.

·        Como a renda média brasileira é baixa, uma parte grande da população entra nessa faixa de R$ 5 mil. Isentar essa faixa cria um impacto fiscal muito grande?

Samuel Pessôa - Eu acho que é muito ruim. Não sei os números exatos, mas é abrir mão de alguma coisa como R$ 50 bilhões de receita [o governo estima perdas menores, de R$ 35 bilhões, mas a proposta ainda não foi detalhada].

Seria interessante a gente ver um estudo: dada a estrutura de renda brasileira, dado o que ocorre em outros países, o que seria razoável de faixa de isenção de Imposto de Renda? Agora, essa decisão é de natureza política. Os economistas não têm muito o que dizer a respeito.

É uma arbitragem que o presidente, com toda a legitimidade da eleição majoritária, faz. E o Congresso avalia e aprova ou não. A única crítica que eu faço é que, a mim, não faz muito sentido esse tipo de discussão quando a gente está no meio de uma crise fiscal, com a dívida pública crescendo de forma explosiva.

·        E esse crescimento explosivo da dívida pública, na sua visão, impacta os mais pobres ao gerar inflação?

Samuel Pessôa – Exatamente. A pior coisa, para os pobres, é bagunça macroeconômica.

·        Isoladamente, essa medida de fixar uma alíquota mínima de 10% para os que ganham mais de R$ 50 mil por mês é positiva?

Samuel Pessôa - Aí tem que ver os detalhes. Eu acho que o esforço de mudar a legislação brasileira, tributando mais os ricos é positivo. Há sinais de que as altas rendas no Brasil, pagam pouco imposto. Essa medida é um esparadrapo, vai pegar um monte de coisa diferente. Eu não acharia que essa é a melhor maneira de tratar esse tema.

A questão é que há vários regimes tributários com regras diferentes. Tem gente que pagou na Pessoa Jurídica 34% e outros que pagaram na Pessoa Jurídica 5%.

Se na Pessoa Física ambos pagarem menos do que 10% da renda declarada, eles serão cobrados pela diferença até atingir 10% de alíquota média efetiva [segundo a nova proposta do governo], sem considerar que pagaram valores diferentes na jurídica.

Esse tema está sendo tratado desse jeito porque a área política do governo convenceu o Lula que, para deixar a esquerda mais feliz, como contrapartida de um programa de contenção de gastos, teria que vir alguma coisa na direção de melhorar a progressividade dos impostos e fizeram um esparadrapo. Dado que vai isentar até R$ 5 mil, é melhor ter esse imposto [sobre os mais ricos].

·        O desejado ganho eleitoral pode ser neutralizado com dólar e inflação mais altos?

Samuel Pessôa - Como professor de Economia, eu tenho dificuldade em fazer essa avaliação [de impacto político]. A impressão que dá é que o Lula está andando em gelo fino, porque ele fez uma escolha de inverter o ciclo político da despesa pública. Ele, de certa forma rasgou o Maquiavel [autor do clássico O Príncipe].

Você [normalmente] começa o governo com pé no freio do gasto público, arruma a casa, colhe os benefícios aos pouquinhos e, no final, se elege.

E o Lula por uma série de motivos, resolveu inverter e aprovou a emenda constitucional da transição [do governo Bolsonaro para o seu], que colocou R$ 170 bilhões a mais de gastos públicos permanentemente. Criou um problema pra ele mesmo e, portanto, o governo dele é sequestrado por essa escolha inicial.

E aí ele está fazendo uma conta de chegada: se ele não fizer nada [para conter os gastos públicos], o câmbio explode muito, gera inflação, eles perdem a eleição em 2026. Se ele fizer muita coisa, como o ajuste fiscal que ele está fazendo, já não é no início do governo, ele só tem um horizonte de dois anos, e essa arrumação de casa demora um tempo pra maturar. Então, talvez ele arrume a casa e ele não tenha tempo de colher os benefícios para se reeleger.

Ou seja, se ele não fizer nada, ele desorganiza muito a economia e chega mal em 2026. Se ele fizer o que precisa fazer, vai ser ruim no curto prazo, não dá tempo de ele colher, e aí também chega mal em 2026.

Então, o presidente Lula está tendo que fazer esse cálculo, que é uma conta de chegada difícil. Ele ganhou cinco eleições presidenciais [contando duas vitórias de Dilma Rousseff], ele entende desse business muito melhor do que eu. Mas parece que ele está brincando com fogo. Parece que, talvez, ele tenha errado o cálculo. Mas isso a gente vai ter que esperar a prova do pudim nas eleições e ver se ele ganha ou não.

·        O dólar disparou após o pacote, o que levou parte da esquerda a criticar o mercado. O que explica a disparada do dólar? Tem fundamento?

Samuel Pessôa - Se a gente olhar os fundamentos do câmbio, da economia brasileira, não tem fundamento. O Brasil está hiper barato. Você pega uma empresa brasileira avaliada em reais, aplica esse câmbio e calcula ela em dólar, ela está super barata.

A gente tem uma situação externa sólida, vai entrar poço do petróleo ano que vem, do pré-sal [trazendo mais dólares pro país com exportação]. A gente não tem uma situação externa problemática. Então, se a gente olhar fundamentos de comércio internacional e de contas externas, o câmbio deveria ser R$ 4,50.

Agora, é difícil a esquerda entender o problema porque a esquerda adora uma teoria conspiratória, e a esquerda acha que o mercado financeiro são três ou quatro caras poderosos que fazem um cartel entre si que comanda os preços. Não é assim. São milhares de pessoas de forma descentralizada, tomando decisões. Não tem conspiração, não tem coordenação. São as pessoas olhando [o cenário econômico] e defendendo o seu patrimônio, tomando as melhores decisões que elas podem, com as informações que elas têm.

Então, eu devolvo a pergunta para a esquerda: a Selic está em 11,25%, ela vai até 13,5% provavelmente, o país está hiper barato, o câmbio está quase seis reais, por que o mundo todo não está pondo dinheiro aqui dentro? Tudo bem, [eles acham que] a Faria Lima é conspiradora, não gosta do PT, não gosta do Lula, faz tudo isso [contra o governo]... Por que os fundos de investimento não vêm para cá? Eles são super sofisticados, é gente inteligente, eles precisam ganhar dinheiro. Aí tem um país inteiro hiper baratinho, com uma taxa de juros super alta, por que eu não ponho meu dinheiro lá para ganhar dinheiro? E as pessoas não estão vindo para cá.

Não faz sentido esse argumento, é uma loucura. Se o mundo todo não está vindo investir aqui, é porque o mundo está vendo um risco que tem que ser encaminhado. Porque desequilíbrio fiscal não é uma coisa pequena.

Qual o desequilíbrio fiscal brasileiro? Com as regras que nós temos, necessariamente a gente vai ter uma crise fiscal futura. Não é que tem desperdício do Estado brasileiro, não é que o Estado brasileiro joga dinheiro fora. O que acontece é que a gente tem regras, e a simples operação dessas regras obriga a uma trajetória da dívida pública que é explosiva.

Isso significa que a nossa sociedade não consegue se entender. Existe um conflito distributivo aberto, que não está solucionado. Agora, uma sociedade que vive conflito distributivo aberto e não soluciona, é uma sociedade que não tem estabilidade, em que ninguém vai investir, e quem tem dinheiro tira. Isso que está acontecendo.

·        As regras que você cita são as despesas obrigatórias?

Samuel Pessôa - Exatamente. A gente tem um problema de despesas obrigatórias que crescem a uma velocidade maior do que a economia. Lá com o [governo Michel] Temer, a gente resolveu esse problema [adotando o teto de gastos, que limitava o aumento das despesas à inflação]. Aí a sociedade não aceitou, elegeu o Lula, o Lula repôs esses problemas.

·        Críticos do teto de gastos adotado no governo Temer dizem que a regra levou ao sucateamento de alguns serviços públicos, que ficaram com menos receitas.

Samuel Pessôa - Eu entendo perfeitamente. Então, esse que é o conflito distributivo. As pessoas querem o Estado maior, mas aí essas mesmas pessoas não querem pagar mais imposto. E o mundo todo diz: naquela sociedade, os caras não se entendem. Caíram numa crise fiscal profunda, aí impicharam a presidente e arrumaram a coisa. Aí teve uma eleição, o novo presidente não gosta dessa arrumação, a sociedade não gosta, ele desfaz a arrumação e volta os problemas que tinha antes.

·        Como avalia as medidas para cortes de gastos, como a limitação do aumento do salário mínimo?

Samuel Pessôa - O governo diz que vai colocar a regra do salário mínimo dentro do arcabouço fiscal [limitando o reajuste anual a 2,5% acima da inflação] .

Isso quer dizer que a taxa de crescimento do salário mínimo real será a mesma taxa de crescimento do gasto total. O problema é o seguinte: as políticas públicas vinculadas ao mínimo crescem pela soma da taxa de crescimento do valor real do benefício com a taxa de crescimento do número de beneficiários.

Ora, o número de beneficiários no Brasil cresce com a demografia. Essencialmente é a terceira idade [pessoas que estão envelhecendo e se aposentam pelo INSS, com aposentadoria vinculada ao salário mínimo].

Bem, então a demografia que importa no nosso Welfare State [Estado do bem-estar social] é mais ou menos a terceira idade, o pessoal que está chegando aos 60 anos. Ora, no Brasil, 60 anos atrás, a taxa de crescimento populacional era quase 3%. Então, a quantidade de benefícios cresce a 3%, o valor real cresce a 2,5%, deu 5,5%.

Então, todas as políticas públicas do Estado de bem-estar social brasileiro, vinculado ao mínimo, por essa regra, tem que crescer 5,5%. Mas a economia cresce a 2,5% [essa taxa varia ano a ano, mas tem se mantido baixa na média]. Isso é uma impossibilidade lógica. Então, só pra te dar um exemplo das limitações do pacote.

Quando a gente pôs, lá no governo Temer, o salário-mínimo crescendo em termos reais a zero, não é porque o Temer é malvado e quer ferrar pessoas. É que, dada a demografia brasileira, é muito difícil dar aumentos reais de salário mínimo na atual circunstância nossa.

Aumento real de salário-mínimo contrata uma crise fiscal, uma crise fiscal contrata inflação, desorganização de emprego, outras coisas que são muito ruins. Ou ninguém se lembra de 2014 e 2016? A crise não aconteceu, foi uma invenção nossa?

·        Como está seu otimismo para a votação do pacote no Congresso?

Samuel Pessôa - Eu estou otimista com o Congresso. Se a gente olhar, o Congresso, nesse terceiro mandato do presidente Lula, tem sido muito parceiro do Executivo. Aprovou a reforma tributária, aprovou o arcabouço fiscal, aprovou um conjunto imenso de regras e leis que o ministro Haddad enviou para o Congresso Nacional para reduzir oportunidades de planejamento tributário [brechas para pagar menos impostos]. Tudo isso passou pelo Congresso.

Então, o Congresso não tem sido nenhum empecilho a ajuste fiscal. Tem a questão das emendas impositivas que, no meu entender, são muito ruins. Elas apareceram por um motivo: a sociedade elegeu presidentes fracos, tanto Dilma Rousseff como Jair Bolsonaro, e aí, quando o presidente é fraco, o Congresso vai lá e ocupa o lugar. Desfazer depois fica difícil.

Espero que o presidente Lula, com todo o talento dele, consiga, pelo menos em parte, desfazer. Uma parte já foi feita, é um dos efeitos positivos desse pacote, que prevê uma limitação para o crescimento das emendas e pega outra parte das emendas e põe metade na área da saúde. São medidas positivas.

·        Como avalia o desempenho do ministro Fernando Haddad, levando em conta as disputas internas dentro do governo?

Samuel Pessôa - Eu acho que Haddad está fazendo o melhor que ele pode. Eu avalio positivamente o trabalho dele. A gente sabe que esse ruído que deu, do anúncio de um pacote fiscal junto com uma desoneração, foi uma derrota pessoal dele. O presidente arbitrou [a disputa com a Fazenda] e a área política, digamos assim, ganhou.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

Plataformas: O viver e morrer sobre rodas

Uma nova realidade de trabalho vem tomando forma no Brasil: o serviço de entregas e transportes por aplicativos. Essas atividades econômicas têm sido porta de entrada para o processo de plataformização do trabalho (Abílio; Amorim; Grohmann, 2021) por aqui. Além de associado ao rebaixamento da proteção trabalhista e previdenciária, o trabalho no molde como tem sido proposto por plataformas digitais de trabalho sob demanda traz à tona graves questões de saúde e segurança dos trabalhadores e trabalhadoras.

Com a contratação sem vínculo empregatício, a modalidade de trabalho por plataformas, desresponsabiliza as empresas pela oferta de condições mínimas de segurança e saúde no trabalho, como equipamentos e formação, assim como pela prevenção e indenização por adoecimentos e acidentes de trabalho. O resultado é um agravamento dos riscos à saúde associados ao trabalho (Christo et al, 2023), os quais intensificam ou se somam a antigos riscos, ampliando a possibilidade de sofrimento, adoecimentos, acidentes e mortes.

Chama-se a atenção para o comprometimento de recursos públicos no tratamento dos efeitos sociais da operação dessas empresas, impactando a previdência social e, especialmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) com a atenção a patologias e ao atendimento emergencial e de reabilitação de vítimas de acidentes (Abílio e Santiago, 2024).

Com o objetivo de contribuir para o debate social e a construção de políticas públicas de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras, uma pesquisa qualitativa realizada em parceria entre a Fiocruz, a UFRJ e a UFF, desde 2019, traz evidências de mudanças significativas nas relações e condições de trabalho e no modo de controle operado por empresas-plataforma, com o uso de algoritmos.

•                        Características do trabalho e contexto da plataformização

Antes de falar dessas mudanças, é necessário conhecer as características que já estavam presentes nas configurações de trabalho dessas categorias profissionais anteriores à plataformização. Dentre elas, elevada carga física de trabalho; exposição a gases, poeira e intempéries, assim como a riscos de acidentes; relações de trabalho muitas vezes autoritárias por parte de empresas/restaurantes contratantes; e diversos tipos de violência, como o racismo e a discriminação de classe e de gênero.

É justamente reconhecendo o quadro de precariedade social no Brasil, assim como do alto grau de informalidade do mercado de trabalho e a precariedade dos contratos de trabalho que podemos compreender a grande adesão dos trabalhadores e trabalhadoras ao trabalho por plataformas digitais (Christo & Masson, 2023), as quais negam de pronto o acesso aos direitos trabalhistas, assim como à garantia de condições mínimas de trabalho, saúde e segurança.

Outro dado de contexto que contribui para o surgimento dessa modalidade de trabalho sem proteção trabalhista são as práticas e políticas neoliberais que endossam a flexibilização de direitos sociais e de relações contratuais de trabalho. Sustentadas em um ideário do trabalhador como empreendedor de si (Abílio, 2020) contribuem para a desmobilização de discussões acerca do bem comum, assim como para ampliar a fragmentação dos coletivos de trabalho e da organização dos trabalhadores. Dentre seus efeitos estão as práticas antissindicais, o estímulo à competição e dificuldade de identificação dos profissionais como parte da classe trabalhadora (Antunes, 2024).

•                        Individualização dos riscos e culpabilização dos trabalhadores

Dentre as características do modo de organização do trabalho por plataformas digitais, destaca-se a ampliação da exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a riscos ambientais e de acidentes, os quais não são devidamente computados como acidentes de trabalho. Com a informalidade do contrato, é negado também o acesso a medidas de prevenção e proteção à saúde e segurança no trabalho previstas em lei, como o fornecimento de equipamentos de proteção individual e coletiva, assim como a formação profissional. Isto porque, nem as empresas respeitam, nem o Estado fiscaliza o cumprimento das exigências de qualificação profissional e de proteção à saúde e segurança previstos em leis já existentes, como a lei do motofrete (12.009/2009) e a lei Habib’s (12.436/2011).

O Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde sobre acidentes de motociclistas no Brasil entre 2011 e 2021 (BRASIL, 2023a) aponta que as lesões de trânsito são um importante problema de saúde pública global e foram responsáveis, em 2020, por mais de 190 mil internações em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus hospitais conveniados, sendo 61,6% destas de motociclistas. Dentre as pessoas envolvidas em lesões de trânsito, os motociclistas são também aqueles que apresentam as consequências mais graves. Chama a atenção ainda a correlação entre tais dados e o trabalho de entrega realizado cada vez mais massivamente para empresas-plataforma com o uso de motocicletas como equipamento de trabalho – o que faz com que diversos acidentes com motociclistas possam ser considerados acidentes de trabalho típicos (BRASIL, 2023a).

Chama a atenção o discurso comum que enfatiza a relação dos acidentes com fatores comportamentais dos motociclistas como irresponsabilidade, imprudência e desrespeito às leis de trânsito, endossando uma perspectiva individualizante e culpabilizante dos que se acidentam, “mesmo reconhecendo que os modos de condução desses trabalhadores estejam relacionados a prazos rígidos de entrega, sobrecarga de trabalho ou remuneração por produção” (Moraes e Athayde, 2014, p. 328).

Enquanto isso, empresas que controlam plataformas digitais não são responsabilizadas pelos acidentes e não arcam com os custos de afastamento do trabalho, de reparo dos instrumentos ou com qualquer responsabilidade relativa à indenização das pessoas envolvidas. Nesse sentido, não são instadas a mudar as regras que contribuem para determinar os acidentes, como as que definem os tempos para realizar as entregas; as rotas que desconsideram as regras de trânsito; assim como as punições financeiras e desligamentos por atraso (Liberato, 2021). A lógica de responsabilização individual é central para o modelo de negócios das plataformas digitais de trabalho.

•                        Insegurança e pressão psicológica constante

Uma característica marcante da plataformização do trabalho é o apagamento da atividade dos trabalhadores e trabalhadoras, isto é, a invisibilidade social de todos esforços e custos das gestões que têm que fazer cotidianamente frente aos imprevistos e variabilidades nas situações concretas de trabalho, os quais as plataformas (e muitos clientes) não querem tomar conhecimento, haja visto a dificuldade de acesso aos canais de comunicação com elas, não garantindo suporte para situações de dúvidas, emergências ou tratamento de acidentes ou incidentes no trabalho. Esse apagamento do que se enfrenta nas situações concretas contribui para o não reconhecimento da complexidade do trabalho realizado, o que interfere na atribuição de valor a ele.

Outro ponto a se considerar é a adoção de um sistema de remuneração que paga por somente o que as empresas consideram como tempo produtivo, deixando de remunerar todo o tempo e esforço gasto em atividades de busca, espera e preparação para o trabalho, como, por exemplo, a manutenção dos equipamentos usados. Além disso, ao nomear os trabalhadores e trabalhadoras como “parceiros”, as empresas negam a condição de subordinação jurídica dos trabalhadores a elas, contribuindo para a ampliação de diversas inseguranças no trabalho, especialmente em relação às incertezas sobre a remuneração e mesmo sobre a permanência nas plataformas e ao risco de sofrer acidentes e diversas violências.

Uma coisa que pesa muito, na minha opinião, com relação à saúde mental, é a gente não ter amparo para conserto do nosso veículo de transporte porque… Eu passo meu dia preocupada em pedalar em lugares que eu sei que minha bicicleta não vai furar o pneu, não vai me dar prejuízo, porque se o meu pneu furar, por exemplo, eu já perdi o dinheiro daquele dia, se o meu pneu furar. Então, é o dia inteiro de preocupação. Eu me preocupo com assédio o dia inteiro, me preocupo o dia inteiro se meu pneu vai furar, senão perdi meu dia de trabalho, basicamente, pra ter que comprar outro pneu (Bike-entregadora, em 1 set.2020).

A insegurança alimentar e nutricional também é um efeito da precarização do trabalho no setor de entregas e transporte urbano. Além de diretamente articulada à baixa remuneração e ao não fornecimento de alimentos ou vale-refeição/alimentação pelas plataformas digitais, ela também se relaciona com a falta de tempo e de espaço apropriado para a realização de pausas. As consequências mais ou menos imediatas e perceptíveis são principalmente problemas gastrointestinais, emagrecimento entre ciclistas e aumento de peso entre motoristas, além de problemas relacionados à baixa hidratação, como pedras nos rins.

A gente se alimenta muito mal, a gente come muitos lanches. E algo normal nos entregadores é a gastrite, porque não se alimenta direito, às vezes fica um período gigantesco. Eu mesmo cansei de ficar com fome o dia inteiro mesmo assim, tipo, é… ficar com tanta fome que a fome passava, né… Então… Outra situação que a gente vê é pedras nos rins. O cara não quer parar nem pra mijar, então ele bebe… desculpa, urinar [risos]. Então, ele, tipo, não para nem para usar o banheiro, aí ele evita beber água, então, pedra nos rins é algo comum (Motoboy, em 1 set.2020).

Outra insegurança que aparece com centralidade no cotidiano dos entregadores/as refere-se aos acidentes de trânsito. Elementos como a gestão algorítmica e gamificada e a necessidade de manusear o celular enquanto se locomovem em seus veículos contribuem para caracterizar as condições perigosas em que se dão as atividades. Muitas vezes a experiência dos acidentes é trazida quase como uma norma no trabalho de entrega, algo que todos ou passaram ou passarão algum dia. Ressalta-se a convivência permanente com o medo não só do trânsito agressivo, mas de se acidentar, de adoecer e, especialmente, de não poder mais trabalhar.

A gente já é uma profissão de risco, começa por aí. Nunca nada foi mil maravilhas, mas infelizmente a gente vê que a cada dia piora… Quando você tinha maus patrões que pagavam mal etc., você tinha um subemprego ou seja lá o que for, você tinha a Justiça do Trabalho, tinha um registro, uma seguridade social, querendo ou não, você tinha um acesso talvez um pouco menos difícil à saúde… E a partir do momento do advento da tecnologia e da vinda dos aplicativos, essa nova forma de renda, de relacionamento ou seja lá o que for, não tendo nenhum tipo de regramento, não tendo quem possa acolher, a gente acaba sofrendo tudo isso que a gente já disse, né? (Motoboy, 17 set.20)

Identificam-se ainda inseguranças e medos relacionados a diversas violências, como a violência urbana (assaltos e agressões), a violência policial, desconfiança e falta de respeito, assédios e discriminações (racismo, preconceito em relação à classe social e ao gênero) por parte de empresas, clientes e estabelecimentos.

Sim, eu ainda vou trabalhar sim, daqui a dez anos. Hoje eu estou com 33 anos. Eu espero que muitas coisas tenham mudado. A estrutura, a saúde, a segurança. O olhar das pessoas com as adversidades, com os gêneros. Que não tenha mais aquele preconceito, que é um conceito que as pessoas têm em relação a mulher trabalhar, a dirigir, entendeu? E que as mulheres não venham mais se sentir inseguras a transitar no trânsito à noite ou de dia, entendeu? Que não se sintam inferiores. Eu espero que, daqui a dez anos, tudo mude, e a minha situação também mude. Que não seja um trabalho como hoje, que eu necessito, mas, sim, que daqui a dez anos seja um trabalho extra. Mas sim… eu pretendo ainda trabalhar (Motorista mulher, em resposta à questão: “Como você acha que estará daqui a dez anos se continuar a trabalhar nas plataformas da mesma forma que faz hoje?”, feita em atividade da pesquisa em 17.mai.23).

Há ainda a insegurança quanto à permanência no trabalho, já que são comuns desligamentos e bloqueios feitos pelas plataformas de forma autocrática, sem justificativa ou possibilidade de defesa, deixando os trabalhadores e trabalhadoras sem acesso ao seu histórico de trabalho como referência para trabalhos futuros.

•                        Sofrimento e adoecimento físico e mental

A articulação entre a intensificação do trabalho, o medo de não ser bem avaliado e as dinâmicas subjetivas que degradam a autoimagem e a autoconfiança são associados pelos trabalhadores a uma fadiga crônica, um cansaço que se acumula ao longo do tempo. Fadiga que se expressa no corpo com problemas osteomusculares, relacionados a exigências posturais e intensificação do trabalho e à falta de tempo ou recursos para práticas de autocuidado, mas que é transpassada por sofrimento mental, manifestando-se em distúrbios de sono, irritabilidade, desânimo, dores diversas e alterações no apetite. Destacam-se a pressão de tempo para a realização das entregas; a falta de tempo para pausas, para o lazer, para estar com a família; assim como o sentimento de impotência e indignação com as injustiças, especialmente quando as empresas fazem bloqueios e desligamentos sem lhes dar direito à defesa ou quando vivenciam a violência do racismo e de outras formas de discriminação e de desrespeito.

A gamificação do trabalho (Woodcock & Johnson, 2018) tem aparecido como importante elemento do gerenciamento algorítmico para incentivar trabalhadores/as a cumprirem as metas do trabalho. Essas metas são apresentadas na forma de jogos, com níveis, provas e classificações, a partir das quais as plataformas tentam explorar o desejo dos trabalhadores e trabalhadoras de superação pessoal, assim como de reconhecimento social. Uma consequência recorrentemente relatada pelos trabalhadores e trabalhadoras é a vivência do que chamam uma “noia”, um vício, resultando em ansiedade, medo e mesmo euforia, associados à necessidade de controlar essas sensações, envolvendo autovigilância e autoexigência.

[…] não basta ter só um aplicativo, porque não está me sustentando naquele aplicativo, então eu faço dois. Aí, eu pego duas entregas de uma vez, as duas entregas é o caminho pra retirar, mas é o inverso pra entregar, e aí é onde eu tenho que ficar doido, onde eu pego uma pra mim correr pra um lado, e eu tenho que voltar que nem uma bala pro outro, pra poder… pra não ser bloqueado, porque o medo de todos é o bloqueio, entende? É tipo o justa causa, se fosse CLT. Só que é a justa causa que você não sabe nem o porquê que você foi bloqueado. Então, aí você sai igual uma bala pro outro lado, e você vira um míssil, aonde você pegar, você vai explodir, entendeu? Por causa da velocidade. Aí entra o estresse quando você é bloqueado, ou quando você tem um problema que não consegue resolver, te dá aquela sensação de impotência assim, que você fica assim, agoniado, que você quer descontar em alguma coisa, em alguém (Motoboy, em 1 set.2020).

Todavia, o sofrimento, além de um ponto de chegada, se revela também como um ponto de partida (Dejours, 2012) para a luta contra a exploração. E essa luta passa pelo reforçamento da identidade, na qual o outro, especialmente, os pares, o coletivo de trabalhadores, têm um papel fundamental. Observa-se, portanto, que nesse processo de precarização do trabalho não deixa de haver iniciativas de resistência e de mobilização coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras.

•                        Iniciativas de resistência e organização coletiva

Tentar encontrar saídas, brechas e respiros também é atividade constante de trabalhadores e trabalhadoras que atuam por plataformas digitais, algo que se dá inclusive na participação e na organização de uma luta política mais ampla voltada para o fortalecimento da profissionalização do trabalho e a conquista de direitos. Há uma diversidade de formas como o enfrentamento da precarização do trabalho é levado a cabo pelos trabalhadores e trabalhadoras. Diversidade presente tanto nas estratégias cotidianas para a realização das atividades, quanto na organização para a luta política e social por melhores condições de trabalho e de vida. Dentre as mais cotidianas, estão ações de cooperação, como a formação para o trabalho entre os próprios trabalhadores, com o compartilhamento de dicas e orientações de youtubers; criação de grupos para operar serviços fora das plataformas; “vaquinhas” em caso de acidentes e roubos. Dentre as mais amplas, envolvendo a luta coletiva pela garantia de condições de trabalho justas e o fortalecimento da profissionalização do trabalho, observam-se desde a formação de sindicatos, associações, cooperativas e federações, até a realização de movimentos de greve, exigindo das empresas e do Estado melhores condições de trabalho.

Um exemplo foi a mobilização denominada Breque dos Apps que, em julho de 2020, reivindicou melhores remunerações e medidas de saúde e de segurança do trabalho durante a pandemia de Covid-19, assim como o fim dos bloqueios e desligamentos injustificados. Para tal, buscou apoio da sociedade, sensibilizando consumidores a respeito de suas condições de vida e de trabalho. Outro exemplo foi a constituição, em dezembro de 2022, da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (ANEA)1, que reivindicou e conseguiu assentos no grupo de trabalho tripartite (com representações de trabalhadores/as, empresas e governo federal) instituído em 2023, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, com a finalidade de elaborar uma “proposta de regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas” (BRASIL, 2023b).

Ressaltamos que tais categorias vêm enfrentando grandes desafios, já esperados frente à configuração precária do emprego com a plataformização do trabalho e ao jogo de forças desequilibrado em que se situam frente ao capital. Mas também apresentando novos elementos, em um processo intenso de criação e aprendizado sobre a luta coletiva.

•                        Para finalizar…

As experiências de motoristas e entregadores evidenciam a necessidade de repensar a permeabilidade da sociedade e do poder público a uma configuração de trabalho que priva os trabalhadores de direitos e condições mínimas de garantia da saúde e da vida. Regular o trabalho por plataformas, garantir proteção e promover o reconhecimento social dessas categorias profissionais são medidas essenciais para que esses trabalhadores e trabalhadoras possam exercer seu trabalho com dignidade, segurança e saúde. Daí a importância da luta pela regulamentação dessas atividades profissionais, no sentido de frear a lógica de desresponsabilização das empresas pelos custos materiais e humanos de suas operações.

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Este texto é uma síntese de um capítulo das mesmas autoras, intitulado “Sobre viver no trabalho por plataformas digitais: saúde, sofrimento e luta de entregadores/as e motoristas”, do livro “Um horizonte de lutas para a autogestão: o trabalho organizado por plataforma digital”, organizado por Ricardo Toledo Neder e Flávio Chedid Henriques.

 

Fonte: Por Letícia Masson e Cirlene Christo, em Outras Palavras

 

'Solteiros são felizes e, depois dos 40, ainda mais': a cientista de Harvard que estuda os benefícios de ser solteiro

A pesquisadora Bella DePaulo conta que quando tinha vinte e poucos anos, era feliz sendo solteira. Mas admite que sempre esteve à espera de que esse sentimento fosse mudar — pelo menos, era o que as pessoas ao seu redor diziam.

Hoje, aos 71 anos, DePaulo afirma que esse sentimento nunca mudou e que, apesar do que muita gente à sua volta acreditava, ser solteira permitiu a ela viver uma vida com absoluta plenitude.

"Com o tempo, percebi que a vida de solteira era para mim. Depois de aceitar isso, você pode investir totalmente na sua vida de solteiro: comprar uma casa, buscar seus interesses e viver plenamente."

DePaulo é psicóloga social da Universidade Harvard, nos EUA, e autora do livro Singles by Nature ("Solteiros por natureza", em tradução livre).

Durante anos, ela se dedicou a estudar a vida e os níveis de felicidade relatados por pessoas solteiras — e como seu papel na sociedade está mudando.

Para a especialista, há uma quantidade enorme de ideias no imaginário coletivo sobre a experiência de pessoas solteiras — e, segundo ela, muitas dessas ideias estão totalmente distantes do que ela, como pesquisadora social, tem visto.

"Dediquei o trabalho da minha vida a encontrar as histórias reais da vida de solteiro", afirmou DePaulo em sua palestra do TED em 2017, que teve mais de 1,7 milhão de visualizações.

"As histórias que ninguém nos conta", acrescentou.

LEIA A ENTREVISTA:

•                        Começo fazendo uma pergunta que vem da minha experiência pessoal. Tenho 38 anos, estou solteiro e, às vezes, sinto que o mundo está a favor das pessoas que estão vivendo a dois. Por que sinto isso?

Bella DePaulo - É verdade que os casais recebem muita atenção, presentes, respeito e até destaque em séries e filmes. Tudo parece girar em torno deles ou daqueles que desejam ser um casal.

No entanto, isso está mudando porque cada vez mais pessoas, em todo o mundo, estão decidindo permanecer solteiras. À medida que nos tornamos mais, podemos transformar a narrativa sobre o que significa ser solteiro. E todos nos sentiremos melhor em relação a isso.

Na verdade, se você for como eu, pode até sentir orgulho de ser solteiro.

•                        Mas, às vezes, pode ser difícil sentir esse orgulho, quando vemos até estudos científicos argumentando que são as pessoas casadas que se declaram "mais felizes" na velhice.

DePaulo - O problema é que esses estudos estão desatualizados.

Estudos recentes que acompanharam pessoas solteiras mostram que, à medida que elas passam da meia-idade para as décadas posteriores — aproximadamente a partir dos 40 anos —, são cada vez mais felizes.

Isso acaba com o estereótipo de solteiros tristes que choram sozinhos em casa enquanto tomam sorvete. Na verdade, os solteiros já são felizes e, com o tempo, ficam ainda mais felizes.

•                        E o que os estudos revelam sobre as razões pelas quais as pessoas solteiras são mais felizes?

DePaulo - As pesquisas mostram que quando as pessoas se casam, elas tendem a ficar mais isoladas: ligam menos para os amigos, passam menos tempo com os pais e criam uma espécie de bolha.

Em contrapartida, as pessoas solteiras tendem a permanecer conectadas com os amigos, familiares e outras pessoas importantes em suas vidas. Esta é uma das razões pelas quais as pessoas solteiras tendem a ser mais felizes com o tempo.

Além disso, elas sabem como viver solteiras: estabelecem seus próprios lares, cultivam seus relacionamentos e têm a liberdade de serem elas mesmas.

Eu chamo essas pessoas de "solteiras de coração". São aquelas que prosperam e se sentem felizes graças ao fato de serem solteiras, e não apesar disso.

•                        Você fala de pessoas que são "solteiras de coração", quais são as características para identificar uma pessoa solteira de coração?

DePaulo - As pessoas solteiras de coração desfrutam da sua liberdade e usam seu tempo sozinhas para refletir, relaxar, ser criativas ou desenvolver sua espiritualidade. Elas não têm medo de ficar sozinhas, o que as protege, em grande parte, de se sentirem solitárias.

Isso contrasta com o estereótipo de que pessoas solteiras são solitárias. Claro, alguns solteiros se sentem solitários, assim como muitas pessoas casadas, mas os solteiros, no fundo, valorizam a solidão como algo positivo.

•                        Em inglês, há dois termos diferentes para falar sobre solidão: solitude e loneliness. Esta diferenciação pode nos ajudar a entender por que é que pode haver pessoas solteiras que se sentem felizes, e pessoas casadas que se sentem sozinhas?

DePaulo - Claro. A solidão a que loneliness se refere acontece quando você não tem a quantidade ou qualidade de interação social que deseja, e se sente infeliz com isso.

Por outro lado, solitude se refere à solidão como uma escolha, ou o tempo a sós, que pode ser muito enriquecedor. Muitas pessoas, principalmente as solteiras, valorizam esse tempo para refletir ou se dedicar ao que mais gostam sem se sentirem julgadas.

•                        Isso me leva a perguntar sobre aquelas pessoas que, mesmo estando em relacionamentos amorosos, ainda se identificam como "solteiras de coração". Como é que isso funciona?

DePaulo - Geralmente, estas pessoas costumam preferir relacionamentos menos convencionais: talvez vivam em casas separadas ou tenham espaços independentes dentro do mesmo lar.

Não compartilham tanto as finanças, e mantêm um equilíbrio entre o tempo em casal e o tempo para os amigos ou para si mesmos.

Desta forma, elas podem aproveitar os benefícios de um relacionamento amoroso sem abrir mão de sua identidade como "solteiros de coração".

•                        Você mencionou que foi solteira a vida toda. Poderia compartilhar um pouco da sua experiência?

DePaulo - Tenho 71 anos e sempre fui solteira. Quando era jovem, na casa dos 20 anos, embora gostasse da minha vida de solteira, achava que acabaria mudando de opinião porque isso era o esperado.

Mas, com o tempo, percebi que a vida de solteira era para mim.

Depois de aceitar isso, você pode investir totalmente na sua vida de solteiro: comprar uma casa, buscar seus interesses e viver plenamente.

•                        Em sociedades como as da América Latina, onde há muita pressão para que as pessoas se casem, que conselho você daria aos homens e mulheres solteiros que sentem que a sociedade está contra eles?

DePaulo - Meu conselho é que se sintam orgulhosos. Se você é solteiro e quer um parceiro, mas não se contenta com qualquer um, sinta-se orgulhoso de seus padrões.

Se, por outro lado, você gosta da vida de solteiro e resistiu à pressão social para se casar, sinta-se orgulhoso de ser fiel a si mesmo.

Além disso, lembre-se de que à medida que o número de solteiros aumenta ao redor do mundo, as atitudes sociais em relação à vida de solteiro vão continuar mudando.

 

•                        Os efeitos nocivos do julgamento social contra solteiros

Perguntar por que alguém "ainda" é solteiro e confortá-lo dizendo que "irá encontrar alguém em breve" pode parecer uma forma atenciosa e até sensível de procurar saber como estão seus amigos solteiros. Mas essas frases simples fazem parte do "constrangimento por ser solteiro" e provavelmente trazem mais danos do que ajuda.

O constrangimento por ser solteiro é o resultado do preconceito contra as pessoas que não se casaram: que elas devem ser tristes e solitárias por não terem parceiros; que estão ativamente procurando por alguém, mas ainda não encontraram um par; e que deve haver algo de errado com elas, que está fazendo com que vivam sozinhas.

Todos esses estereótipos são causados pelas pressões para adequar-se a padrões sociais definidos: conheça o parceiro, case-se, tenha dois ou três filhos e um cachorro — e pronto, você reuniu todos os ingredientes de que precisa para uma vida feliz.

Embora as pessoas venham reavaliando constantemente essas normas sociais há décadas, pesquisas recentes indicam que o constrangimento por ser solteiro ainda é grande. Dados de uma pesquisa do site de relacionamentos Match, analisados pela BBC, demonstram que, entre mil adultos britânicos solteiros pesquisados, 52% relataram sofrer constrangimento por serem solteiros "desde o início da pandemia", provavelmente devido ao maior peso de saber com quem podemos contar durante os lockdowns.

E, muito embora 59% tenham afirmado que estavam "satisfeitos com seu status de relacionamento", eles ainda eram alvo de questionamentos incômodos.

A persistência desses preconceitos contra os solteiros não é apenas constrangedora, mas também ultrapassada em muitos países.

"A vida de solteiro era considerada um período de transição, quando as pessoas passavam o tempo até que se casassem, ou se casassem de novo", segundo Bella DePaulo, autora do livro Singled Out: How Singles are Stereotyped, Stigmatized and Ignored, and Still Live Happily Ever After (publicado em português com o título "Segregados: como os solteiros são estereotipados, estigmatizados e ignorados e vivem felizes"). Mas agora, DePaulo afirma que os americanos passam mais tempo da sua vida adulta solteiros do que casados.

Ela indica que, em 1970, segundo dados do censo dos Estados Unidos, 40% dos lares americanos consistiam de casais casados e seus filhos, enquanto 17% viviam sozinhos como solteiros. E, em 2012, 27% dos lares americanos consistiam de solteiros e apenas 20% eram compostos de pais e filhos.

Mas, mesmo com essas mudanças nas estatísticas, ainda fica claro, observando tanto as pesquisas quanto episódios isolados, que as pessoas que não têm relacionamentos amorosos continuam a enfrentar dificuldades com seus amigos e parentes casados — e também com eles próprios. Ainda que os solteiros pareçam escolher e abraçar cada vez mais seu status de relacionamento, a pressão para encontrar pares não está necessariamente desaparecendo.

Mas pode haver pelo menos algum progresso, já que o percentual crescente de pessoas solteiras na população pode vir a prevalecer sobre a estigmatização.

<><> Os danos causados pelo constrangimentos feitos aos solteiros

Segundo a psicoterapeuta Allison Abrams, de Nova York, nos Estados Unidos, o constrangimento por ser solteiro consiste em "condenar alguém por não ter parceiro e não se adequar às expectativas da sociedade... de casar-se com uma certa idade". Por isso, as outras pessoas tratam os solteiros "de forma diferente", segundo ela.

"As pessoas tendem a achar que você está solitário e aborrecido quando é solteiro", segundo Ipek Kucuk, especialista em namoros do aplicativo Happn.

O estudo apresentado pelo Match perguntou quais as "frases constrangedoras" mais comuns ouvidas pelos solteiros. E, dentre os participantes, 35% responderam "você logo vai encontrar alguém", enquanto 29% ouviram "você deve ser tão solitário" e 38% relataram que as pessoas geralmente têm pena da sua situação.

DePaulo afirma que os mitos que envolvem os solteiros incluem a noção de que os casais casados têm um domínio especial da vida que os solteiros não têm; que as vidas dos solteiros são "trágicas"; e que ser solteiro significa ser egoísta. E, na realidade, existem pesquisas que sustentam que estes são mitos, incluindo um estudo alemão de 2018 que indica que os estereótipos sobre os solteiros infelizes e casais realizados não são corretos.

Mas os estereótipos sobre os solteiros não são apenas um erro — eles podem ter consequências prejudiciais.

A psicoterapeuta Abrams afirma que o constrangimento internalizado pelo comportamento social com relação aos solteiros pode prejudicar sua autoimagem. Mesmo quando a pessoa solteira não é constrangida pelos seus amigos e parentes, não atingir grandes objetivos de vida como o casamento e os filhos pode trazer prejuízos — especialmente para aqueles que procuram ativamente por um parceiro — porque é isso que a sociedade costuma esperar das pessoas.

"Muitas vezes, presenciei essa situação como uma das causas da depressão", segundo Abrams. Um "roteiro" normalizado para a vida bem sucedida pode até forçar pessoas que estão felizes como solteiras a reconsiderar esse posicionamento e buscar algo que tenham razoável certeza de que não querem, apenas para poder encaixar-se nas normas culturais.

O constrangimento por ser solteiro vem de muitas fontes, além de nossos amigos e parentes intrometidos. Os governos também têm sua participação, oferecendo diversos benefícios às pessoas casadas legalmente dos quais os solteiros não podem beneficiar-se.

Algumas pessoas acreditam que isso envia uma mensagem sobre a "forma certa" de se portar na vida, servindo de reforço positivo para os casados e facilitando para que os solteiros internalizem a ideia de que estariam vivendo a vida adulta de forma errada.

DePaulo salienta, por exemplo, que, nos Estados Unidos, um funcionário pode acrescentar o seu cônjuge ao plano de saúde, mas os solteiros não podem fazer o mesmo para pessoas importantes, como seus irmãos ou amigos próximos. Os casais e as famílias também conseguem privilégios não disponíveis para os solteiros em outros campos, que vão desde descontos em férias até locais de trabalho que concedem benefícios especiais para as pessoas que vivem em famílias nucleares.

<><> As 'solteironas'

Como todo estigma cultural, o constrangimento por ser solteiro não é distribuído igualmente. As mulheres tendem a sofrer mais e algumas culturas enfatizam o casamento e os filhos mais do que outras.

Tome-se, antes de tudo, a forma como as pessoas se referem às mulheres solteiras, em comparação com os homens. Em português, por exemplo, o termo "solteirona" tem sentido muito mais pejorativo que sua forma no masculino, "solteirão".

Já na língua inglesa, a palavra "spinster" (equivalente a "solteirona") surgiu no final da Idade Média para designar as mulheres que teciam lã como profissão. A maioria delas não era casada. Era mais fácil para elas conseguir esse trabalho considerado inferior, já que os empregos mais procurados geralmente eram reservados para as mulheres casadas — que, com seus maridos, tinham condições de comprar os materiais necessários para trabalhos mais respeitados.

Já os homens solteiros são chamados em inglês de "bachelors", geralmente retratados como engraçados, potencialmente charmosos (quando não de má reputação), despreocupados e vivendo o melhor de suas vidas — características positivas que remontam aos Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer, do final do século 14.

"Solteirona" ganhou conotação negativa ao longo do tempo, depreciando as mulheres solteiras (e jovens) na cultura popular, como no filme e no livro O Diário de Bridget Jones (a personagem-título tem pouco mais de 30 anos de idade e um emprego estável em Londres, mas preocupa-se com sua situação de solteirona, ou "spinster").

"Segundo a sabedoria convencional — que não é sábia, nem precisa —, as mulheres se preocupam mais com o casamento que os homens", segundo DePaulo. "Por isso, acho que as mulheres solteiras são submetidas com mais frequência a perguntas irritantes como 'você está namorando?'"

Já Abrams relembra que mais clientes mulheres compartilham experiências que causaram constrangimento por serem solteiras que seus clientes homens, mas ressalva que a maior parte dos seus clientes é composta de mulheres.

"Os homens solteiros também podem ser tratados de forma depreciativa e arrogante", acrescenta DePaulo, em que as pessoas os consideram infantis, incapazes de cuidar de si próprios ou "obcecados por sexo".

Variações culturais também podem influenciar o constrangimento dos solteiros. Profissionalmente, Abrams conheceu clientes com certas origens, como famílias da Coreia, China e Índia, que tendem a ser mais constrangidos pelos familiares por serem solteiros, bem como alguns de seus clientes que se mudaram do centro dos Estados Unidos para Nova York.

Essas culturas tendem a dar mais importância aos papéis de gênero mais tradicionais em torno do casamento e não cumprir com essas tradições pode parecer muito pouco convencional. "Ouvi de um [cliente] algo como [sua] família tem vergonha porque eles não tiveram um filho com 30 anos de idade ou até menos", relembra Abrams.

<><> O 'poder dos números'

O significado de ser solteiro está mudando. Alguns especialistas acreditam que essas mudanças comportamentais e culturais poderão ajudar a normalizar os solteiros — e talvez reduzir o impulso de julgar os que não têm parceiros.

Nos últimos anos, personalidades influentes das redes sociais e celebridades tradicionais vêm falando com orgulho sobre serem solteiros. A atriz Emma Watson, por exemplo, descreveu seu status em público como "parceira de si mesma", incentivando outras pessoas a considerar a ausência de um parceiro romântico como positiva e não negativa.

"Quanto mais pessoas aceitarem sua situação de solteira, acho que mais pessoas se sentirão liberadas para fazer o mesmo", afirma Abrams.

A pesquisa de outubro de 2021, conduzida pelo aplicativo Bumble e analisada pela BBC, demonstrou que 53% dos mais de 8.500 usuários do aplicativo pesquisados no Canadá, França, Alemanha, Índia, México, Filipinas, Austrália, Reino Unido e EUA "perceberam que não há problema em ficar solteiro por algum tempo", graças à covid-19.

Além disso, desde o início da pandemia, muitos solteiros relataram sentimentos e desdobramentos positivos sobre seu status de relacionamento. Segundo a pesquisa do site de relacionamentos Match, 42% afirmam que "gostaram" de ser solteiros durante a pandemia.

Mas essa estatística indica que os outros 58% pesquisados não gostaram dessa situação. Na verdade, o isolamento forçado pela pandemia prejudicou muitos solteiros e aumentou o constrangimento para alguns. O Match indicou que 37% dos solteiros pesquisados afirmaram terem sido mais questionados sobre sua vida amorosa por "amigos e parentes preocupados".

De fato, Abrams sugere que o constrangimento por ser solteiro "ainda é bastante desenfreado", mesmo que os números cada vez maiores de solteiros em países como os Estados Unidos indiquem uma possível redução desse comportamento.

Mas os especialistas ainda esperam que essas mudanças culturais continuem a fazer evoluir o julgamento dos solteiros. DePaulo chama esse processo de "o poder dos números". Segundo ela, "quase toda vez que o Escritório do Censo [dos Estados Unidos] divulga suas últimas estatísticas, as conclusões indicam maior número e proporção de pessoas solteiras".

"Quando uma grande parcela da população não está casada — nos Estados Unidos, perto da metade —, fica mais difícil insistir que há algo de errado com todos eles", conclui ela.

 

Fonte: BBC News Mundo