Imigrantes deportados dos EUA enfrentam torturas em prisão de El Salvador
O
presidente de El Salvador, Nayib Bukele, apresentou sua oferta para abrigar “criminosos perigosos” dos Estados Unidos
e de qualquer país como uma vitória da civilização. Não é o que mostram os
fatos.
A taxa
de transferência de detentos para uma megaprisão salvadorenha recém-construída “seria
relativamente baixa” para os EUA, mas suficiente para tornar “todo o sistema
prisional de El Salvador sustentável”, Bukele escreveu na rede social
X no dia 3 de fevereiro de 2025.
O que
ele não disse foi que os presos, muitos deles imigrantes em situação irregular
deportados que não necessariamente são criminosos, seriam conscientemente
colocados em um sistema prisional que comete abusos generalizados contra
direitos humanos, pelas mãos do Estado
salvadorenho.
A
primeira transferência de deportados venezuelanos foi feita no dia 16 de março,
quando o governo dos EUA transportou cerca de 250
deles para El Salvador, apesar da ordem de um juiz que
bloqueou temporariamente a transferência.
Posteriormente,
Bukele publicou um vídeo mostrando os
deportados chegando a El Salvador com mãos e pés algemados e curvados à força
por guardas armados.
Como
especialistas que pesquisaram os direitos humanos e as condições das prisões em
El Salvador, documentamos o alarmante declínio democrático em
meio às tentativas de Bukele de ocultar a violência
contínua nas prisões e em todo o país.
Também
ouvimos em primeira mão relatos sobre as violações dos direitos humanos que
deportados e salvadorenhos dizem ter sofrido enquanto estavam presos em El
Salvador. Trabalhamos em centenas de casos de asilo como testemunhas
especializadas e prestamos depoimento no tribunal de imigração dos EUA sobre a
natureza e o escopo das violações dos direitos
humanos no país.
·
Erosão das normas democráticas
Bukele lidera El
Salvador desde 2019 e
conquistou a presidência com a promessa de reprimir o crime e
a corrupção. Mas ele também contornou as normas democráticas – por exemplo,
reescrevendo a Constituição para que pudesse ser reeleito em 2024.
Nos
últimos três anos, Bukele governou com poucos freios e contrapesos, num “estado de
exceção” autoimposto. Esse status de emergência permitiu que Bukele suspendesse
muitos direitos enquanto ele empreendia o que chama de “guerra contra as
gangues”.
A
repressão se manifesta em prisões arbitrárias em massa de
qualquer pessoa que se enquadre em características demográficas estereotipadas
de membros de gangues, como ter tatuagens, antecedentes criminais ou até mesmo
“parecer nervoso”.
Como
resultado das contínuas prisões em massa, El Salvador agora tem a maior taxa de
encarceramento do mundo. A proporção da população encarcerada é mais do que o
triplo da dos EUA e o dobro da população do país mais próximo, Cuba.
·
O país mais seguro da América Latina?
A
personalidade durona de Bukele lhe rendeu ampla popularidade em seu país e
no exterior – ele fomentou uma amizade imediata com o novo governo dos EUA, em
particular.
No
entanto, a manutenção dessa popularidade envolveu, segundo se alega amplamente,
a manipulação de estatísticas
criminais, ataque a jornalistas que o criticam
e negação de envolvimento em um pacto secreto entre gangues
amplamente documentado, que foi desfeito pouco antes do início do estado de
exceção.
Bukele
e a mídia salvadorenha pró-governo insistem que a repressão às gangues
transformou El Salvador no país mais seguro da América
Latina.
Mas, no
país, os salvadorenhos descrevem como a polícia, os militares e os cartéis
mexicanos assumiram as práticas de
exploração anteriormente realizadas por gangues como MS-13 e Barrio 18. Uma
salvadorenha cujo filho morreu na prisão apenas alguns dias depois de ter sido
detido arbitrariamente disse a um repórter
da Al Jazeera: “A gente está sempre com medo. Antes era o medo das gangues,
agora são também as forças de segurança que levam pessoas inocentes”.
·
Tortura como política de Estado
A repressão
de Bukele às gangues teve um custo enorme para os
direitos humanos – e em nenhum outro lugar isso é mais visto do que no sistema prisional de El Salvador.
Bukele
ordenou um bloqueio de comunicação entre as pessoas encarceradas e seus entes
queridos. Isso significa que não há visitas, cartas ou ligações telefônicas.
Essa
falta de contato torna quase impossível para as pessoas saberem sobre o
bem-estar de seus familiares encarcerados, entre eles pais com filhos
pequenos que
acabam sendo cuidados por parentes.
Apesar
do blecaute de informação, acadêmicos, grupos especializados em direito
internacional e nacional e jornalistas investigativos conseguiram construir um
panorama das condições das prisões de El Salvador com depoimentos de vítimas e
seus familiares, registros médicos e análise forense de casos de mortes na
prisão.
Eles
descrevem um cenário infernal.
Os
salvadorenhos encarcerados são amontoados em celas
superlotadas, espancados regularmente pelos funcionários da prisão e não
recebem medicamentos, mesmo quando estão disponíveis. Os presos são
frequentemente submetidos a punições que incluem privação de alimentos e
choques elétricos. Um relatório do Departamento de Estado dos EUA de 2023 sobre
El Salvador observou que as “condições
prisionais eram severas e ameaçadoras à vida”.
A
organização de direitos humanos Cristosal estima que centenas de pessoas tenham
morrido de desnutrição, traumatismo craniano, estrangulamento e falta de
tratamento médico.
Muitas
vezes, seus corpos são enterrados por funcionários do governo em valas comuns, sem notificar as
famílias.
Embora
El Salvador seja signatário da Convenção contra a
Tortura das Nações Unidas, a Anistia Internacional concluiu, após várias
missões ao país e entrevistas com vítimas e suas famílias, que há “uso
sistêmico de tortura” nas prisões salvadorenhas.
Do
mesmo modo, um estudo caso a caso realizado pela Cristosal, que incluiu a
análise forense de corpos exumados de pessoas que morreram na prisão, concluiu
em 2024 que “a tortura se tornou uma
política de Estado”.
·
“Risco de dano irreversível”
O que
torna tudo ainda mais preocupante é a escala de possíveis abusos.
El
Salvador agora abriga uma população carcerária de cerca de 110 mil pessoas –
mais de três vezes o número de
presos antes do início do estado de exceção.
Para
aumentar a capacidade do país para o encarceramento em massa contínuo, Bukele
construiu e inaugurou a megaprisão Terrorism Confinement Center em 2023.
Uma análise do centro
usando imagens de satélite mostrou que, se a prisão atingisse sua suposta
capacidade total de 40 mil pessoas, cada prisioneiro teria menos de 60
centímetros de espaço em suas celas.
É para
essa prisão que os deportados dos EUA têm sido levados.
O
presidente dos EUA, Donald Trump, invocou a Lei dos Inimigos
Estrangeiros,
de 1798, para transferir os detidos. A legislação dos tempos de guerra foi
usada apenas três vezes na história, inclusive para justificar a detenção de japoneses
nos EUA durante a Segunda Guerra
Mundial.
Há
sérias preocupações sobre o processo e a legalidade da transferência de
prisioneiros americanos para uma nação que não protegeu os direitos humanos de
sua população detida.
Embora
Trump tenha afirmado que os deportados eram membros das gangues Trem de Aragua
e MS-13, os encarcerados não tiveram audiências para contestar
as alegações, o que suscitou dúvidas sobre a alegação.
Além
disso, o acordo que baseia a transferência dos migrantes detidos nos EUA para
El Salvador enfrenta escrutínio com base no direito internacional, dado o que
se sabe sobre as condições das prisões do país.
Os
direitos humanos internacionais são regidos por leis que proíbem as nações de
transferir pessoas para lugares perigosos, seja devolvendo estrangeiros a
países onde “há motivos substanciais para acreditar que a pessoa estaria em
risco de sofrer danos irreparáveis”, ou transferindo detentos para
jurisdições onde correm risco de serem torturados ou submetidos a tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes.
Os
esforços de organizações de direitos humanos, jornalistas e acadêmicos
para documentar as condições das prisões apontam para uma conclusão inequívoca:
El Salvador não cumpre os termos necessários para proteger os direitos humanos
dos migrantes deportados e encarcerados. Ao contrário, o governo de El Salvador
tem sido repetidamente acusado por grupos de
direitos humanos de cometer crimes contra a humanidade, inclusive contra sua
população carcerária.
Fonte:
Por Mneesha Gellman/The Conversation, Agência Pública
Nenhum comentário:
Postar um comentário