quinta-feira, 27 de março de 2025

40 anos de democracia: Os desaparecidos da ditadura

Durante 21 anos — de 1964 a 1985 —, o Brasil viveu sob um regime ditatorial organizado pelas Forças Armadas. Uma era marcada pela normalização da tortura a opositores políticos, censuras e práticas de terrorismo de Estado. Um período onde apenas a oposição consentida poderia existir, limitada ao antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) — partido que inspirou a criação do MDB de hoje em dia.

Fernando Santa Cruz e Jayme Miranda, cujas histórias o Correio traz, foram dois dos milhares de militantes que desapareceram lutando contra a repressão.

A batalha pelo reconhecimento dos desaparecidos retornou aos holofotes com o lançamento do filme Ainda Estou Aqui, que conta a história da família de Rubens Paiva durante o regime, e ganhou um Oscar.

·        Casa da Morte

Fernando Augusto de Santa Cruz era servidor público e estudante de direito na Universidade Federal Fluminense (UFF) no início dos anos 1970, como conta seu filho, Felipe Santa Cruz. Junto de sua família, Fernando estava inconformado com a ditadura e se juntou à resistência contra o regime por meio da Juventude Católica, mas nunca apoiou a luta armada, ao contrário do que foi dito por Jair Bolsonaro em 2019.

No carnaval de 1974, em 23 de fevereiro, o estudante saiu de Copacabana, no Rio de Janeiro, para encontrar Eduardo Collier, um amigo ligado à resistência. Fernando, que já sabia do risco, deixou avisado à família que se não retornasse até as 18h, seria porque teria sido pego pelos militares. A família nunca mais o viu.

"Minha avó sempre morou na mesma casa enquanto teve forças, esperando meu pai voltar. Acho que a dor de cada um é diferente. Minha família liderou o comitê de anistia, meus tios, a própria luta da OAB pela anistia. Sempre tivemos uma atuação politicamente articulada na resistência, e, claro, sempre houve dor. A dor nunca é indissociável da própria luta política", observa Felipe.

O filho de Fernando conta que existem depoimentos da época, prestados pelo ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/ES) Claudio Guerra, confirmando os assassinatos de Santa Cruz e Collier. Ambos teriam sido levados para a Casa da Morte de Petrópolis, assassinados e depois tiveram seus corpos incinerados em uma usina — pertencente a um senador da Arena, partido que apoiava o regime — em Campos dos Goytacazes.

·        Tortura

O advogado e jornalista maceioense Jayme Amorim de Miranda, secretário de organização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), vivia no Rio de Janeiro desde 1965 com a esposa, Elza, e seus quatro filhos, porém, clandestinamente. O militante precisou fugir de Alagoas devido à perseguição que sofria, já tendo sido preso por nove meses em sua cidade natal.

Em 4 de fevereiro de 1975, segundo relatos de Thyago Miranda, neto de Jayme, o pecebista foi informado de que a gráfica do partido, onde ele trabalhava, havia explodido. Ele foi ao local para tentar recuperar documentos da oposição clandestina, com o intuito de fugir do país, quando foi capturado pelos militares. Jayme Miranda nunca mais voltou para casa, e seus restos mortais nunca foram encontrados.

Thyago comenta que, apesar de constantemente escrever cartas ao presidente Ernesto Geisel e buscar ajuda na Ordem dos Advogados do Brasil, Elza não possuía nenhuma informação sobre o paradeiro de Jayme. Apenas em 1992, em uma entrevista do ex-agente Marival Chaves para a revista Veja, que a família ouviu, pela primeira vez, o que havia acontecido com Miranda.

"(Segundo Marival Chaves) Jayme foi levado do Rio de Janeiro a São Paulo, para uma antiga boate chamada Querosene, onde foi torturado por 20 dias. Como ele se negava a falar, os torturadores o queimaram e depois o mataram com uma injeção utilizada para matar cavalos. O corpo foi esquartejado e jogado no rio em Avaré, mas a cidade do assassinato foi Itapevi", contou o neto do militante.

A história foi confirmada pelo jornalista Marcelo Godoy, em seu livro Cachorros, publicado em 2024. O livro trouxe, ainda, mais detalhes desconhecidos pela família. Segundo a apuração do jornalista, Jayme foi traído por Severino Theodoro de Mello, um infiltrado no Comitê Central do PCB — que recebia pagamentos do Exército e foi responsável, também, pela queda de vários membros do Comitê.

·        Pressão internacional

O doutor em história e professor da Universidade de Brasília (UnB) Mateus Gamba relembra que a estratégia do regime era sempre a de negar os desaparecimentos, alegando, em alguns casos, que essas pessoas haviam sido mortas por seus próprios companheiros, em supostos atos de “justiçamento”.

“À medida que os desaparecimentos se acumulavam, a pressão internacional sobre o Brasil aumentava. Familiares de vítimas buscaram organismos internacionais para denunciar as violações de direitos humanos. O governo militar, pressionado, ora negava qualquer responsabilidade, ora alegava que os desaparecidos haviam abandonado suas famílias para ingressar em grupos clandestinos”, ressalta o professor.

O discurso oficial, afirmou Gamba, tentava deslegitimar os opositores, rotulando-os como terroristas. Assim, o regime justificava as prisões arbitrárias e execuções sumárias. Esse argumento, segundo o historiador, pode ser visto até hoje em alguns setores, minimizando ou negando os atos cometidos durante a ditadura. “Os militares no Brasil nunca pediram desculpas às suas vítimas”, lamenta.

·        Lei dos Mortos e Desaparecidos

Os desaparecidos só tiveram suas mortes confirmadas em 1995, a partir da Lei nº 9.140 (Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos), quando foi criada a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). A comissão tinha o objetivo de reconhecer como mortas as pessoas desaparecidas, em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas.

Relatório Final de Atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, de 2022, afirma que, inicialmente, a lei reconheceu 135 pessoas como mortas e desaparecidas por razões políticas. Nas duas décadas seguintes, mais 288 pessoas foram reconhecidas pela comissão.

Anos mais tarde, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em novembro de 2011, comprovou a morte e o desaparecimento de 434 pessoas durante todo o regime ditatorial, mas, segundo Luciana Lombardo, chefe de divisão do Memórias Reveladas — projeto do Arquivo Nacional que reúne e divulga documentos sobre a ditadura militar no Brasil —, a própria CNV estima mais de 10 mil vítimas da ditadura “sem medo de exagerar, e ainda é uma subnotificação”.

“Os 434 são os casos que estão oficialmente reconhecidos, o que não quer dizer que a própria CNV não tenha descoberto, nas suas pesquisas com a Comissão Camponesa da Verdade, por exemplo, que a estimativa é de mais de 1,3 mil camponeses mortos e desaparecidos. Junto aos pesquisadores dos povos indígenas, a estimativa é de mais de 8,3 mil indígenas desaparecidos. Então, essa conta não representa o universo total das vítimas da ditadura e dos desaparecimentos forçados no Brasil”, relata Luciana.

A especialista afirma que essas mortes eram frequentemente vistas como parte da violência cotidiana no Brasil, mas que são, sim, vítimas da ditadura. Ela complementa que, em relação ao número consolidado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos, o dado mais recente é de 434 mortos, segundo o relatório do CNV de 2014, mas que “isso não significa que não haja outras vítimas”.

·        Memória e justiça

O cientista social e doutorando em história da ditadura pela Fundação Getulio Vargas (FGV) Yagoo Moura destaca que antes de os militares deixarem o poder em 1985, eles criaram condições para não serem responsabilizados pelas práticas de violação aos direitos humanos cometidas durante os 21 anos de ditadura.

Em 1979, observa Moura, foi criada a Lei da Anistia, em meio a uma mobilização social em prol da anistia dos perseguidos políticos, que contava com organizações como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) — que, de início, apoiou os militares, mas, depois, tornou-se opositora do regime — e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Porém, o historiador aponta que a resposta do regime foi uma “autoanistia, uma forma de se eximir das responsabilidades dos atos praticados”.

Ele explica que o que a Lei de Anistia prevê é perdoar crimes políticos e crimes conexos a estes. “A interpretação dada para salvaguardar os militares foi de que o crime conexo era o seguinte, o sujeito cometeu um crime político, qualquer que fosse ele. Ele era preso, torturado e morto. Então, quem torturou, matou e desapareceu com esse preso está anistiado, porque é um crime conexo. Essa é a interpretação que se deu e que foi validada durante o regime democrático. O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, para não soar mal na caserna, foi por manter esse entendimento, que contraria todos os tratados internacionais sobre direitos humanos”, analisa.

Mateus Gamba acrescenta que, apesar de a Lei da Anistia ter favorecido os militares, ela trouxe, em um primeiro momento, a libertação de presos políticos cujos crimes estavam relacionados à opinião e opositores exilados.

Gamba concorda que a decisão do STF, em 2010, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, representou “um grande retrocesso para a Justiça de transição no Brasil”, impedindo a responsabilização criminal dos agentes do Estado envolvidos em torturas, assassinato e desaparecimentos forçados.

Ele afirma que, no Brasil, há avanços em termos de memória e verdade, mas não em justiça. Até hoje, pontua, os responsáveis por crimes cometidos na ditadura não foram punidos, mas recentemente, voltou-se a discutir a possibilidade de responsabilizar criminalmente aqueles que cometeram desaparecimentos forçados.

“A justificativa jurídica para isso é que o desaparecimento é um crime continuado, ou seja, persiste até que o paradeiro da vítima seja esclarecido”, ressalta o historiador, em referência ao Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1501674, com relatoria do ministro Flávio Dino, no STF, que visa analisar se a Lei da Anistia alcança os crimes de ocultação de cadáver cometidos durante a ditadura militar e que permanecem até hoje sem solução.

¨      Anistia e negacionismo histórico. Por Lucas Pedretti

Há poucos dias, este jornal publicou artigo em que um general do Exército defendia a anistia como um instrumento político e jurídico fundamental na história brasileira. A partir de exemplos históricos que demonstrariam como as sucessivas anistias teriam aberto caminho para uma solução pacífica dos conflitos, o general defendeu, então, a anistia aos acusados pelo 8 de Janeiro.

O texto não surpreende. Afinal, anistias foram instrumentos historicamente usados por oficiais militares para garantir a própria impunidade. Também produziram o esquecimento coletivo e a própria naturalização de seus crimes. Aliás, o mesmo general, ministro da Saúde de Bolsonaro, até hoje não foi responsabilizado pela tragédia que vivemos naqueles anos, a despeito de ter sido indiciado pela CPI da Covid do Senado Federal.

O mantra da caserna de um Duque de Caxias "pacificador" ignora uma folha corrida de massacres, da Guerra do Paraguai às rebeliões regenciais. O espírito de "reconciliação" de Caxias talvez só tenha existido frente aos escravocratas que lideraram a Farroupilha, destinando aos Lanceiros Negros o Massacre de Porongos. Ali, sua ação contrastou com a resposta dada pelo militar às revoltas populares como a Cabanagem e a Balaiada, que resultou em dezenas de milhares de mortos.

A ideia de que a repressão à "Intentona" Comunista de 1935 foi a forma de "evitar um maior esgarçamento do tecido social" chega a ser inacreditável. Em 1937, uma grande fake news produzida por um tal capitão Mourão (não o amigo do general, mas Olímpio Mourão Filho) fomentou o anticomunismo do Exército para legitimar o golpe e a ditadura do Estado Novo, com brutal repressão. A anistia veio quase uma década depois, não sem antes deixar um enorme saldo de torturados e mortos. O exemplo também ignora que o Partido Comunista ficou proscrito por quase todo o século 20. Será que o general aceitaria igual destino para seu atual partido, em nome da "reconciliação nacional"?

Por fim, a ideia de que a anistia de 1979 foi ampla, geral e irrestrita é uma falsificação histórica das mais grosseiras. Essa foi a palavra de ordem construída pela sociedade civil a partir de meados dos anos 1970, por meio da qual os Comitês Brasileiros pela Anistia demandavam não apenas a volta dos exilados e a liberdade dos presos políticos, mas também memória, verdade, reparação e, principalmente, justiça em relação aos mortos e desaparecidos. Figueiredo, o último dos generais ditadores, veio à público repetidas vezes afirmar que os militares jamais aceitariam uma anistia ampla, geral e irrestrita. Mas, ao notar que a luta crescia na sociedade, a ditadura mudou de estratégia. Ao invés de recusar a demanda, ela impôs os próprios termos para a anistia, invertendo completamente os sentidos daquela bandeira popular. 

A anistia ampla, geral e irrestrita, que deveria ser sinônimo de memória e justiça, passou a ser a anistia do "esquecimento" e da "reconciliação", que eram, na verdade, sinônimos de impunidade. De fato, esse é o sentido fundamental da lei imposta pelo regime em 1979, por meio de um Congresso ainda sob seu estrito controle: garantir que os torturadores e assassinos de Rubens Paiva e de milhares de outros brasileiros saíssem impunes pelos crimes que cometeram, ao mesmo tempo em que mantinha excluídos dos benefícios diversos militantes ainda presos.

O negacionismo que já conhecíamos em relação às vacinas transforma-se em negacionismo histórico. E reforça o diagnóstico de que nas escolas militares se ensina mitologia ao invés de historiografia. Em verdade, esse negacionismo serve para esconder que anistias tiveram como efeito, ao longo da história, deixar livre o caminho para que golpistas voltassem a atentar contra a democracia. Caso militares golpistas tivessem sido responsabilizados na primeira metade do século 20, possivelmente não teríamos vivido uma ditadura de mais de 20 anos.

E caso os responsáveis por essa ditadura não tivessem sido anistiados em 1979, o deputado federal cujo ídolo é um torturador dificilmente teria chegado à Presidência da República. Assim, poderíamos ter evitado muitos episódios que, ao longo dos últimos anos, demonstraram que a farda tem sido vista, pelos próprios militares, como uma garantia de não responsabilização.

Estamos, portanto, diante de uma encruzilhada histórica. Ou rompemos com o ciclo de impunidade que marca nossa história ou estaremos permanentemente ameaçados pelo risco do retorno ao autoritarismo, com a ascensão de torturadores e negacionistas ao poder.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

Brasil está abandonando suas promessas climáticas?

Governo Lula manda sinais contraditórios ao ser anfitrião da conferência do clima da ONU em novembro e defender ampliação da produção de petróleo, inclusive em áreas ambientalmente sensíveis, como a foz do rio Amazonas.

Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou ao cargo em 2023, os ambientalistas, em geral, respiraram aliviados. Após quatro anos de desmonte ambiental promovido por Jair Bolsonaro, o novo líder chegara com a promessa de proteger o clima.

Mas o alívio se converteu em decepção. A poucos meses de o Brasil sediar a 30ª conferência do clima da ONU (COP30), Lula está em campanha pela exploração de petróleo na foz do rio Amazonas, e seu governo aprovou uma cooperação com a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).

"O mundo deu ao Brasil um mandato para liderar o debate sobre o clima em 2025", afirma Claudio Angelo, coordenador de política internacional do Observatório do Clima, rede que reúne mais de cem organizações voltadas para a agenda climática. "Dobrar a expansão do petróleo é uma traição a esse mandato", conclui.

  • Dobrando a aposta?

O Brasil tem vastas reservas de petróleo e figura como o oitavo maior exportador global – atrás de países como Arábia Saudita, Rússia e Estados Unidos. Mas o governo quer aumentar a participação do país nesse mercado e chegar ao quarto lugar.

"Não devemos nos envergonhar de sermos produtores de petróleo", disse o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, ao anunciar os planos do país de ingressar na Opep+. "O Brasil precisa crescer, se desenvolver e criar renda e empregos."

A Opep é um cartel que reúne os principais países produtores de petróleo, incluindo Irã, Iraque, Nigéria e Arábia Saudita, para coordenar a produção de petróleo e manter o mercado estável. Outros grandes produtores não são membros plenos, mas concordam em cooperar com essas nações ao fazer parte da Opep+, como é o caso da Rússia, um dos maiores produtores globais.

Numa recente entrevista à imprensa, o embaixador André Correa do Lago, presidente da COP30, disse que aderir à Opep+ daria ao país a chance de se envolver em conversações sobre a transição para além dos combustíveis fósseis.

Embora o Brasil não seja um membro pleno da Opep, os ambientalistas criticaram a aproximação, argumentando que ela consolida as ambições petrolíferas do país.

Lula alegou que as receitas do petróleo são necessárias para ajudar a financiar uma transição para as energias verdes.

Correa do Lago usou o mesmo argumento, complementando que é mais fácil e mais barato tomar dinheiro emprestado para investir em projetos de petróleo do que em outros projetos mais sustentáveis. "O dinheiro que você perde ou ganha com a exploração de petróleo pode ser usado internamente para projetos que sejam bons para a transição [para energia limpa]", disse.

  • O Brasil abraçou as fontes renováves?

Ilan Zugman, diretor administrativo para a América Latina da ONG 350.org, refuta o argumento do governo. Ele diz que não há nenhuma política nacional para uma mudança mais efetiva para as energias renováveis e que, mesmo que houvesse, o dinheiro para essa transição poderia vir de outras fontes.

"Todos os anos, o Brasil dá bilhões e bilhões de dólares para subsidiar o setor de combustíveis fósseis. Gostaríamos de ver o Brasil transferindo alguns desses subsídios dos combustíveis fósseis para os renováveis", disse à DW.

De acordo com um relatório da instituição científica e tecnológica sem fins lucrativos INESC P&D Brasil, os subsídios federais para a produção e o consumo de petróleo, gás e carvão atingiram cerca de 14,6 bilhões de dólares (R$ 112,4 bilhões) em 2022. Esse valor é cinco vezes maior do que o investido em energias renováveis.

"O dinheiro existe, mas não está sendo colocado nos lugares certos", afirma Zugman. "E, é claro, ainda nos falta a vontade política, a coragem de tomar algumas decisões ousadas e começar a transferir esses recursos para uma energia que possa melhorar nossa situação de emissões de carbono no mundo."

  • Lula é um líder climático?

O Brasil é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, sendo que o desmatamento e a mudança no uso da terra na região amazônica são responsáveis pela maior parte das emissões do país. A Amazônia é a maior floresta tropical do mundo e um importante sumidouro de carbono.

Após sua vitória eleitoral em 2022, Lula prometeu controlar a extração ilegal de madeira, a mineração e o desmatamento de áreas para atividades como fazendas de gado e de soja, que se tornaram comuns durante o governo de seu antecessor.

Nos primeiros seis meses do mandato de Lula, o desmatamento na Amazônia brasileira caiu em cerca de um terço e continuou a diminuir. O presidente se comprometeu a acabar com a derrubada de árvores na floresta até o fim da década.

A candidatura do país para sediar a COP30 em Belém foi vista como mais uma prova do compromisso do governo com o clima, assim como a apresentação das últimas metas climáticas – exigência dos signatários do acordo climático de Paris, que visa limitar o aumento da temperatura global a 1,5 grau.

O Brasil apresentou a meta de, até 2035, cortar entre 59% e 67% as emissões em relação aos níveis de 2005. "Francamente, isso não é tão ambicioso", disse Angelo, do Observatório do Clima. "Não é nem de longe compatível com 1,5 [grau]."

Os objetivos também não incluem metas para as exportações de petróleo, cuja queima não é contabilizada nas emissões do Brasil, mas que provoca um impacto global.

Pesquisadores do SEEG, uma das principais plataformas de monitoramento de gases de efeito estufa na América Latina, afirmam que, se o Brasil explorasse as reservas projetadas, as emissões resultantes da queima anulariam os ganhos obtidos com a redução do desmatamento da Amazônia.

  • Impactos das mudanças climáticas

O Brasil tem enfrentado algumas das consequências mais devastadoras da emergência climática. No ano passado, o país passou pela pior seca já registrada. Os incêndios florestais devastaram cerca de 30,8 milhões de hectares em 2024, uma área maior do que a Itália.

O World Weather Attribution, um coletivo de cientistas que investiga a conexão entre eventos climáticos extremos e mudanças climáticas, detectou que os incêndios florestais que queimaram as áreas úmidas do Pantanal em junho de 2024 se tornaram pelo menos quatro vezes mais prováveis e 40% mais intensos como resultado das mudanças climáticas causadas pelo homem.

"As pessoas [no Brasil] estão literalmente sentindo o calor", disse Angelo. "Isso não passa despercebido na Presidência. Eles sabem o que está em jogo. Mas, no momento, a mistura de questões domésticas e geopolíticas está tornando a agenda muito incerta."

 

Fonte: DW Brasil

 

Existem ultraprocessados “menos piores”?

Poderia ser um debate saudável em vários sentidos. Bom para a ciência. Bom, diretamente, para a saúde das pessoas. Reportagens sobre a existência de “ultraprocessados menos piores” foram se multiplicando nos últimos meses. Matérias e artigos no New York Times, no Washington Post, no The Atlantic, no UOL… 

Será que todos os ultraprocessados são tão ruins?

Afinal, todo ultraprocessado é ruim?

Quão ruim é um ultraprocessado? 

As perguntas oscilam em torno de um mesmo tom. Afinal, será que no meio de uma inundação de produtos péssimos, a gente consegue encontrar categorias particularmente benéficas ou, ao menos, razoáveis? Tem como salvar alguém nesse navio? 

A exemplo dos produtos que buscam discutir, esses textos parecem muito diversos entre si, mas não são. O que está em jogo é a tentativa de transmitir uma mensagem de que está tudo bem. De que quase nada precisa mudar no nosso sistema alimentar. 

Ao mesmo tempo, o surgimento desse debate é sinal de que não dá para ignorar o elefante na sala. Sinal de que o avanço das evidências científicas mostrando a ligação entre ultraprocessados e impactos terríveis para a saúde soterrou o negacionismo raiz, tão forte lá no comecinho da década. 

Todo o zumzumzum busca endereçar uma questão legítima: e agora? Se sabemos que os ultraprocessados são um problema dos grandes, o que fazer? É o próprio aumento da percepção pública negativa sobre esses produtos que dá combustível a essa discussão. Mas, na minha opinião, ficar buscando atenuantes não resolve – e pode atrapalhar. 

  • Entre o conformismo e o negacionismo soft

Via de regra, os pesquisadores responsáveis por artigos que estimularam essa discussão poderiam ser divididos em duas vertentes. Aqueles que admitem que os ultraprocessados existem – e são um problema –, mas não concebem que a alimentação humana possa prescindir desses produtos. E aqueles que migraram do negacionismo raiz para um negacionismo soft

É possível notar que, por bem intencionados que sejam os integrantes do primeiro grupo, muitas vezes eles estão oferecendo uma nova rota de fuga à acomodação dos interesses corporativos. E esse é um aspecto inescapável da discussão: desde a criação da Classificação NOVA, e com força crescente à medida que a teoria avançava, as críticas estiveram entrelaçadas aos interesses de corporações. 

Uma brevíssima recapitulação: integrantes do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da Universidade de São Paulo, criaram há 15 anos uma classificação que divide os alimentos de acordo com o grau e o propósito do processamento. 

Em vez de se concentrar na tradicional divisão por nutrientes, eles sugeriram olhar para aquilo que poderia estar mudando num país como o Brasil, onde os casos de doenças crônicas (diabetes, hipertensão, enfermidades cardiovasculares) vinham crescendo. Foi com base nisso que criaram quatro grupos. O mais inovador e estridente deles é o grupo 4, dos ultraprocessados.

O termo “alimentos processados” existia desde os anos 1960 para agrupar tudo o que era industrializado. Mas, vendo que o grau e o propósito do processamento de um macarrão era bem diferente do que acontecia com um Miojo, eles separaram o joio do trigo. Ou melhor: os alimentos processados desses outros. E criaram o termo ultraprocessados.

Ultraprocessados podem ser comidas e bebidas. Não são propriamente alimentos, mas formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos integrais. Essas fórmulas incluem açúcar, óleos e gorduras de uso doméstico, mas também isolados ou concentrados proteicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada, amidos modificados e várias substâncias de uso exclusivamente industrial.

Nos primeiros anos, basicamente os integrantes do Nupens testaram a teoria. Mas o crescimento do volume de evidências foi chamando a atenção de outros pesquisadores ao redor do mundo: os ultraprocessados talvez fossem a resposta que se procurava há décadas para o agravamento das condições de saúde em virtualmente qualquer lugar do planeta. O vetor por trás do crescimento dos índices de diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Afinal, dos três primeiros grupos os humanos já vinham se alimentando há muito tempo, sem grandes problemas. 

Nessa etapa, as críticas mais duras eram francamente negacionistas – e desqualificadas. A grande maioria dos pesquisadores era direta ou indiretamente vinculada à indústria. Essa é uma mudança interessante: buscamos por eventuais conflitos de interesses de alguns dos pesquisadores mais mencionados em reportagens. Existem, mas não são tão numerosos quanto na fase anterior. 

Aparentemente, o que nutre as críticas deles à NOVA é uma visão de mundo de que não devemos empreender grandes mudanças. Tudo se resolve colocando o espinafre para fazer amizade com o Doritos. 

Boa parte das evidências mais fortes em torno da NOVA foi produzida ao longo dos últimos cinco anos, e é nesse período que o tema ganha tração na opinião pública nos países do Norte. Começam, então, a surgir críticas mais diversas. Algumas delas tentam melhorar a NOVA ou lidar com angústias reais. Afinal, se num país como os Estados Unidos há quem tire 80% das calorias diárias desse tipo de produto, a mensagem de que eles são inerentemente nocivos pode ser desesperadora. O que essa pessoa comerá daqui por diante? 

  • Sorvete e salsicha são irmãos

Imagine que a sua tarefa seja encontrar políticos do Centrão “menos piores”. Entre Hugo Motta e Gilberto Kassab, Arthur Lira e Eduardo Cunha, você enxerga uma grande diferença? Claro que entre centenas de parlamentares haverá nuances. Pessoas mais cordiais, pessoas mais sedentas por dinheiro, pessoas mais ávidas por cargos. Mas, a menos que você seja o ministro de articulação política do governo Lula, essas diferenças importam pouco ou nada. 

Você poderia alegar que essa analogia padece de uma falha monumental: humanos – especialmente políticos do baixo clero – não são alimentos. Bom, ultraprocessados também não. Ultraprocessados são um corpo estranho dentro do sistema alimentar, criado à base de muito dinheiro público desviado da finalidade real de produção de alimentos. Exatamente como o Centrão, são uma captura de dinheiro. 

Uma boa parte da construção da existência de “ultraprocessados menos piores” se baseia no lugar comum de que o grupo 4 da NOVA é muito vasto. De jeito nenhum um sorvete e um Miojo podem ser comparados. Reconhecer esse argumento seria negar justamente a genialidade dos cientistas brasileiros. Não era trivial enxergar semelhanças entre um biscoito doce e uma salsicha. Mas, ao final, todos eles seguem uma fórmula batida.

A engenhosidade da NOVA consiste em evidenciar que as corporações alimentícias de qualquer subsetor desenvolveram um método de produção que se assenta sobre a substituição de ingredientes integrais por fragmentos de ingredientes que só se transformam em algo palatável, com cheiro e com estrutura porque se somam a aditivos. 

É compreensível querer entender se há categorias menos piores de ultraprocessados. Isso talvez faça uma diferença no dia a dia das pessoas. Por exemplo, ir até a prateleira do pão de forma sem medo de escolher uma grande tragédia seria bom. 

Nesse sentido, é verdade que existem ultraprocessados menos piores. Um alimento que tenha como primeiro item da lista de ingredientes aquilo que seria o seu equivalente em uma lista de ingredientes caseira ou menos processada oferece um bom indício de algo que pode ser menos pior. Mas isso, ainda assim, seria insuficiente. O próprio pão de forma oferece algumas reflexões nesse sentido. 

Normalmente, farinha de trigo será o primeiro ingrediente, e esse também será o primeiro ingrediente de um pão feito em casa. Isso me faz pensar em quão rebaixada é a nossa expectativa em relação aos ultraprocessados: só de usar algo banal, como farinha de trigo, já parece ótimo. 

Mas, daí por diante, as quantidades e os tipos de gorduras, o uso ou não de ovos e leites, e especialmente a quantidade de aditivos podem fazer desse pão algo bem diferente. Para além da análise nutricional, interessa ver que há, no caso do pão de forma abaixo, uma estratégia corporativa que busca enganar as pessoas. Se nos centramos numa discussão meramente no nível dos nutrientes, estamos tirando de foco o fato de o ultraprocessado ser, política e ideologicamente, uma enganação. 

  • Lista de ingredientes

Farinha de trigo fortificada com ferro e ácido fólico, açúcar, óleo vegetal de soja, glúten, vinagre, sal, emulsificantes: mono e diglicerídeos de ácidos graxos, estearoil-2-lactil lactato de cálcio e polisorbato 80, conservadores: propionato de cálcio e ácido sórbico, melhoradores de farinha: fosfato monocálcico, cloreto de amônio e ácido ascórbico e acidulante ácido cítrico e espessante carboximetilcelulose sódica

Em um artigo que será publicado em breve, Carlos Monteiro, autor principal da NOVA e ex-coordenador do Nupens, elenca perigos na mensagem sobre “ultraprocessados menos piores”. Ele dialoga com a crítica muito comum de que, ao colocar todos esses produtos no mesmo balaio, podemos estar tirando das pessoas nutrientes importantes. 

“Para isentar esses ultraprocessados das listas daqueles cujo consumo deve ser reduzido, é necessário ter evidência de que sejam tão saudáveis quanto as versões caseiras ou menos processadas. Atualmente, essa evidência não existe. Uns poucos estudos que tentaram isolar o efeito de produtos densos em nutrientes dos padrões dietéticos de ultraprocessados usaram modelos analíticos que compararam eles com a média da dieta, excluindo ultraprocessados, sem correspondência com versões caseiras ou alternativas processadas ou minimamente processadas”, reflete o pesquisador. 

  • Os vilões de sempre

estudo disparador da recente série de reportagens sobre ultraprocessados menos piores foi conduzido nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, conhecidos pela sigla em inglês NIH. Basicamente, os pesquisadores cruzaram toda a evidência disponível sobre ultraprocessados e saúde do coração. Olhando apenas para doenças cardiovasculares, a conclusão é de que a evidência disponível permite dizer que dois grupos de ultraprocessados em particular (refrigerantes e carnes) estão ligados a um maior risco. 

A maneira como a pesquisa foi divulgada deu lastro a que se pense que essas duas categorias – e apenas elas – são particularmente nocivas. Ah, vá. Então, todo esse carnaval em torno dos ultraprocessados só para chegar à mesma conclusão de sempre? É do senso comum que refrigerantes fazem mal à saúde. E há pelo menos uma década há consenso em torno dos problemas causados pelos embutidos, como salsichas, bacon e presunto. Não precisávamos da NOVA, então? 

Calma que não é bem assim. Primeiro, no estudo em questão, um único desfecho em saúde apresentou resultados sólidos. Doenças cardiovasculares são, sem dúvida, uma preocupação das maiores quando se fala em alimentação. Mas sabemos da associação entre ultraprocessados e 32 condições diferentes de saúde. 

Além disso, para algumas categorias de ultraprocessados, a evidência científica disponível em torno de determinadas condições de saúde é pequena. E é difícil de medir. Os refrigerantes são os vilões habituais, em parte, porque é mais fácil produzir evidência. Primeiro, nós não temos muitas categorias de bebidas. Segundo, o consumo de refrigerantes ao longo da segunda metade do século passado foi o que cresceu a olhos vistos. 

Terceiro, a gama de alimentos sólidos é muito maior, ou seja, não é trivial isolar determinados fatores. É inviável fazer com que mil pessoas comam apenas Miojo durante uma década para depois tirar conclusões. Porém, o estudo clínico que temos, ao manter um grupo reduzido de pessoas confinado durante quatro semanas, chegou a resultados alarmantes quanto aos problemas causados pelos ultraprocessados – como um todo, e não como uma categoria isolada. 

  • Nas mãos dos especialistas

Uma reportagem do UOL nos ensina que as “opções melhores são aquelas que possuem uma lista de ingredientes menor ou que não contêm aditivos químicos, conservantes ou corantes artificiais em excesso”. Bingo! Achamos os ultraprocessados do bem? Não. Achamos os processados. Todos os exemplos listados pelo texto são tipicamente processados. 

O mesmo acontece em uma reportagem publicada em janeiro no The Washington Post. O jornal anuncia orgulhosamente ter testado dez categorias de ultraprocessados para descobrir quais são as menos piores. Adivinha. Sim, os menos piores são, de novo, produtos processados. Faltou aos repórteres entender que um ultraprocessado feito de ingredientes integrais e sem aditivos não é um ultraprocessado. Em resumo, essa discussão não precisaria nem existir. 

As reportagens sobre ultraprocessados menos piores repetem quase sempre a mesma dinâmica. São entrevistados dois pesquisadores: um francamente crítico à NOVA, outro ligeiramente crítico (uma pessoa que está buscando refinar a teoria ou a nossa compreensão sobre a teoria). Uma brincadeira típica de bad cop, good cop que busca afastar a reportagem em questão dos artigos de primeira hora contra a NOVA, abertamente negacionistas. 

Ainda assim, essa abordagem tenta restituir a primazia dos especialistas sobre as escolhas alimentares de todo mundo. São eles que devem nos orientar. Leiam os rótulos! Não caiam em pegadinhas! Tentem comer algumas frutas e verduras! Esse é mais um ponto contrário à essência da NOVA e, mais importante, à essência do Guia Alimentar para a População Brasileira, que busca devolver às pessoas a autonomia em torno do que devem comer. 

Para isso, aposta-se em romper com a abordagem reducionista em torno dos nutrientes – o chamado “nutricionismo”, fusão de nutrição com reducionismo. Uma das reclamações frequentes nessas reportagens é de que a NOVA passa à margem dos nutrientes. A julgar por essa visão, deveríamos todos continuar enlouquecidos contando calorias, carboidratos e proteínas, independente do produto que seja o carreador desses nutrientes. 

Devemos passar horas lendo rótulo por rótulo. De novo, a discussão se resume à prateleira do supermercado. A uma perspectiva individual de que “bom, se eu resolver minha parte do BO, os outros que se virem”. Resumindo, a abordagem sobre “ultraprocessados menos piores” se baseia em premissas reacionárias.  

“Se você come regularmente alimentos ultraprocessados nas refeições — como uma barra de frutas embalada no café da manhã ou uma refeição congelada no jantar — continue fazendo isso”, diz uma reportagem do The New York Times. “Mas adicione uma fruta ou vegetal ao seu prato. Pode ser uma maçã no café da manhã ou um pouco de brócolis no jantar.” 

Em resumo, a proposta feita pelo McDonald’s vinte anos atrás segue vigente: coloque uma maçã ao lado do Big Mac para expiar sua culpa. A questão é que não somos crianças. Podemos perfeitamente lidar com a ideia de deixar de comer uma lasanha congelada da Sadia no jantar. E comer frutas porque são gostosas, e não porque precisam ser uma companhia desagradável para um congelado qualquer. 

Todo esse somatório de abordagens nos conduz ao incômodo maior, pelo menos da minha parte, com essa discussão sobre ultraprocessados menos piores: o conformismo. Esse é um tema que, como tantos outros no século 21, nos coloca diante de uma enorme encruzilhada. Escolher a rota das pequenas mudanças não altera o status quo, o que pode até ser bom do ponto de vista do conforto de sociedades que ao longo de décadas se acostumaram a comer o que não é comida. Podemos trocar o Arthur Lira pelo Hugo Motta. Claramente não é o suficiente. 

  • Não é normal defender que a gente continue comendo o que faz mal

 Isso soa particularmente sinistro quando se trata de crianças, que, segundo um corpo crescente de evidências científicas, podem sofrer com dependência de ultraprocessados. Nós defenderíamos que as crianças continuem fumando vape, desde que somem a isso uma maçã? Ou que coloquem uma folha de alface dentro do copo de rum? 

Essa mensagem conformista retira pressão dos atores que criaram o problema. Estamos absolvendo as corporações que têm sistematicamente defendido que seus produtos são melhores, mais gostosos e irresistíveis. As forças econômicas que foram, dia após dia, trocando ingredientes integrais por fragmentos de ingredientes. Que somaram milhares de aditivos às nossas dietas sem pedir autorização. 

Unicamente na base do “nós somos especialistas e sabemos o que estamos fazendo”. 

De fato, existe algo que apenas as corporações podem fazer: contar qual a função de cada um desses milhares de aditivos agregados aos produtos. Essa, sim, seria uma boa maneira de transformar o mundo dos ultraprocessados. Se retirarmos os aditivos que entram em um produto para conferir sabor, cor e cheiro, ou seja, para tapeação, teremos um consumo alimentar muito mais próximo do desejável. Os ultraprocessados passariam a ser os processados de sempre, e aí, sim, talvez pudéssemos discutir quais são melhores e piores. Enquanto isso, no final das contas, um ultraprocessado é só um ultraprocessado. 

 

Fonte: Por João Perez, em O Joio e o Trigo

 

Uma Revolução na vida cotidiana

Em uma manhã de fevereiro de 1976, os moradores de Bolonha acordaram com sons estranhos nas ondas de rádio. O coletivo esquerdista italiano A/traverso havia criado uma estação de rádio de guerrilha no centro da cidade. Com música clássica indiana tocando ao fundo, uma voz feminina saudava os ouvintes: “Este é um convite para não acordar esta manhã, para ficar na cama com alguém, para fazer instrumentos musicais e máquinas de guerra.” Nascia a Rádio Alice.

Seu nome veio de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e essas máquinas de guerra dispararam balas retóricas contra o establishment burguês. Em uma tentativa de democratizar a transmissão, a estação contou com funcionários voluntários, abandonou os padrões profissionais e quebrou a barreira entre remetente e ouvinte. Um pequeno exército de repórteres forneceu informações sobre preços de drogas, shows e reclamações sexuais. Não havia programação regular. As pessoas podiam simplesmente ligar e dizer o que quisessem. Essa falta de estrutura, explica o historiador Joachim C. Häberlen, “trouxe uma infinidade confusa de temas no ar, variando de notícias atuais a discussões sobre ‘outros mundos potenciais’, de programas sobre música da Sardenha a entrevistas com trabalhadores em greve. Alguém leu trechos de O Prazer do Texto, de Roland Barthes, então outro ligou para dizer: ‘Alguém roubou minha bicicleta, você pode, por favor, dizer no ar que ele é um filho da puta.’”

A estação definiu a ideologia dessa mistura subversiva como Mao, mais Dada. Em março de 1977, ela relatou ao vivo uma batida policial na Universidade de Bolonha, “chamando militantes para a cena, denunciando a violência policial e até mesmo coordenando as ações dos manifestantes”. Então houve silêncio. A polícia apreendeu o equipamento da estação e deteve sua equipe após apenas um ano de transmissão de guerrilha.

“A Rádio Alice conseguiu alguma coisa com suas transmissões anárquicas?”, pergunta Häberlen. Uma questão semelhante enfrenta cada caso histórico explorado em seu fascinante livroBeauty Is in the Street: Protest and Counterculture in Post-War Europe. O meio século entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o colapso do comunismo soviético foram “décadas de protestos massivos”, com “sinais de rebelião em todos os lugares”. Em ambos os lados da Cortina de Ferro, gerações sucessivas de jovens se rebelaram contra seus pais. Espaços alternativos surgiram nas ruas, nos clubes e nos acampamentos pacifistas no campo. Com pouca coordenação, os trabalhadores tomaram o controle das fábricas, os estudantes ocuparam universidades e uma centena de flores de pensamento radical desabrocharam: autogestão dos trabalhadores, a Nova Esquerda, socialismo humanista, libertação das mulheres, libertação gay, ambientalismo e até mesmo a espiritualidade da Nova Era.

Uma infinidade de movimentos de base cresceu nas bordas das organizações tradicionais socialistas, comunistas e trabalhistas, ou completamente fora delas. Esses novos movimentos desafiaram a hegemonia da “velha esquerda” e ajudaram a estabelecer nosso paradigma contemporâneo de ativismo esquerdista. Mas o que as novas formas de protesto e contracultura realizaram?

“Uma infinidade de movimentos populares cresceu à margem das organizações tradicionais socialistas, comunistas e trabalhistas, ou completamente fora delas.”

Como qualquer grande região, a Europa do pós-guerra passou por várias fases desiguais de desenvolvimento. Logo após a guerra, o legado da resistência antifascista impulsionou a popularidade dos partidos comunistas. Na Europa central e oriental ocupada pelos soviéticos, as chamadas Democracias Populares foram estabelecidas com vários partidos, embora logo fossem dominadas pelos comunistas. A militância trabalhista atingiu o pico no final da década de 1940, quando a produção industrial aumentou para atender às demandas da reconstrução. Mas a imposição do governo stalinista de partido único no Leste e a restauração capitalista no Oeste significaram que a rivalidade da Guerra Fria veio a determinar em grande parte a política externa e interna europeia.

Em 1947, os partidos comunistas foram excluídos dos governos multipartidários anteriores na França e na Itália como condição para a ajuda contínua dos Estados Unidos sob o Plano Marshall. Apesar da vitória dos Aliados, as ditaduras reacionárias que esmagaram a esquerda no período entre guerras continuaram a ser toleradas na Espanha e em Portugal. Em meio ao rápido crescimento econômico na década de 1950, a militância trabalhista foi domada com concessões salariais na maioria dos lugares. Houve casos atípicos como a Itália, que viu a mesma taxa de crescimento do “milagre econômico” da Alemanha Ocidental, mas com salários baixos. A militância trabalhista aumentaria novamente na década de 1960.

·        Mudanças na dissidência

Com base em amplas coalizões de classe, vários regimes de Estado de bem-estar foram estabelecidos por toda a Europa Ocidental. A sorte dos partidos social-democratas aumentou bem na década de 1970. Em um movimento conhecido como Eurocomunismo, vários partidos comunistas no Ocidente romperam com a linha soviética ao abraçar a democracia liberal e expandir sua base para além da classe trabalhadora. Mas esses partidos reformistas logo começaram seu declínio terminal em meio à globalização neoliberal. Também naquela década, o crescimento impressionante que antes caracterizava as principais economias do Leste estagnou.

À medida que a desindustrialização e o desemprego crescente atingiram o Ocidente durante a década de 1980, os partidos social-democratas e eurocomunistas permaneceram proeminentes em alguns lugares, como Suécia e Itália. Mas os partidos de massa do passado se foram, tendo sido esvaziados em veículos de campanha eleitoral que fizeram compromissos austeros ou simplesmente enriqueceram sua própria liderança corrupta. A filiação a partidos e sindicatos de esquerda declinou constantemente. No Bloco Oriental, após revoltas populares nas décadas de 1950 e 1960, a política passou a ser estritamente controlada pelo Estado e pelos sindicatos oficiais.

À medida que os terrenos socioeconômicos e políticos por toda a Europa mudavam, também mudavam as formas populares de luta e dissidência. O livro de Häberlen começa com subculturas juvenis que surgiram na Alemanha dividida nas décadas de 1950 e 1960. “Revolucionários de estilo de vida”, como o greaser Halbstarken e o hippie Gammler, lançaram uma revolta geracional contra os mais velhos cuja visão de mundo conservadora era definida por experiências de depressão econômica, guerra mundial e genocídio. Muitos dos jovens rebeldes tinham pais e avós que negavam seus passados ​​nazistas. À luz da reabilitação de antigos fascistas e colaboradores, os críticos falavam de uma restauração autoritária na Europa Ocidental. Os novos regimes do Bloco Oriental eram oficialmente antifascistas, mas sua celebração da resistência em massa à tirania nazista tendia a obscurecer a complexa história da colaboração. Assim, a revolta contracultural das primeiras décadas do pós-guerra era implicitamente política: ela atacava os resquícios fascistas no tecido da vida cotidiana.

A rebelião política tornou-se explícita na França, Itália, Alemanha Ocidental, Tchecoslováquia e em outros lugares em meio às revoltas dramáticas que ocorreram por volta de 1968. Militantes tomando as ruas reviveram tradições do marxismo revolucionário do entreguerras e clamaram por solidariedade com as lutas anticoloniais do Terceiro Mundo. Eles ocuparam campi universitários em Paris, fizeram manifestações contra a Guerra do Vietnã em Amsterdã e Berlim Ocidental e exigiram um socialismo democrático em Praga.

Eles frequentemente uniam forças com jovens trabalhadores industriais que queriam mais autonomia no local de trabalho. No norte da Itália, tais trabalhadores eram inspirados pelo operaísmo, ou a estratégia de formar comitês independentes que “desafiavam a autoridade dos sindicatos para representar os trabalhadores” e faziam exigências pelo controle dos trabalhadores sobre a produção. Sob o slogan “Queremos tudo” (Vogliamo tutto), militantes se revoltaram contra o trabalho como tal, reimaginando criativamente a vida e o lazer. Na França, a revolta estudantil evoluiu para uma greve geral em maio de 1968. Essa greve, juntamente com o chamado Outono Quente de 1969 na Itália, representou o último desafio estrutural ao Estado capitalista democrático na Europa e também talvez a última vez que a contracultura e trabalhadores militantes se aliaram em uma oposição antissistêmica.

Em graus variados, as revoltas do final dos anos 1960 expressaram desilusão com a velha esquerda socialista e comunista: essas organizações partidárias e sindicais tinham criado esperanças de uma sociedade radicalmente democrática, mas não conseguiram entregar mais do que capitalismo de bem-estar no Ocidente ou o socialismo de Estado no Oriente. A princípio, tal desilusão foi expressa por uma minoria militante, enquanto a social-democracia desfrutava de alguns de seus maiores sucessos eleitorais. Mas, à medida que os anos 1970 chegavam ao fim, a desilusão se espalhou e provocou um êxodo até mesmo dos partidos reformistas de esquerda.

O aparente fracasso dos movimentos de massa e da política reformista levou alguns militantes da esquerda radical a tomar medidas mais drásticas, incluindo terrorismo. Häberlen compara dois exemplos clássicos, as Brigadas Vermelhas Italianas (BR) e a Fração do Exército Vermelho da Alemanha Ocidental (RAF). Em vez de lutar no terreno social e político existente, ambos os pequenos grupos tentaram construir seu próprio contraestado revolucionário. Em sua crescente dependência da força armada e da liderança autoritária, eles na verdade “começaram a espelhar o Estado, sua

Nem a BR nem a RAF conseguiram sustentar qualquer ampla base de apoio entre a classe trabalhadora ou a intelligentsia crítica. Suas campanhas de agressão a políticos, assaltos à mão armada, sequestros, sequestros e assassinatos (incluindo o ex-primeiro-ministro italiano Aldo Moro em 1978) não se relacionavam obviamente com as lutas das pessoas comuns no local de trabalho ou na vida cotidiana. A violência contra as pessoas era mais difícil de justificar do que a destruição de propriedade, que tinha sido o modo anterior de militância de rua.

Talvez devido ao seu pequeno tamanho e origens sectárias, os terroristas de extrema esquerda se afastaram das lutas concretas em direção a uma luta contra “o que eles simplesmente chamavam de ‘o sistema’ e seus representantes”. Foi sua abstração violenta da luta social da vida cotidiana que corroeu a simpatia por eles entre a maioria dos esquerdistas europeus. De qualquer forma, na década de 1980, o ativismo de esquerda na Europa tornou-se quase uniformemente não violento. E, ao contrário de momentos anteriores na história do pós-guerra, tornou-se principalmente desconectado da política partidária e do movimento trabalhista.

Música de protesto

Olivro relata uma transição gradual do ativismo de esquerda dos terrenos econômico e político para o cultural. Por exemplo, um tema importante do livro é o papel da música na criação da cultura de protesto. A música de protesto assumiu várias formas, do rock ao hip hop. A subversão sonora encorajou a rebeldia coletiva, afirma Häberlen: “O próprio som da música rebelde pode ser perturbador e ameaçador. Ela encorajou certos estilos de dança, vestimenta, piercing nas orelhas e narizes, ou tingimento e modelagem de cabelo, que as autoridades às vezes sentiram que minavam a ordem moral.”

No caso dos Rolling Stones, por exemplo, foi a forma de sua música — seu ritmo empolgante, a distorção corajosa e arrogância sexual — em vez de seu conteúdo lírico que incitou o conflito com as autoridades. Na Alemanha Ocidental, Ton Steine ​​Scherben foi a primeira banda de rock político a cantar em alemão, com uma gíria berlinense distinta, e sua música inspirou as pessoas a irem às ruas nas décadas de 1970 e início de 1980. Na Tchecoslováquia, a proibição e prisão da banda experimental Plastic People of the Universe inspirou intelectuais críticos a produzir o importante texto dissidente Charter 77.

A rebelião musical mais extrema foi o punk. Häberlen explica que “o punk era uma negação radical. Seu som era rápido, agressivo e perturbador. Os vocais eram gritados em vez de cantados, e não havia necessidade de virtuosismo musical. […] O punk rejeitava a sociedade de consumo e a cultura hippie, bem como os ideais de feminilidade e masculinidade, sem mencionar a política partidária convencional. Ele pintava o mundo em termos sombrios, sem um senso de esperança em relação ao futuro.” No Reino Unido, a popularidade da banda punk Sex Pistols refletia “a sombria realidade do desemprego em massa” na era do Thatcherismo. Da mesma forma, a música hip hop entre os migrantes turcos que lutavam contra o racismo na Alemanha ou os muçulmanos nos banlieues franceses refletiam a sombria realidade da violência policial e da miséria econômica nas margens da renovação urbana nas décadas de 1980 e 1990. Infelizmente, o livro não discute a indústria cultural: todos essa musicalidade alternativa acabou sendo mercantilizada, transformando seu ethos original de participação ativa em consumo passivo.

Mais cedo ou mais tarde, quase todos os exemplos de protesto e contracultura do pós-guerra foram cooptados por instituições existentes. À medida que o ativismo de esquerda se concentrava cada vez mais no terreno cultural, esse processo de cooptação se acelerava. Os sociólogos Luc Boltanski e Ève Chiapello tentaram explicar essa assimilação da resistência estética ou cultural por novas configurações do capitalismo. Em seu livro O Novo Espírito do Capitalismo (1999), eles exploraram “como a oposição que o capitalismo teve que enfrentar no final dos anos 1960 e durante os anos 1970 induziu uma transformação em sua operação e mecanismos — seja por meio de uma resposta direta à crítica visando apaziguá-la reconhecendo sua validade; ou por tentativas de evasão e transformação, a fim de iludi-la sem tê-la respondido.”

No Ocidente, os resultados dessa neutralização da crítica foram óbvios: enquanto o movimento social paradigmático da década de 1968-78 ainda era marcado pela militância trabalhista, pela luta de classes e pelo uso da força coercitiva, o movimento social da década de 1985-95 “se expressa quase exclusivamente na forma de ajuda humanitária” e oblitera a maioria das “referências à classe social […] e especialmente à classe trabalhadora”.

Uma mudança semelhante ocorreu na Europa Central e Oriental, embora em uma linha do tempo diferente. O colapso de regimes autoritários de Estado/socialistas por volta de 1990 provou que os protestos de movimentos de cidadãos organizados (Bürgerbewegungen) poderia alcançar resultados espetaculares. No entanto, a agonia da transição pós-comunista traiu as aspirações originais desses movimentos. O caso da Alemanha Oriental é revelador. Uma mudança semântica ocorreu durante o breve período entre o início das manifestações de segunda-feira em Leipzig em setembro de 1989 e a queda do Muro de Berlim em novembro: a princípio, os slogans giravam em torno da democracia participativa e de uma alternativa socialista humanista (“Nós somos o povo”), mas depois se transformaram em apelos pela reunificação nacional alemã, independentemente do sistema socioeconômico (“Nós somos um povo”).

Quando a reunificação ocorreu em outubro de 1990, a antiga Alemanha Oriental foi simplesmente absorvida pelo Estado da Alemanha Ocidental sem nenhuma nova convenção constitucional: a promessa real de participação democrática foi substituída por uma falsa promessa de abundância para o consumidor. Antigos ativos estatais foram vendidos a investidores privados com grandes descontos e, apesar da “sobretaxa de solidariedade” introduzida na tabela de impostos em 1991, o povo da Alemanha Oriental nunca foi formalmente compensado. Tal desapropriação de antigas populações comunistas foi generalizada e constitui uma das mais descaradas acumulações primitivas de capital da história recente. Desnecessário dizer que esse não foi o resultado econômico que os manifestantes esperavam das revoluções pacíficas de 1989.

A virada cultural na teoria e prática de esquerda desde a década de 1970 foi criticada por marxistas como Vivek Chibber, que a veem como uma traição à luta de classes materialista. Mas vale a pena considerar por que os militantes de esquerda passaram a se concentrar na cultura em detrimento da luta econômica e política. O livro de Häberlen identifica vários fatores que superdeterminaram essa virada cultural: desilusão com os partidos e sindicatos da velha esquerda, declínio do crescimento econômico, desindustrialização e, de fato, a provincialização da Europa devido à descolonização e à Guerra Fria. Esta foi menos uma história sobre novos militantes que vieram de origens de classe média educada e egoisticamente preferiam questões culturais, e mais um resultado histórico de mudanças nas condições objetivas: os meios políticos de mobilização e a base industrial que antes sustentavam a velha esquerda foram simplesmente corroídos.

Até a década de 1970, na Europa Ocidental, os esquerdistas ainda podiam conceber a luta cultural como organicamente relacionada à política e à economia. Esses terrenos se sobrepunham em uma totalidade de contestação social. Para ilustrar essa totalidade, o livro discute teorias críticas da vida cotidiana que tiveram uma forte influência nos protestos e na contracultura do pós-guerra. Conforme formuladas pelo filósofo francês Henri Lefebvre ou pelo ativista belga Raoul Vaneigem, tais teorias interpretavam a cultura como a esfera geral da reprodução social capitalista. Vaneigem acreditava que a luta de classes deve combinar as demandas materiais dos trabalhadores com demandas culturais mais amplas.

Em seu livro The Revolution of Everyday Life [A Revolução da Vida Cotidiana] (1967), ele afirmou que “Qualquer um que fale sobre revolução e luta de classes sem se referir explicitamente à vida cotidiana […] tem um cadáver na boca.” O teórico italiano Mario Tronti também acreditava que o âmbito cultural da vida cotidiana não deveria ser visto como um espaço neutro, mas sim como uma “fábrica social” que precisa ser organizada. E o filósofo francês Louis Althusser, famoso por seu marxismo estrutural, considerava as universidades a “verdadeira fortaleza de influência de classe” da burguesia e, portanto, uma arena legítima para a luta de classes.

·        Ativismo urbano

No entanto, por meio do exemplo das lutas por moradia desde a década de 1970, Häberlen reconstrói uma mudança crucial que ocorreu nessa revolução da vida cotidiana. O livro relata como os inquilinos em Roma resistiram ao poder dos proprietários ao empreender uma “autorredução” (autoriduzione) dos aluguéis. Este foi um ato militante de autonomia coletiva que desferiu um golpe contra a ordem da propriedade privada. Da mesma forma, em Berlim, após a reunificação no início da década de 1990, os artistas ocuparam terrenos baldios como o edifício Tacheles, vivendo coletivamente e improvisando uma arquitetura utópica em contraste com os “desertos de concreto” cinzentos.

Tais greves de aluguel e ocupações inevitavelmente levaram a confrontos com a polícia. Há algumas continuidades com campanhas antigentrificação hoje, como a campanha do referendo de Berlim para nacionalizar a moradia (aprovada pelo eleitorado, mas deixada sem promulgação pelo Senado da região da capital alemã). Mas Häberlen observa uma grande diferença: as “grandes greves de aluguel e movimentos de ocupação que levaram a tumultos violentos são coisas do passado. Hoje em dia, ativistas urbanos pedem que o Estado intervenha no mercado, por exemplo, impondo limites de aluguel ou comprando propriedades para fazer moradias populares, e eles tendem a operar dentro da lei.”

Uma razão pela qual o ativismo urbano se tornou menos afrontoso é que a paisagem urbana mudou consideravelmente nos últimos trinta anos: “Os prédios abandonados que ofereciam espaço para o estilo de vida improvisado de ocupantes se foram” — por exemplo, Tacheles foi vendido para incorporadores imobiliários — “e as cidades não são mais o espaço selvagem para a experimentação anárquica que seus habitantes outrora encontraram em Copenhague, Amsterdã e Berlim.” Outra razão é que o Estado capitalista praticamente monopolizou o terreno político, por meio da “tolerância repressiva” a protestos ou canalizando suas demandas para apelos por intervenção estatal. O terreno econômico também foi erodido, ou despolitizado, por meio de décadas de compromisso trabalhista e governança tecnocrática.

“Empurrada de volta para o terreno cultural de valores, identidades e estilos de vida, a esquerda compreensivelmente se concentrou mais na auto-expressão individual e menos na luta política aberta.”

Esse fechamento dos terrenos político e econômico para a contestação popular é uma marca registrada do neoliberalismo. Ajuda a explicar por que “o ativismo esquerdista em geral se tornou menos militante” desde a década de 1970. Empurrada de volta para o terreno cultural de valores, identidades e estilos de vida, a esquerda compreensivelmente se concentrou mais na autoexpressão individual e menos na luta política aberta. Às vezes, essas lutas culturais por reconhecimento produziram resultados concretos, como os movimentos de libertação das mulheres e dos gays, que tiveram sucesso em legalizar os direitos ao aborto e ganhar um grau notável de liberdade sexual em questão de décadas. Em contraste, as ideias e práticas de inúmeras contraculturas foram perdidas para a história ou cooptadas pelo capitalismo neoliberal de maneiras que pioraram a vida: privatização de serviços públicos, precarização do trabalho, empreendedorismo do eu, cultos de bem-estar e assim por diante.

Até a década de 1970, o ativismo de esquerda prosperou dentro de uma ecologia organizacional diversa, como o teórico Rodrigo Nunes colocou: novas esquerdas anárquicas surgiram em oposição a partidos e sindicatos hierárquicos, e tais formas de organização “horizontais” e “verticais” coexistiram em um relacionamento tenso, mas mutuamente benéfico. Com o declínio dos partidos de massa e sindicatos militantes, no entanto, essa ecologia se desfez.

Os protestos efêmeros e as contraculturas que permaneceram foram privados da biodiversidade que antes animava a esquerda em geral. Nesta situação dos últimos cinquenta anos, o ativismo foi amplamente reduzido a táticas de resistência no terreno cultural. Ocasionalmente, visões radicais de transformação social reaparecem, como nas revoltas de 2011 contra a desigualdade de riqueza ou no movimento climático, mas são passageiras. Elas parecem ainda mais fracas agora, quando a extrema direita está em marcha.

Häberlen conclui com um apelo aos jovens em todo o Norte Global: “Ouse tentar algo, seja indo às ruas e exigindo mudanças políticas, lutando contra o sexismo e o racismo, ou construindo um mundo melhor, aqui e agora, em suas relações pessoais, vivendo em uma comunidade ou apoiando aqueles que fogem da guerra e da violência. Tenha a coragem de tentar e falhar, de refletir, com a ajuda da história — e então tente novamente.”

Não há nada de errado com esse apelo. No entanto, ele ecoa a mesma transformação histórica da cultura de protesto que o livro narra: de diversas lutas para tomar o poder e se organizar para uma mudança social duradoura, chegamos à resistência e aos apelos éticos. Ironicamente, a globalização neoliberal pode ter devolvido a luta social no mundo desenvolvido à sua condição protoindustrial no início do século XIX: radicalmente idealista, mas desarmada e desunida.

 

Fonte: Por Terence Renaud – Tradução Pedro Silva, para Jacobin Brasil