Natalia Viana: O desafio do STF é provar que
existe a verdade
Com ou sem protesto em Copacabana, no próximo
dia 25, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) vai julgar se Jair
Bolsonaro se tornará réu pela tentativa de golpe de Estado depois da sua
derrota eleitoral.
Há indícios de sobra sobre a articulação
golpista: Bolsonaro reuniu-se e pressionou generais, autorizou plano de
assassinato de Lula, sabia da carta com teor golpista assinada por oficiais do
Exército, colaborou para a elaboração do decreto de estado de defesa –
incluindo a prisão de Alexandre Moraes –, o plano do “Punhal Verde e Amarelo”
foi impresso dentro do Palácio do Planalto, onde ele morava.
Para a Polícia Federal (PF), ele “planejou,
atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios” do
golpe. Está mais que claro que há materialidade para que Bolsonaro seja
julgado pela acusação, algo inédito na nossa história.
Mas a arena em que o procedimento vai ocorrer
é outra, bem diferente dos tribunais onde documentos, testemunhas e fatos ainda
importam: a opinião conformada pelo digital.
E, em boa parte desse mundo caótico,
Bolsonaro é apenas vítima de perseguição política, tudo plano de uma grande
conspiração que começou com a soltura “ilegal” de Lula pelo STF e, depois, da
“fraude” eleitoral que roubou dele a reeleição, seguida pela campanha de
censura de Moraes. Nesse mundo, tudo faz sentido.
É uma bobagem dizer que as Big Techs são
aliadas a Bolsonaro e por isso sua defesa será impulsionada por Facebook,
YouTube, Twitter/X etc.
O que está acontecendo é algo mais sinistro.
Desde a derrota de Donald Trump em 2020, o que está em jogo segue um plano
traçado por ele: a estratégia é convencer todo mundo que já não existem fatos,
apenas versões.
E o abraço de morte de Mark Zuckerberg aponta
exatamente para isso; também as redes sociais decidiram que a verdade não
importa.
Já escrevi aqui algumas vezes sobre como, nos
EUA, a narrativa de que houve fraude nas eleições de 2016 seguia sendo uma das
linhas abertamente propaladas pelos republicanos. Aqui, justamente pelas
pressões do STF, nossos bolsonaristas têm sido mais contidos.
Em janeiro deste ano, durante sua fala na
festa promovida por Steve Bannon depois da posse de Trump, Eduardo Bolsonaro,
convidado de honra, passa por um momento revelador.
No palco diante da galera MAGA, ele diz que
as últimas eleições no Brasil e nos EUA foram “difíceis” e “todo mundo viu como
foi”. Bannon pega o microfone e diz “as eleições foram roubadas deles”. Eduardo
replica: “Talvez no Brasil você pode ser preso por dizer isso”.
A cena
demonstra o enorme fosso sobre como a Justiça dos dois países lidou com a
tentativa de golpe de Estado mediante campanhas de operações psicológicas e
desinformação.
Com o mito de que a primeira emenda é
totalizante – todo mundo pode falar toda coisa a qualquer hora –, um autoengano
bem americano, a aposta de Trump, desde a derrota, foi manter intacto
seu gaslighting e estabelecer que existem apenas a sua versão
e a dos inimigos.
Ou seja: a nova fase da estratégia
pretende matar o conceito de desinformação.
Além dos passos das plataformas para reduzir
ao mínimo a moderação de conteúdo golpista, a estratégia passa por uma
pressão consistente contra conhecidos acadêmicos que conceitualizaram,
monitoraram e denunciaram a infestação de desinformação nas plataformas e
sua relação direta com o modelo de negócio destas.
Primeiro foi a Universidade Harvard. Segundo
a professora Joan Donovan, uma das maiores experts em desinformação e criadora
do grupo de pesquisa Technology and Social Change (TaSC), ela foi
paulatinamente sendo pressionada para fora da universidade por pressão de um
executivo do Facebook que seria próximo da direção da Kennedy School,
onde ela trabalhava. Sua saída levou ao fechamento do proeminente grupo de
pesquisa um ano antes das eleições presidenciais.
Depois,
meses antes do pleito, foi a vez de a Universidade Stanford fechar o Stanford
Internet Observatory, outro dos principais centros de pesquisa sobre
desinformação.
Em
junho do ano passado, o projeto Election Integrity Partnership foi encerrado
depois de uma enxurrada de processos judiciais, ataques online contra os
pesquisadores e uma campanha do congressista republicano Jim Jordan, que
assolou a equipe com investigações, acusando-os de violar a Primeira Emenda da
Constituição americana.
Aqui no
Brasil, o NetLab, Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), liderado pela professora Marie
Santini, tem recebido ataques
semelhantes de congressistas.
O passo
seguinte foi a exposição dos financiamentos da Usaid para jornalismo por Elon
Musk e alguns cães de guarda como “financiamento à censura” – um deles, Mike
Benz, chegou ao absurdo de dizer que, se não fosse financiamento da Usaid,
Bolsonaro seria ainda presidente do Brasil. Musk retuitou.
Essa
campanha pretende não só acabar com o financiamento da Usaid, mas assustar
todas as demais fundações que financiam estudos sobre o fenômeno da desinformação.
(Não sei dizer o quanto funciona, porque
nesta coluna eu escrevo sobre o tema com apoio dos leitores – aliás, se você
gosta deste espaço, faça um Pix para contato@apublica.org, pois nem o Tio
Sam nem George Soros virão em nosso socorro.)
Com uma linha direta na Casa Branca, a
versão made in USA sobre como manter viva a narrativa golpista
tem se fortalecido por aqui, em que pesem as reduzidas manifestações de
domingo.
Afinal, por mais que os números sejam mais de
20 vezes inferiores à expectativa – a PM do Rio anunciou que havia 400 mil
pessoas em Copacabana, um estudo do centro Monitor do Debate Político do Cebrap
demonstrou que foram 18 mil –, ainda assim, sejamos francos, 20 mil pessoas
exigindo a anistia a quem tramou um golpe de Estado com militares e
assassinatos planejados no papel é gente pra caramba.
Então o STF vai ter que suar para convencer
os brasileiros de que não se trata apenas de corroborar uma das versões sobre o
que aconteceu, já que a outra narrativa segue viva e sendo propagada à larga no
mundo online, com a bênção das plataformas.
Fariam bem os ministros se reforçarem nas
suas decisões os fatos concretos que provam os dedinhos de Bolsonaro em vez de
se perderem em adjetivos que podem, sempre, ser usados em “cortes” a rodar
pelas redes. A nova realidade da comunicação também impacta a Suprema
Corte.
E importante: os ministros terão ainda que
considerar que seu público, hoje, se estende até a Casa Branca.
Como já escrevi aqui, o caminho escolhido por
Trump para retaliar o caso contra Bolsonaro foi fora dos canais diplomáticos,
através de um processo civil em Miami.
A reação, portanto, via tarifas, não deve vir
agora. Talvez Trump esteja apenas guardando sua maior arma para a votação
que realmente ataca frontalmente o bolso das Big Techs – o artigo 16 do Marco
Civil da Internet, que garante que elas não são responsáveis pelo que se
publica em suas plataformas.
O processo está em pedido de vista, mas o
julgamento deve ser retomado depois de maio deste ano. Trump e seus
tecno-oligarcas estarão assistindo proximamente.
Tudo o que eles (e os bolsonaristas) não
querem é que o Supremo convença a população de que a verdade importa.
¨
Jair de Souza:
Bolsonaristas invertem sentido de conceitos
importantes para manipular
Ainda deve estar ressoando forte nos ouvidos
de muita gente as palavras proferidas por um dos delfins do clã bolsonarista no
momento em que tornou pública sua decisão de fugir do Brasil para permanecer
nos Estados Unidos sob a proteção do governo de extrema direita de Donald
Trump.
Para nosso espanto, o até então deputado
federal disse que estava se afastando do cargo ocupado e do país para lutar lá
fora contra as forças nazifascistas, que o estariam perseguindo. E é aí que
reside o principal motivo de estupor e incompreensão.
Como entender que alguém tido como um dos
principais expoentes do extremismo de direita no Brasil alegue que a razão por
trás de sua fuga seja a perseguição desatada por adeptos do nazifascismo?
Sim, tal situação seria mesmo impossível de
ser compreendida se não tivéssemos um conhecimento prévio de como surgiu e se
desenvolveu ao longo do último século este movimento ideológico
ultra-direitista.
Assim, há características comuns em todas
suas variantes conhecidas até agora, seja na original italiana (fascismo), na
que prevaleceu na Alemanha (nazismo), na da Espanha (franquismo), na portuguesa
(salazarismo) ou, inclusive, nos modelos brasileiros (antes, integralismo;
atualmente, bolsonarismo).
O ponto essencial comum a todas as
modalidades organizacionais dessa ideologia de extrema direita é sua total
vinculação à defesa dos interesses dos grandes grupos capitalistas.
Em outras palavras, em qualquer de suas
alternativas, o fascismo sempre tem como sua maior missão defender a classe dos
grandes capitalistas das ameaças que possam pôr em risco a continuidade de suas
condições de privilégio na sociedade.
Porém, o que diferencia fortemente o fascismo
(em todas as suas vertentes) das demais correntes e ideologias políticas
alinhadas com os ricos e poderosos é sua capacidade de introduzir-se no seio de
setores dos explorados e, por meio de sua atuação política, angariar apoio em
favor das causas dos que tudo possuem entre os que pouco, ou nada, têm.
Para cumprir com este propósito de induzir os
trabalhadores a assumirem posturas favoráveis aos patrões, e levar os pobres a
tomarem partido pelos ricos, os fascistas se especializaram em inverter os
sentidos das mais relevantes aspirações do campo popular, utilizando-as em
favor dos objetivos das oligarquias que vivem à custa do sacrifício das
maiorias.
Para isso, desde seus primórdios, os
movimentos fascistas se dedicaram a lançar mão de palavras e conceitos caros
para o povo trabalhador e transformá-los em seu exato oposto.
Foi assim que o nazismo, apesar de se
constituir numa ideologia e força política que odiava ao máximo tudo o que
pudesse significar um maior grau de liberdade para os trabalhadores, desvirtuou
o significado do termo socialista e o empregou para denominar o partido e
movimento político que mais odiava e combatia o socialismo e os trabalhadores.
Não nos esqueçamos que aquele partido alemão
criado por Adolf Hitler para servir a banqueiros e donos de mega-corporações
capitalistas recebeu o nome de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores.
Então, passamos a ver como os que queriam a
toda custa impedir que o sistema de exploração capitalista fosse abolido se
autodenominarem publicamente como contrários ao sistema.
De igual maneira, as forças que apoiavam a
exploração impiedosa que causava a miséria, a pobreza e a desestruturação das
famílias trabalhadoras passaram a se arvorar em defensoras dos valores da
família.
Outra particularidade muito nefasta que
observamos constantemente em países do capitalismo periférico, como o Brasil, é
a manipulação feita por essas mesmas forças de sustentação do grande capital da
simbologia relacionada com a figura de Jesus.
Como é sabido, devido aos relatos de sua vida
nos Evangelhos, o nome de Jesus está intrinsecamente vinculado às mais sentidas
reivindicações do povo trabalhador humilde.
Assim, para a imensa maioria de nossa gente,
ao relacionar Jesus com alguma causa, a primeira sensação que se tem é a de que
se trataria de algo favorável aos mais necessitados, visto que é generalizado o
sentimento de que a opção preferencial de Jesus é pelos mais carentes, e não
pelos mais abastados.
No entanto, por aqui, são os fascistas os que
mais têm apelado para a manipulação da figura de Jesus para induzir as massas
populares a darem apoio a tudo o que vai inteiramente contra o legado de Jesus.
Novamente, o fascismo, em sua versão
bolsonarista-neopentecostal, recorre aos símbolos e ao nome de Jesus para
sustentar pontos que não possuem absolutamente nada relacionado com o que os
ensinamentos de vida de Jesus nos transmitem.
Na verdade, atualmente, tem-se apelado para o
nome de Jesus com o objetivo de fazer valer pautas que estariam muito mais em
conformidade com o diabo.
Portanto, podemos concluir que, ao dizer-se
um perseguido do nazifascismo, o membro do clã bolsonarista ao qual fizemos
referência no início de nosso texto não está fazendo nada diferente do que tem
sido a tradição dos adeptos desse pensamento desde seu aparecimento no cenário
político na primeira parte do século passado.
Por isso, já não deveríamos nos surpreender
quando nos deparamos com típicos nazifascistas apresentando-se como vítimas
daquilo que eles próprios encarnam em sua totalidade.
Os nazifascistas estão dotados de todos os
instintos de perversidade que os seres humanos foram capazes de desenvolver,
mas eles ainda não chegaram ao ponto de se tornarem autofágicos.
Fonte: Viomundo
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