Os
pontos frágeis e fortes da denúncia contra Bolsonaro por tentativa de golpe de
Estado, segundo juristas
A
partir desta terça-feira (25/03), cinco ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF) decidirão se o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete acusadods
virarão réu por tentativa de golpe de Estado e outros crimes.
Bolsonaro e outros integrantes do seu
governo foram denunciados criminalmente em 18 de fevereiro
pela Procuradoria-Geral da República (PGR), acusados de tentar mantê-lo no poder após a derrota
na eleição de 2022 para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A
Primeira Turma do STF, composta por cinco ministros e responsável pelo
julgamento de ações penais e processos criminais envolvendo autoridades com
foro privilegiado, agendou três sessões — às 9h30 e às 14h de terça-feira, e às
9h30 de quarta-feira — para decidir sobre a denúncia da PGR contra o
considerado "núcleo crucial" da organização que, segundo as
investigações, teria planejado uma tentativa de golpe de Estado.
Bolsonaro nega que tenha liderado um suposto golpe de Estado, comandando os
ataques de 8 de janeiro de 2023, e arquitetado um plano para matar Lula no
final de 2022.
Apoiadores
do presidente questionam as acusações, apontando que não haveria provas de
ordens de Bolsonaro para esses crimes.
A BBC
News Brasil ouviu juristas sobre como avaliam a consistência da denúncia e suas
possíveis fragilidades.
Para os
especialistas, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, conseguiu
construir uma narrativa lógica que implica
Bolsonaro como
mentor da tentativa golpista — que teria sido iniciada com uma forte campanha
para descredibilizar a urna eletrônica e lançar dúvidas sobre o resultado da
disputa presidencial, caso se confirmasse sua derrota como sugeriam as
pesquisas eleitorais, e culminado nos ataques de 8 de janeiro.
A
acusação, ressaltam, também reuniu um amplo conjunto de provas materiais e
testemunhais de que havia uma intenção golpista, como minutas para decretar
Estado de Sítio e o depoimento do então comandante do Exército, general Freire Gomes, de que se recusou a
apoiar o plano de manter Bolsonaro no Poder.
Por
outro lado, apontam fragilidades na acusação de que Bolsonaro teria comandado
os ataques de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas radicais invadiram as
sedes dos Três Poderes, ou que seria o mandante de um suposto plano de matar Lula.
Em
ambos os casos, a PGR aponta indícios da atuação de Bolsonaro, mas a delação
premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de
ordens do ex-presidente, contraria as acusações.
Entenda
melhor a seguir os pontos fortes e as fragilidades da denúncia.
- Os pontos
fortes: conjunto de provas e narrativa lógica
Os
especialistas entrevistados consideram que a denúncia traz uma narrativa
coerente para acusar Bolsonaro.
Eles
explicam que, no direito penal, uma pessoa pode ser processada e mesmo
condenada sem que haja uma prova explícita de sua atuação no crime, caso exista
um conjunto de indícios fortes que apontem para sua responsabilidade: é a
chamada prova indiciária.
O
professor de Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
Davi Tangerino afirma que esse tipo de prova é especialmente importante quando
se trata de comprovar a atuação de uma liderança com alto poder hierárquico,
como seria o caso do ex-presidente, segundo a PGR, pois nesses casos o líder
não costuma atuar diretamente na realização prática dos crimes.
Um dos
autores por trás dessa teoria jurídica, ressalta, é o alemão Claus Roxin, que
"criou o conceito de autor por trás do autor" para se referir ao
líder que comanda a estrutura criminosa e está por trás dos autores diretos dos
crimes.
"A
prova no processo penal não é só vídeo, documento. O Código de Processo Penal
também autoriza a dita prova indiciária, quando a conclusão de que o evento
aconteceu se dá como decorrência lógica, necessária, inescapável de indícios,
de elementos indiretos, mas que, somados, dão corpo a uma probabilidade ou como
a única explicação plausível", disse Tangerino.
No caso
da denúncia contra Bolsonaro, a PGR reuniu elementos como minutas de decretação
de Estado de Sítio, documentos de um suposto plano para matar Lula e mensagens de
celular de subordinados próximos a Bolsonaro, além da delação de Mauro Cid e
outros depoimentos.
Para o
professor, é especialmente forte o testemunho do general Freire Gomes, dizendo
que recusou o pedido de Bolsonaro para apoiar o plano golpista. Ele confirmou o
depoimento de Mauro Cid de que participou de uma reunião com o então
presidente, em que foi apresentada uma minuta para decretar Estado de Sítio no
país.
"Fica
difícil imaginar que tivesse toda essa movimentação da máquina sem a ciência
dele [Bolsonaro]. E ele, na posição de presidente da República na época, não
poderia ter assistido isso de camarote e dito 'bom, se acontecer, beleza', ele
tinha um dever constitucional de interromper aquilo e observar o resultado das
eleições", nota Tangerino.
Para o
doutor em Direito Processual Penal e professor da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Aury Lopes Jr, a denúncia apresenta
"uma narrativa lógica e coerente" para acusar Bolsonaro de liderar
uma tentativa de golpe de Estado.
"Nem
sempre, no processo penal, você tem o acusado [por tráfico] com a mão na
substância entorpecente, por exemplo. O que importa é você ter um conjunto de
indícios que vinculem ele àquele núcleo [criminoso], que demonstre que ele
tinha o poder de mando, o domínio final", afirma.
"Nesse
caso, objetivamente, se lermos o relatório da Polícia Federal, fica muito claro
que Bolsonaro tinha consciência, sim, de tudo que estava acontecendo. Não só
porque acontecia no entorno dele, no seu grupo forte, como também pelas
próprias manifestações públicas que ele fez, a sistemática resistência ao
resultado das urnas, a questão das fake news das urnas eletrônicas",
acrescentou.
- Implicação de
Bolsonaro no 8 de janeiro é considerada frágil
A PGR
sustenta que "as ações progressivas e coordenadas da organização criminosa
culminaram no dia 8 de janeiro de 2023, ato final voltado à deposição do
governo eleito e à abolição das estruturas democráticas".
Na
visão da acusação, aqueles ataques foram resultado de um longo processo
iniciado em 2021 e continuado em 2022, em que a organização criminosa liderada
por Bolsonaro descredibilizou as urnas
eletrônicas,
não reconheceu a vitória de Lula e apoiou manifestações em frente a quartéis do
Exército pressionando por uma intervenção militar.
Para
sustentar essas acusações, a denúncia traz, por exemplo, mensagens entre Mário
Fernandes, que era secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no
governo Bolsonaro, e o caminhoneiro Lucas Rottilli Durlo, que participava do
acampamento em frente ao Quartel General do Exército em Brasília, de onde
partiram os manifestantes que invadiram as sedes dos Três Poderes.
Em uma
delas, de 8 de dezembro de 2022, Durlo manifesta preocupação quanto a uma
possível ação de busca e apreensão no acampamento, autorizada pelo ministro do
STF Alexandre de Moraes.
Na
sequência, Fernandes escreve a Mauro Cid pedindo que acione Bolsonaro. "Se
o presidente pudesse dar um input ali pro Ministério da Justiça pra segurar a
PF ou para a Defesa alertar o CMP [Comando Militar do Planalto]".
Ao que
Cid respondeu: "pode deixar que eu vou comentar com ele".
Além
disso, argumenta a PGR, os ataques teriam sido viabilizados pela omissão das
forças de segurança do DF — então chefiadas por Anderson Torres, ex-ministro da
Justiça de Bolsonaro — na proteção dos Três Poderes.
Para
sustentar isso, a denúncia traz mensagens trocadas por integrantes da
Secretaria de Segurança do DF, indicando que já era sabido que haveria uma
manifestação potencialmente violenta dias antes dos ataques.
A PGR,
porém, ignora em sua denúncia o que disse o delator Mauro Cid sobre o 8 de
janeiro. Sua fala contraria a ideia de que houve um planejamento para a invasão
dos Três Poderes com objetivo de derrubar o governo.
"Ministro,
o dia 8 foi uma surpresa para todo mundo. Os militares estavam de férias",
afirmou a Moraes em depoimento.
Para
Davi Tangerino, professor da UERJ, a argumentação da PGR para implicar
Bolsonaro nos atos de 8 de janeiro "é o link mais fraco" da denúncia
e seria "questionável" condená-lo por aqueles ataques.
"Nós
não temos ali uma prova muito contundente de que ele tenha determinado,
ordenado, de alguma forma participado disso", afirmou, lembrando que
Bolsonaro já não era mais presidente.
"Ele
já não tinha mais o dever de interromper [os supostos crimes em
andamento]", afirmou ainda.
Na sua
leitura, porém, há elementos para processá-lo e condená-lo por golpe de Estado,
como o depoimento de Gomes Freire de que se recusou a embarcar nos planos para
manter Bolsonaro no poder.
"A
ter uma condenação questionável [de Bolsonaro pelo 8 de janeiro], eu preferia
que se centrasse naquilo que é bem forte mesmo", ressaltou.
O
professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF)
João Pedro Pádua também considera "muito fraca" a ligação entre
Bolsonaro e o 8 de janeiro apontada pela PGR.
"O
general Mário Fernandes, que era chefe de gabinete da Secretaria-Geral da
Presidência da República, que era ligado ao presidente Bolsonaro, tinha contato
com os manifestantes de 8 de janeiro. Isso é uma ligação bem indireta para
condenar alguém por crimes tão graves", afirma.
Na sua
visão, a principal força da denúncia está na narrativa lógica criada pela PGR
de que foi capaz de conectar desde os ataques públicos de Bolsonaro às urnas
eletrônicas até os atos de 8 de janeiro.
"Então,
a criação de um enredo que conecte todos esses eventos é uma força de acusação,
porque favorece que eventos para os quais já existem muitas provas [como as
lives atacando as urnas] se conectem numa linha de coerência que leva ao evento
chave de 8 de janeiro 2023, que, por sua vez, tem a morfologia, a forma de uma
tentativa clássica de golpe de Estado, que é invasão de prédio público,
quebradeira", nota Pádua.
Por
outro lado, diz, apoiar a denúncia em uma grande narrativa também pode ser uma
fraqueza, na sua visão.
"E
qual é a fraqueza? É que, se você não aceita esse enredo como verdadeiro, esses
eventos dissociados um dos outros não demonstram o início da execução dos
crimes de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e de golpe de
Estado", afirma.
Para
Pádua, não está totalmente comprovado que o 8 de janeiro atendeu a comandos
claros da suposta organização criminosa denunciada. Ele nota que não há
mensagens de lideranças monitorando o que estava acontecendo no dia, por
exemplo.
"Acho
que acusar os denunciados pelo 8 de janeiro é necessário para fazer jus ao
enredo apresentado pela denúncia. Mas talvez seja, num primeiro momento, a
parte mais fraca desse enredo", avalia.
- Bolsonaro mandou
matar Lula?
Outro
ponto da denúncia que é alvo de controvérsias é a acusação de que Bolsonaro
tinha concordado com o plano "Punhal Verde Amarelo", um conjunto de
ações que previam o assassinato de Alexandre de
Mores, Lula e do vice-presidente, Geraldo Alckmin.
A
denúncia cita que, segundo a investigação da Polícia Federal, o general Mário
Fernandes, à época secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência,
imprimiu cópias do plano em uma impressora localizada no Palácio do Planalto no
dia 9 de novembro de 2022. Isso foi identificado por meio do histórico da
impressora.
Já os
registros de entrada e saída do Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro se
recolheu após a derrota eleitoral, indicam que
Fernandes esteve lá após a impressão do documento.
Além
disso, a PGR aponta como indício de que Bolsonaro tinha ciência do plano uma
mensagem de Fernandes para Mauro Cid em 8 de dezembro de 2022, dias antes da
diplomação de Lula como presidente no TSE, em 12 de dezembro.
"Durante
a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela
diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer
ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas (…) ai na hora eu
disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas
oportunidades", dizia a mensagem, segundo a denúncia.
Cid,
porém, negou em sua delação saber do envolvimento do então presidente no plano
Punhal Verde Amarelo.
"Eu
não tenho ciência se o presidente sabia ou não do plano que foi tratado",
disse à PF em depoimento em 5 de dezembro de 2024.
Ao ser
questionado se falava do Punhal Verde Amarelo, ele respondeu: "Do Punhal
Verde Amarelo e se o general MÁRIO [Fernandes] levou esse plano para ele ter
ciência ou não".
Para
João Pedro Pádua, da UFF, apontar que Bolsonaro sabia do plano se encaixa na
narrativa de que era o líder da organização criminosa.
No
entanto, considera que a falta de uma prova concreta fragiliza essa acusação,
já que a denúncia cita uma mensagem de Fernandes a Cid para sustentar que
Bolsonaro tinha conhecimento, mas o próprio delator não confirmou isso.
"Seria
de se esperar que ele confirmasse. O fato de ele não confirmar, nesse caso
específico, é especialmente relevante", destaca.
Davi
Tangerino ressalta que o processo, caso seja de fato iniciado, será exatamente
o momento em que a defesa poderá questionar a narrativa montada pela acusação.
"Instaurado
o processo, a defesa poderá dar outra interpretação, outro contexto, para essas
provas, como as mensagens interceptadas. E caberá então ao STF entender qual é
a interpretação que está mais escorada nas provas", explica.
Fonte:
BBC News Brasil
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