Conversas
'vazadas' lançam luz sobre como funciona círculo íntimo de Trump
A Casa
Branca confirmou nesta segunda-feira (24/03) que um jornalista foi
acidentalmente adicionado a um grupo no aplicativo de mensagens criptografadas
Signal no qual autoridades de segurança nacional dos Estados Unidos planejaram um
ataque militar ao Iêmen.
Jeffrey
Goldberg, editor-chefe da revista Atlantic, relatou em uma reportagem publicada
nesta segunda que foi incluído no grupo, onde aparentemente estavam o
vice-presidente JD Vance e o secretário
de Defesa Pete Hegseth.
O
jornalista disse ter ficado sabendo, cerca de duas horas antes das primeiras
bombas atingirem o Iêmen, de planos militares confidenciais para ataques dos
EUA contra os rebeldes houthi — incluindo
detalhes sobre envio de armas, alvos e cronograma.
Em 15
de março, os EUA lançaram o que descreveram
como uma série "decisiva e poderosa" de ataques aéreos contra os
houthis no Iêmen.
Um
membro do grupo houthi postou no X que 53 pessoas foram mortas nos ataques.
A
ofensiva dos EUA contra os houthis está em andamento. Mais ataques foram
lançados entre domingo (23) e segunda-feira, de acordo com a agência Associated
Press.
Goldberg
relatou ter recebido em 11 de março uma solicitação de conexão no Signal de uma
conta que seria do conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Michael
Waltz.
Se
confirmado integralmente que as contas participantes pertencem de fato aos
nomes exibidos no grupo, como JD Vance e Hegseth, o bate-papo dá uma amostra da
dinâmica interna entre os principais membros do alto escalão na área de
segurança nacional do governo de Donald Trump.
Uma
conta atribuída ao nome JD Vance revela isso.
Embora
o vice-presidente tenha rotineiramente demonstrado sintonia com o presidente
Trump em seus comentários públicos sobre política externa, nas discussões
privadas o usuário JD Vance disse achar que o governo estava cometendo um
"erro" ao tomar uma ação militar.
Ele
destacou que os houthis representavam uma ameaça maior ao transporte marítimo
europeu, enquanto o perigo para o comércio americano era mínimo.
"Não
tenho certeza se o presidente está ciente de quão inconsistente isso é com sua
mensagem sobre a Europa agora", escreveu a conta atribuída a JD Vance por
volta de 8h15 em 14 de março.
"Há
um risco adicional de vermos um aumento moderado a grave nos preços do
petróleo."
"Estou
disposto a apoiar o consenso da equipe e manter essas preocupações para
mim."
"Mas
há um forte argumento para adiar isso por um mês, fazendo o trabalho de
comunicação sobre por que isso importa, apontando onde está a economia,
etc."
Esta
não seria a primeira vez que um vice-presidente discorda de seu presidente em
questões de política externa.
George
W. Bush entrou em choque com Dick Cheney nos últimos anos de sua presidência em
relação à condução da Guerra do Iraque. Joe Biden, quando vice-presidente de
Barack Obama, avaliava que a operação secreta para matar Osama bin Laden era
muito arriscada.
Um
estranho ser inadvertidamente adicionado a conversas sensíveis sobre defesa
nacional representa uma falha impressionante de segurança do governo Trump.
Poucas
ações presidenciais dos EUA são mais sensíveis, mais cheias de riscos, do que
quando e onde usar a força militar americana.
Se tais
informações fossem obtidas por adversários dos EUA com antecedência, isso
poderia colocar vidas — e objetivos de política externa nacional — em risco.
Além
disso, o fato dessas conversas terem ocorrido fora dos canais governamentais
projetados para tais comunicações sensíveis pode configurar uma violação da
legislação, que define regras para lidar com informações confidenciais.
A
oposição já está se movimentando nesse sentido: o parlamentar democrata Chris
Deluzio declarou que o Comitê de Serviços Armados da Câmara, do qual ele faz
parte, deve conduzir uma investigação e uma audiência sobre o ocorrido o mais
rápido possível.
·
Canal impróprio para mensagens
O
jornalista relatou que, num primeiro momento, desconfiou da veracidade das
mensagens, acreditando que a Casa Branca usaria um canal mais seguro para
compartilhar informações sensíveis. "Eu também não conseguia acreditar que
o conselheiro de Segurança Nacional do presidente seria tão imprudente a ponto
de incluir o editor-chefe da The Atlantic em tais discussões
com altos funcionários dos EUA, até e incluindo o vice-presidente",
escreveu Goldberg.
Goldberg
disse que só passou a acreditar na veracidade das mensagens com o início dos
ataques lançados de porta-aviões americanos sobre alvos houthis. Em 15 de
março, os EUA atacaram alvos dos rebeldes no
Iêmen.
Na
reportagem, o jornalista relatou que soube com horas de antecedência todos os
detalhes da operação. "Tendo chegado a essa conclusão, que parecia quase
impossível apenas algumas horas antes, eu me retirei do grupo Signal",
escreveu ele.
Na
segunda-feira, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, Brian Hughes,
disse o teor do que "foi relatado parece ser autêntico, e estamos
analisando como um número inadvertido foi adicionado à cadeia".
As
mensagens do grupo não foram reproduzidas no artigo de Goldberg porque "as
informações contidas neles, se tivessem sido lidas por um adversário dos
Estados Unidos, poderiam ter colocado em risco militares e pessoal de
inteligência americanos, particularmente no Oriente Médio".
Na
mesma reportagem, Goldberg apontou que o aplicativo Signal não é um canal
autorizado pelo governo dos EUA para o compartilhamento de informações
sigilosas, lembrando que a Casa Branca tem sistemas próprios para esse
propósito.
De
acordo com a reportagem, Michael Waltz e os integrantes do grupo podem ter
violado diversas leis, incluindo a Lei de Espionagem de 1917, que prevê
punições para quem colocar em risco informações sensíveis à segurança do país.
Após a
revelação, membros da oposição democrata ao governo do republicano Trump
criticaram a Casa Branca.
"Se
os republicanos da Câmara não realizarem uma investigação sobre como isso
aconteceu imediatamente, eu mesmo farei isso”, escreveu na rede X o deputado
democrata Pat Ryan.
A
senadora democrata Elizabeth Warren, por sua vez, chamou o episódio de
"flagrantemente ilegal e perigoso além da conta".
"Que
outras conversas de segurança nacional altamente confidenciais estão
acontecendo em grupos de mensagens? Alguma outra pessoa aleatória foi
acidentalmente adicionada a elas também?", escreveu ela.
- Reações do
governo Trump
Em uma
declaração à BBC na segunda-feira, o porta-voz de Vance, William Martin, disse
que o vice-presidente "apoia inequivocamente" a política externa do
governo.
"O
presidente e o vice-presidente tiveram conversas subsequentes sobre este
assunto e estão em total acordo", disse Martin.
O
secretário Pete Hegseth chamou o editor da Atlantic de "enganoso e
altamente desacreditado suposto jornalista".
"Ninguém
estava enviando mensagens de texto com planos de guerra e isso é tudo que tenho
a dizer sobre isso", disse ele a repórteres no Havaí.
O
presidente Donald Trump disse a jornalistas na tarde desta segunda-feira que
não estava sabendo do texto de Goldberg publicado pela Atlantic.
"Os
ataques aos houthis foram altamente bem-sucedidos e eficazes", disse a
secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, em um comunicado.
"O
presidente Trump continua a ter a maior confiança em sua equipe de segurança
nacional, incluindo o conselheiro de segurança nacional Mike Waltz."
O
Conselho de Segurança Nacional não refutou o texto da Atlantic.
O
porta-voz Brian Hughes disse à BBC: "Neste momento, a troca de mensagens
relatada parece ser autêntica."
"Estamos
revisando como um número foi acidentalmente adicionado à conversa."
"A
situação é uma demonstração da profunda e ponderada coordenação política entre
autoridades seniores."
- O que o
editor-chefe da revista Atlantic relatou
O
Signal é usado por jornalistas e políticos de Washington devido à sua segurança
e à possibilidade de criar pseudônimos e enviar mensagens que desaparecem.
Em 13
de março, Goldberg relatou que foi adicionado a um grupo no Signal intitulado
"Houthi PC small group" ("pequeno grupo Houthi PC").
Além de
contas com nomes "JD Vance", "Pete Hegseth" e "John
Ratcliffe", diretor da CIA (Agência Central de Inteligência), membros de
vários órgãos de segurança nacional aparentemente estavam no grupo.
Goldberg
afirmou que inicialmente teve "sérias dúvidas de que este grupo de
mensagens fosse real".
"Porque
eu não conseguia acreditar que a liderança da segurança nacional dos Estados
Unidos se comunicaria no Signal sobre planos de guerra iminentes",
escreveu o jornalista.
O
editor contou em seu texto que, em 15 de março, estava no estacionamento de um
supermercado quando recebeu mensagens no Signal sobre bombardeios.
Ao
buscar informações na rede social X sobre ataques no Iêmen, viu relatos de
explosões na capital, Sanaa.
Poucos
minutos após os ataques ao Iêmen em 15 de março, o usuário com o nome de Waltz
escreveu no grupo: "Trabalho incrível".
Além
disso, enviou emojis com uma bandeira dos EUA, um punho e
fogo. Outros membros se juntaram e deram os parabéns no grupo.
Horas
depois, após a confirmação do bombardeio, Trump escreveu na rede Truth Social:
"Financiados pelo Irã, os bandidos Houthis dispararam mísseis contra
aeronaves dos EUA e alvejaram nossas tropas e aliados".
O
presidente escreveu que ações de "pirataria, violência e terrorismo"
conduzidas pelos houthis custaram "bilhões" e colocaram vidas em
risco.
Outros
membros do governo Trump se espalharam na televisão para falar sobre os
ataques.
"Nós
apenas os atacamos com força esmagadora e avisamos ao Irã que já chega",
disse Waltz à rede ABC News.
Goldberg
relatou que membros do governo também discutiram o potencial da Europa
financiar pela proteção que a Marinha dos EUA faz em rotas de navegação
importantes.
"Seja
agora ou daqui a algumas semanas, terão que ser os Estados Unidos a reabrir
essas rotas de navegação", escreveu a conta associada a Waltz, em 14 de
março.
¨
Trump trava queda de braço com o Judiciário
"Se
um presidente não tem direito de expulsar assassinos e outros criminosos de
nosso país, porque um juiz lunático radical de esquerda quer assumir o papel de
presidente, então o nosso país está bem encrencado, e destinado a
fracassar!", queixou-se o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reagindo a uma ordem judicialque ele descumpriu
recentemente ao deportar imigrantes venezuelanos.
À
reclamação, feita via redes sociais em 19 de março, seguiu-se outra mensagem,
postada horas depois. Na lógica de Trump, a ordem do juiz James Boasberg, um
"encrenqueiro e agitador", não teria respaldo, já que o magistrado,
diferentemente dele, "não ganhou pelo voto popular".
"Eu
ganhei por muitos motivos [...], mas o combate à imigração ilegal pode ter
sido o motivo principal para essa vitória histórica." Assim, Trump só
estaria fazendo "o que os eleitores queriam que eu
fizesse". Ecoando uma retórica que soa familiar aos brasileiros
habituados às ameaças de Jair Bolsonaro aos ministros
do Supremo Tribunal Federal (STF), o nova-iorquino e
seus aliados chegaram a defender o impeachment de Boasberg.
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Por que Boasberg questionou deportação de imigrantes
Em
meados de março, o governo Trump deportou centenas de venezuelanos, alegando
serem membros de uma gangue criminosa – acusação questionada por familiares e
defensores de alguns dos deportados. Apesar dos protestos do presidente
venezuelano, Nicolás Maduro, o grupo foi enviado à prisão de segurança máxima Cecot, em El Salvador.
A ordem
de deportação foi justificada com base em uma lei de 1798, que permite expulsar
"inimigos estrangeiros". O juiz federal James Boasberg, de
Washington, havia barrado a deportação, argumentando ser preciso analisar se a
lei poderia ser aplicada a esse caso. Mas o governo Trump deportou os
venezuelanos mesmo assim, alegando que a decisão saiu quando o avião já estava
fora do espaço aéreo americano.
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Não é a primeira vez que Judiciário questiona Trump
Mas
essa não foi a primeira vez que o governo Trump entrou em rota de colisão com o
Judiciário. A dissolução da Usaid, agência do governo
americano para a cooperação internacional, também foi freada por um juiz federal, assim como a
expulsão de pessoas trans das Forças Armadas.
Foi
também nos tribunais que três organizações de proteção do clima obtiveram uma
decisão para obrigar a Casa Branca a repassar 14 bilhões de dólares em
financiamento.
"Temos
juízes que saíram do controle, que destroem nosso país", afirmou Trump à
emissora americana Fox News. Mas negou que tivesse intenção de descumprir
ordens judiciais: "Não, não se pode fazer isso."
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Deportações ao arrepio da lei?
"No
momento, Trump tem sofrido uma derrota atrás da outra nos tribunais",
resume Johannes Timm, pesquisador do Instituto Alemão de Assuntos
Internacionais e de Segurança (SWP), em Berlim. Principalmente no caso das
deportações, a impressão seria de que o republicano está ignorando, ou talvez
até mesmo desafiando abertamente decisões judiciais.
Em 14
de março, autoridades americanas deportaram a médica Rasha Alawieh, professora
da Brown University, quando ela regressou aos EUA de uma viagem ao Líbano, seu
país natal. A deportação foi levada a cabo apesar de uma decisão contrária de
um tribunal federal de Boston.
Destino
semelhante pode ter o estudante e ativista palestino de nacionalidade síria
Mahmoud Khalil, detido em 8 de março por autoridades migratórias por ter
participado de protestos pró-palestinos na Universidade de Columbia. Também a
deportação de Khalil foi suspensa na Justiça.
Declarações
recentes revelam o desprezo que o republicano e seus auxiliares nutrem por
essas decisões judiciais. Tom Homan, o "Czar da Fronteira" de
Trump, disse à Fox News não se importar com o que os juízes pensam, e que
a expulsão de terroristas "deveria ser motivo de celebração neste
país".
Por sua
vez, a também republicana procuradora-geral americana, Pam Bondi,
classificou a suspensão das ordens de deportação de "desrespeito à
autoridade estabelecida do presidente Trump", alegando que isso
colocaria em risco a população e a aplicação da lei.
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Separação dos poderes em risco
Johannes
Thimm vê sinais de alerta preocupantes, com o sistema de separação de poderes
nos EUA em jogo. Ele avalia que o Congresso, hoje de maioria republicana
"quase 100% leal a Trump", praticamente renunciou à sua prerrogativa
de controlar a Presidência.
Resta o
Judiciário. "E ali o problema é que os tribunais não conseguem impor suas
decisões efetivamente, menos ainda contra o governo. Porque eles não têm força
policial própria. O sistema inteiro se baseia [na ideia] de respeito dos outros
poderes à autoridade dos tribunais", explica Thimm.
E é
justamente esse respeito que está se esfacelando num ritmo assustador, frisa:
"O fato de que Trump agora começa a ignorar decisões judiciais ou a se
recusar a cumpri-las, pode desencadear uma crise constitucional."
Thimm
lembra que, num Estado de direito, polícias e órgãos de segurança existem para,
em primeira linha, assegurar o cumprimento da lei. Mas, pela hierarquia
americana, essas instituições estão subordinadas ao presidente. E se recebem
ordens contraditórias, qual delas cumprir?
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Suprema
Corte reage
Talvez
esse seja um dos motivos pelo qual o presidente da Suprema Corte
americana, John Roberts, reagiu tão duramente ao desejo de Trump de destituir
magistrados que o desagradem. "Há mais de dois séculos,
estabeleceu-se que um impeachment não é a resposta adequada à discordância
quanto a uma decisão judicial. O processo normal de apelação existe para isso
[permitir a revisão de decisões em instâncias superiores]", disse Roberts
em comunicado, em 18 de março.
Três
dias depois da reprimenda de Roberts, Trump negou responsabilidade pela
deportação de venezuelanos, contrariando nota divulgada pela Casa Branca à
época. "Não sei quando foi assinado, porque eu não assinei. Outras pessoas
trataram do assunto", esquivou-se, sugerindo que a deportação teria sido
responsabilidade de Marco Rubio, seu secretário de Estado. "Rubio fez um
excelente trabalho e queria eles [venezuelanos] fora."
Para
Thimm, do SWP, seria um erro "achar que uma Suprema Corte majoritariamente
conservadora vai votar a favor de Trump em todos os casos". Tal avaliação
careceria de lastro no passado, e a Justiça tem reforçado sua
independência.
O
pesquisador classifica como "uma espécie de jogo de poder" o que está
acontecendo agora: "Trump está testando os limites. E aí realmente
vai depender de se a Suprema Corte vai se colocar ao lado dos tribunais, assim
como John Roberts fez agora."
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EUA rumo à autocracia?
Thimm
não crê que Trump vá apostar numa confrontação aberta com a Suprema Corte, cuja
composição atual ele ajudou a determinar com as nomeações feitas ainda durante
seu primeiro mandato na Casa Branca.
"Mas
o problema fundamental – que a Suprema Corte não pode impor o cumprimento de
suas decisões na base da força – é o mesmo que o de outros tribunais.
Teoricamente, Trump também poderia dizer a eles [Suprema Corte]: 'Não reconheço
este ou aquele veredito.'"
Após o
imbróglio com a deportação de imigrantes para El Salvador, Thimm não
descarta "que Trump simplesmente ignore a Justiça e não cumpra
determinadas coisas, e ninguém saiba direito o que fazer ou o que pode ser
feito". "E aí os EUA terão dado um grande passo em direção à
dissolução do Estado democrático de direito."
Fonte:
BBC News/DW Brasil
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