quarta-feira, 26 de março de 2025

Conversas 'vazadas' lançam luz sobre como funciona círculo íntimo de Trump

A Casa Branca confirmou nesta segunda-feira (24/03) que um jornalista foi acidentalmente adicionado a um grupo no aplicativo de mensagens criptografadas Signal no qual autoridades de segurança nacional dos Estados Unidos planejaram um ataque militar ao Iêmen.

Jeffrey Goldberg, editor-chefe da revista Atlantic, relatou em uma reportagem publicada nesta segunda que foi incluído no grupo, onde aparentemente estavam o vice-presidente JD Vance e o secretário de Defesa Pete Hegseth.

O jornalista disse ter ficado sabendo, cerca de duas horas antes das primeiras bombas atingirem o Iêmen, de planos militares confidenciais para ataques dos EUA contra os rebeldes houthi — incluindo detalhes sobre envio de armas, alvos e cronograma.

Em 15 de março, os EUA lançaram o que descreveram como uma série "decisiva e poderosa" de ataques aéreos contra os houthis no Iêmen.

Um membro do grupo houthi postou no X que 53 pessoas foram mortas nos ataques.

A ofensiva dos EUA contra os houthis está em andamento. Mais ataques foram lançados entre domingo (23) e segunda-feira, de acordo com a agência Associated Press.

Goldberg relatou ter recebido em 11 de março uma solicitação de conexão no Signal de uma conta que seria do conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Michael Waltz.

Se confirmado integralmente que as contas participantes pertencem de fato aos nomes exibidos no grupo, como JD Vance e Hegseth, o bate-papo dá uma amostra da dinâmica interna entre os principais membros do alto escalão na área de segurança nacional do governo de Donald Trump.

Uma conta atribuída ao nome JD Vance revela isso.

Embora o vice-presidente tenha rotineiramente demonstrado sintonia com o presidente Trump em seus comentários públicos sobre política externa, nas discussões privadas o usuário JD Vance disse achar que o governo estava cometendo um "erro" ao tomar uma ação militar.

Ele destacou que os houthis representavam uma ameaça maior ao transporte marítimo europeu, enquanto o perigo para o comércio americano era mínimo.

"Não tenho certeza se o presidente está ciente de quão inconsistente isso é com sua mensagem sobre a Europa agora", escreveu a conta atribuída a JD Vance por volta de 8h15 em 14 de março.

"Há um risco adicional de vermos um aumento moderado a grave nos preços do petróleo."

"Estou disposto a apoiar o consenso da equipe e manter essas preocupações para mim."

"Mas há um forte argumento para adiar isso por um mês, fazendo o trabalho de comunicação sobre por que isso importa, apontando onde está a economia, etc."

Esta não seria a primeira vez que um vice-presidente discorda de seu presidente em questões de política externa.

George W. Bush entrou em choque com Dick Cheney nos últimos anos de sua presidência em relação à condução da Guerra do Iraque. Joe Biden, quando vice-presidente de Barack Obama, avaliava que a operação secreta para matar Osama bin Laden era muito arriscada.

Um estranho ser inadvertidamente adicionado a conversas sensíveis sobre defesa nacional representa uma falha impressionante de segurança do governo Trump.

Poucas ações presidenciais dos EUA são mais sensíveis, mais cheias de riscos, do que quando e onde usar a força militar americana.

Se tais informações fossem obtidas por adversários dos EUA com antecedência, isso poderia colocar vidas — e objetivos de política externa nacional — em risco.

Além disso, o fato dessas conversas terem ocorrido fora dos canais governamentais projetados para tais comunicações sensíveis pode configurar uma violação da legislação, que define regras para lidar com informações confidenciais.

A oposição já está se movimentando nesse sentido: o parlamentar democrata Chris Deluzio declarou que o Comitê de Serviços Armados da Câmara, do qual ele faz parte, deve conduzir uma investigação e uma audiência sobre o ocorrido o mais rápido possível.

·        Canal impróprio para mensagens

O jornalista relatou que, num primeiro momento, desconfiou da veracidade das mensagens, acreditando que a Casa Branca usaria um canal mais seguro para compartilhar informações sensíveis. "Eu também não conseguia acreditar que o conselheiro de Segurança Nacional do presidente seria tão imprudente a ponto de incluir o editor-chefe da The Atlantic em tais discussões com altos funcionários dos EUA, até e incluindo o vice-presidente", escreveu Goldberg.

Goldberg disse que só passou a acreditar na veracidade das mensagens com o início dos ataques lançados de porta-aviões americanos sobre alvos houthis. Em 15 de março, os EUA atacaram alvos dos rebeldes no Iêmen.

Na reportagem, o jornalista relatou que soube com horas de antecedência todos os detalhes da operação. "Tendo chegado a essa conclusão, que parecia quase impossível apenas algumas horas antes, eu me retirei do grupo Signal", escreveu ele.

Na segunda-feira, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, Brian Hughes, disse o teor do que "foi relatado parece ser autêntico, e estamos analisando como um número inadvertido foi adicionado à cadeia".

As mensagens do grupo não foram reproduzidas no artigo de Goldberg porque "as informações contidas neles, se tivessem sido lidas por um adversário dos Estados Unidos, poderiam ter colocado em risco militares e pessoal de inteligência americanos, particularmente no Oriente Médio".

Na mesma reportagem, Goldberg apontou que o aplicativo Signal não é um canal autorizado pelo governo dos EUA para o compartilhamento de informações sigilosas, lembrando que a Casa Branca tem sistemas próprios para esse propósito.

De acordo com a reportagem, Michael Waltz e os integrantes do grupo podem ter violado diversas leis, incluindo a Lei de Espionagem de 1917, que prevê punições para quem colocar em risco informações sensíveis à segurança do país.

Após a revelação, membros da oposição democrata ao governo do republicano Trump criticaram a Casa Branca.

"Se os republicanos da Câmara não realizarem uma investigação sobre como isso aconteceu imediatamente, eu mesmo farei isso”, escreveu na rede X o deputado democrata Pat Ryan.

A senadora democrata Elizabeth Warren, por sua vez, chamou o episódio de "flagrantemente ilegal e perigoso além da conta".

"Que outras conversas de segurança nacional altamente confidenciais estão acontecendo em grupos de mensagens? Alguma outra pessoa aleatória foi acidentalmente adicionada a elas também?", escreveu ela.

  • Reações do governo Trump

Em uma declaração à BBC na segunda-feira, o porta-voz de Vance, William Martin, disse que o vice-presidente "apoia inequivocamente" a política externa do governo.

"O presidente e o vice-presidente tiveram conversas subsequentes sobre este assunto e estão em total acordo", disse Martin.

O secretário Pete Hegseth chamou o editor da Atlantic de "enganoso e altamente desacreditado suposto jornalista".

"Ninguém estava enviando mensagens de texto com planos de guerra e isso é tudo que tenho a dizer sobre isso", disse ele a repórteres no Havaí.

O presidente Donald Trump disse a jornalistas na tarde desta segunda-feira que não estava sabendo do texto de Goldberg publicado pela Atlantic.

"Os ataques aos houthis foram altamente bem-sucedidos e eficazes", disse a secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, em um comunicado.

"O presidente Trump continua a ter a maior confiança em sua equipe de segurança nacional, incluindo o conselheiro de segurança nacional Mike Waltz."

O Conselho de Segurança Nacional não refutou o texto da Atlantic.

O porta-voz Brian Hughes disse à BBC: "Neste momento, a troca de mensagens relatada parece ser autêntica."

"Estamos revisando como um número foi acidentalmente adicionado à conversa."

"A situação é uma demonstração da profunda e ponderada coordenação política entre autoridades seniores."

  • O que o editor-chefe da revista Atlantic relatou

O Signal é usado por jornalistas e políticos de Washington devido à sua segurança e à possibilidade de criar pseudônimos e enviar mensagens que desaparecem.

Em 13 de março, Goldberg relatou que foi adicionado a um grupo no Signal intitulado "Houthi PC small group" ("pequeno grupo Houthi PC").

Além de contas com nomes "JD Vance", "Pete Hegseth" e "John Ratcliffe", diretor da CIA (Agência Central de Inteligência), membros de vários órgãos de segurança nacional aparentemente estavam no grupo.

Goldberg afirmou que inicialmente teve "sérias dúvidas de que este grupo de mensagens fosse real".

"Porque eu não conseguia acreditar que a liderança da segurança nacional dos Estados Unidos se comunicaria no Signal sobre planos de guerra iminentes", escreveu o jornalista.

O editor contou em seu texto que, em 15 de março, estava no estacionamento de um supermercado quando recebeu mensagens no Signal sobre bombardeios.

Ao buscar informações na rede social X sobre ataques no Iêmen, viu relatos de explosões na capital, Sanaa.

Poucos minutos após os ataques ao Iêmen em 15 de março, o usuário com o nome de Waltz escreveu no grupo: "Trabalho incrível".

Além disso, enviou emojis com uma bandeira dos EUA, um punho e fogo. Outros membros se juntaram e deram os parabéns no grupo.

Horas depois, após a confirmação do bombardeio, Trump escreveu na rede Truth Social: "Financiados pelo Irã, os bandidos Houthis dispararam mísseis contra aeronaves dos EUA e alvejaram nossas tropas e aliados".

O presidente escreveu que ações de "pirataria, violência e terrorismo" conduzidas pelos houthis custaram "bilhões" e colocaram vidas em risco.

Outros membros do governo Trump se espalharam na televisão para falar sobre os ataques.

"Nós apenas os atacamos com força esmagadora e avisamos ao Irã que já chega", disse Waltz à rede ABC News.

Goldberg relatou que membros do governo também discutiram o potencial da Europa financiar pela proteção que a Marinha dos EUA faz em rotas de navegação importantes.

"Seja agora ou daqui a algumas semanas, terão que ser os Estados Unidos a reabrir essas rotas de navegação", escreveu a conta associada a Waltz, em 14 de março.

¨      Trump trava queda de braço com o Judiciário

"Se um presidente não tem direito de expulsar assassinos e outros criminosos de nosso país, porque um juiz lunático radical de esquerda quer assumir o papel de presidente, então o nosso país está bem encrencado, e destinado a fracassar!", queixou-se o presidente dos Estados UnidosDonald Trump, reagindo a uma ordem judicialque ele descumpriu recentemente ao deportar imigrantes venezuelanos.

À reclamação, feita via redes sociais em 19 de março, seguiu-se outra mensagem, postada horas depois. Na lógica de Trump, a ordem do juiz James Boasberg, um "encrenqueiro e agitador", não teria respaldo, já que o magistrado, diferentemente dele, "não ganhou pelo voto popular".

"Eu ganhei por muitos motivos [...], mas o combate à imigração ilegal pode ter sido o motivo principal para essa vitória histórica." Assim, Trump só estaria fazendo "o que os eleitores queriam que eu fizesse". Ecoando uma retórica que soa familiar aos brasileiros habituados às ameaças de Jair Bolsonaro aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o nova-iorquino e seus aliados chegaram a defender o impeachment de Boasberg.

<><> Por que Boasberg questionou deportação de imigrantes

Em meados de março, o governo Trump deportou centenas de venezuelanos, alegando serem membros de uma gangue criminosa – acusação questionada por familiares e defensores de alguns dos deportados. Apesar dos protestos do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, o grupo foi enviado à prisão de segurança máxima Cecot, em El Salvador.

A ordem de deportação foi justificada com base em uma lei de 1798, que permite expulsar "inimigos estrangeiros". O juiz federal James Boasberg, de Washington, havia barrado a deportação, argumentando ser preciso analisar se a lei poderia ser aplicada a esse caso. Mas o governo Trump deportou os venezuelanos mesmo assim, alegando que a decisão saiu quando o avião já estava fora do espaço aéreo americano.

<><> Não é a primeira vez que Judiciário questiona Trump

Mas essa não foi a primeira vez que o governo Trump entrou em rota de colisão com o Judiciário. A dissolução da Usaid, agência do governo americano para a cooperação internacional, também foi freada por um juiz federal, assim como a expulsão de pessoas trans das Forças Armadas.

Foi também nos tribunais que três organizações de proteção do clima obtiveram uma decisão para obrigar a Casa Branca a repassar 14 bilhões de dólares em financiamento.

"Temos juízes que saíram do controle, que destroem nosso país", afirmou Trump à emissora americana Fox News. Mas negou que tivesse intenção de descumprir ordens judiciais: "Não, não se pode fazer isso."

<><> Deportações ao arrepio da lei?

"No momento, Trump tem sofrido uma derrota atrás da outra nos tribunais", resume Johannes Timm, pesquisador do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), em Berlim. Principalmente no caso das deportações, a impressão seria de que o republicano está ignorando, ou talvez até mesmo desafiando abertamente decisões judiciais.

Em 14 de março, autoridades americanas deportaram a médica Rasha Alawieh, professora da Brown University, quando ela regressou aos EUA de uma viagem ao Líbano, seu país natal. A deportação foi levada a cabo apesar de uma decisão contrária de um tribunal federal de Boston.

Destino semelhante pode ter o estudante e ativista palestino de nacionalidade síria Mahmoud Khalil, detido em 8 de março por autoridades migratórias por ter participado de protestos pró-palestinos na Universidade de Columbia. Também a deportação de Khalil foi suspensa na Justiça.

Declarações recentes revelam o desprezo que o republicano e seus auxiliares nutrem por essas decisões judiciais. Tom Homan, o "Czar da Fronteira" de Trump, disse à Fox News não se  importar com o que os juízes pensam, e que a expulsão de terroristas "deveria ser motivo de celebração neste país".

Por sua vez, a também republicana procuradora-geral americana, Pam Bondi, classificou a suspensão das ordens de deportação de "desrespeito à autoridade estabelecida do presidente Trump", alegando que isso colocaria em risco a população e a aplicação da lei.

<><> Separação dos poderes em risco

Johannes Thimm vê sinais de alerta preocupantes, com o sistema de separação de poderes nos EUA em jogo. Ele avalia que o Congresso, hoje de maioria republicana "quase 100% leal a Trump", praticamente renunciou à sua prerrogativa de controlar a Presidência.

Resta o Judiciário. "E ali o problema é que os tribunais não conseguem impor suas decisões efetivamente, menos ainda contra o governo. Porque eles não têm força policial própria. O sistema inteiro se baseia [na ideia] de respeito dos outros poderes à autoridade dos tribunais", explica Thimm.

E é justamente esse respeito que está se esfacelando num ritmo assustador, frisa: "O fato de que Trump agora começa a ignorar decisões judiciais ou a se recusar a cumpri-las, pode desencadear uma crise constitucional."

Thimm lembra que, num Estado de direito, polícias e órgãos de segurança existem para, em primeira linha, assegurar o cumprimento da lei. Mas, pela hierarquia americana, essas instituições estão subordinadas ao presidente. E se recebem ordens contraditórias, qual delas cumprir?

·        Suprema Corte reage

Talvez esse seja um dos motivos pelo qual o presidente da Suprema Corte americana, John Roberts, reagiu tão duramente ao desejo de Trump de destituir magistrados que o desagradem. "Há mais de dois séculos, estabeleceu-se que um impeachment não é a resposta adequada à discordância quanto a uma decisão judicial. O processo normal de apelação existe para isso [permitir a revisão de decisões em instâncias superiores]", disse Roberts em comunicado, em 18 de março.

Três dias depois da reprimenda de Roberts, Trump negou responsabilidade pela deportação de venezuelanos, contrariando nota divulgada pela Casa Branca à época. "Não sei quando foi assinado, porque eu não assinei. Outras pessoas trataram do assunto", esquivou-se, sugerindo que a deportação teria sido responsabilidade de Marco Rubio, seu secretário de Estado. "Rubio fez um excelente trabalho e queria eles [venezuelanos] fora."

Para Thimm, do SWP, seria um erro "achar que uma Suprema Corte majoritariamente conservadora vai votar a favor de Trump em todos os casos". Tal avaliação careceria de lastro no passado, e a Justiça tem reforçado sua independência.

O pesquisador classifica como "uma espécie de jogo de poder" o que está acontecendo agora: "Trump está testando os limites. E aí realmente vai depender de se a Suprema Corte vai se colocar ao lado dos tribunais, assim como John Roberts fez agora."

<><> EUA rumo à autocracia?

Thimm não crê que Trump vá apostar numa confrontação aberta com a Suprema Corte, cuja composição atual ele ajudou a determinar com as nomeações feitas ainda durante seu primeiro mandato na Casa Branca.

"Mas o problema fundamental – que a Suprema Corte não pode impor o cumprimento de suas decisões na base da força – é o mesmo que o de outros tribunais. Teoricamente, Trump também poderia dizer a eles [Suprema Corte]: 'Não reconheço este ou aquele veredito.'"

Após o imbróglio com a deportação de imigrantes para El Salvador, Thimm não descarta "que Trump simplesmente ignore a Justiça e não cumpra determinadas coisas, e ninguém saiba direito o que fazer ou o que pode ser feito". "E aí os EUA terão dado um grande passo em direção à dissolução do Estado democrático de direito."

 

Fonte: BBC News/DW Brasil

 

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